Revolução Industrial e minorias oprimidas

07/02/2014 13:42 Atualizado: 07/02/2014 15:40

Um mito altamente destrutivo passou a dominar a noção de capitalismo laissez-faire: trata-se da falsa noção de que o livre mercado prejudica os “vulneráveis” dentro da sociedade; mais especificamente, diz-se que afeta mulheres e crianças ao cruelmente explorar sua mão-de-obra. Mas a verdade é exatamente oposta. O capitalismo laissez-faire oferece exatamente aquele elemento de que os vulneráveis mais necessitam para sobreviver e prosperar: a liberdade de escolha. A escolha mais libertadora que um indivíduo pode ter é a capacidade de se sustentar a si próprio, sem ter de depender de ninguém mais para que a comida chegue a sua boca.

Utilizando este mito como pressuposição inicial, os historiadores sempre se mostraram extremamente hostis ao analisarem um dos mais libertadores fenômenos da história ocidental: a Revolução Industrial. Do século XVIII ao século XIX, o mundo avançou acentuadamente em termos de tecnologia, indústria, transporte, comércio e inovações que mudaram o padrão de vida, como roupas de algodão feitas a baixo custo. Num período de dois séculos, estima-se que a renda mundial per capita tenha aumentado dez vezes, e a população mundial, seis vezes. O economista Robert Lucas, ganhador do prêmio Nobel, declarou: “Pela primeira vez na história, o padrão de vida das massas formadas por cidadãos comuns começou a apresentar um crescimento contínuo e constante… Nada remotamente parecido com este fenômeno econômico havia ocorrido até então.” O acentuado avanço da prosperidade e do conhecimento havia sido alcançado sem nenhuma engenharia social e sem nenhum controle centralizado. Tudo foi possível em decorrência de se ter permitido que a criatividade humana e o interesse próprio se manifestassem livremente.

Certamente ocorreram abusos. Alguns podem ser imputados às tentativas governamentais de se aproveitar da energia e dos lucros daquele período. Outros abusos ocorreram simplesmente porque toda sociedade possui pessoas desumanas amorais que agem de má fé, especialmente quando querem lucro fácil; isto, obviamente, não é uma crítica à Revolução Industrial mas sim à natureza humana. Adicionalmente, os avanços econômicos sobrepujaram amplamente as mudanças nas atitudes culturalmente vitorianas; no século XVIII, mulheres e crianças eram vistas como cidadãos de segunda classe e, algumas vezes, como bens e posses que podiam ser livremente trocados. A revolução econômica foi o motor que impeliu a cultura e as leis a sofrerem mudanças similarmente drásticas. Quando as mulheres deixaram os campos em busca de emprego e educação, elas se tornaram uma força social que não mais podia ser negada. Consequentemente, os direitos das mulheres avançaram extraordinariamente durante o final do século XIX, algo que não teria ocorrido não fosse a Revolução Industrial.

Infelizmente, esta ligação salutar entre capitalismo laissez-faire e direitos das mulheres se perdeu ao longo do tempo. Durante a segunda metade do século XX, as feministas ortodoxas começaram uma cruzada para reverter esta força que havia contribuído tão acentuadamente para o progresso nos direitos das mulheres; em vez de defenderem a liberdade de mercado, elas exigiram, em nome da “igualdade”, que vários privilégios para as mulheres se tornassem leis. O livre mercado e o laissez-faire foram demonizados como ferramentas opressoras que tinham de ser combatidas por meio de ações afirmativas, leis contra assédio sexual, ações judiciais contra qualquer tipo de discriminação, sistemas de quotas e uma miríade de outras regulações sobre o mercado de trabalho.

Durante este processo, a Revolução Industrial passou a ser retratada como o Grande Satã que destruiu o bem-estar de mulheres e crianças. Esta descrição da Revolução Industrial, além de ser um tolo preconceito ideológico, se baseou fortemente na deturpação dos fatos.

Deturpando fatos sobre as crianças

Sempre que os termos “crianças” e “Revolução Industrial” são citados na mesma frase, imagens horrendas imediatamente vêm à mente: uma criança de cinco anos sendo baixada, por meio de uma corda numa mina de carvão; crianças esqueléticas trabalhando precariamente em fábricas têxteis; o Oliver Twist, de Charles Dickens, oferecendo uma jarra de madeira em troca de uma colher de mingau. Estas imagens são utilizadas para condenar o livre mercado e a Revolução Industrial; algumas vezes elas são utilizadas para glorificar políticos “humanitários” que criam leis proibindo qualquer tipo de trabalho infantil. Tais imagens são extremamente eficazes em incitar um compreensível horror naquelas pessoas decentes que condenam qualquer exploração de qualquer criança. O problema é que este procedimento sofre de graves distorções.

Uma das distorções: ela ignora uma distinção essencial. No início do século XIX, a Grã-Bretanha apresentava duas formas de trabalho infantil: crianças livres e crianças “pobres” ou dos reformatórios, que eram entregues aos cuidados do governo. Os historiadores John Lawrence e Barbara Hammond, cuja obra sobre a Revolução Industrial Britânica e o trabalho infantil é considerada definitiva, reconheceram esta distinção. O economista Lawrence Reed, em seu ensaio “Child Labor and the British Industrial Revolution“, foi ainda mais adiante e enfatizou a importância desta distinção. Ele escreveu: “Crianças livres moravam com seus pais ou guardiões e trabalhavam durante o dia em troca de salários propícios para aqueles adultos. Mas os pais frequentemente se recusavam a enviar seus filhos para situações de trabalho excepcionalmente severas ou perigosas.” Observa Reed: “Os proprietários das fábricas não podiam subjugar violentamente as crianças livres; eles não podiam obrigá-las a trabalhar em condições que seus pais julgassem inaceitáveis.”

Em contraste, as crianças dos reformatórios estavam sob a autoridade direta de funcionários do governo. Reformatórios já existiam há séculos, mas a empatia pelos oprimidos já havia sido arrefecida pelo fato de que os impostos criados exclusivamente para aliviar a situação dos pobres já estavam, em 1832, cinco vezes mais altos do em 1760, quando foram criados. (O livro de Gertrude Himmelfarb, The Idea of Poverty, faz uma narração cronológica desta mudança de atitude em relação aos pobres, da compaixão à condenação.)

Em 1832, em parte a pedido de industriais ávidos por mão-de-obra, a Comissão Real Para a Lei dos Pobres começou uma pesquisa sobre o “funcionamento prático das leis para o alívio da pobreza”. Seu relatório dividiu os pobres em duas categorias básicas: pobres preguiçosos que recebiam ajuda do governo, e pobres trabalhadores que se sustentavam a si próprios. O resultado foi a Lei dos Pobres de 1834, em nome da qual o estadista Benjamin Disraeli fez anúncios dizendo que “a pobreza é um crime”.

A Lei dos Pobres substituiu a ajuda externa (subsídios e esmolas) por “abrigos para pobres”, nos quais as crianças pobres ficavam virtualmente aprisionadas. Lá, as condições eram propositalmente severas, justamente para desincentivar as pessoas a irem buscar auxílio. Praticamente todas as comunidades da Grã-Bretanha apresentavam um “grande estoque” de crianças abandonadas em reformatórios, as quais passaram a ser virtualmente compradas e vendidas para as fábricas; estas sim vivenciaram os maiores horrores do trabalho infantil.

Considere a desprezível função de “carniceiro” nas fábricas têxteis. Tipicamente, “carniceiros” eram crianças novas — de aproximadamente 6 anos de idade — que recuperavam de sob as máquinas algodão que havia se desprendido durante os processos de produção. Como as máquinas estavam em funcionamento, este trabalho era extremamente perigoso e, como consequência, terríveis ferimentos eram comuns. “Felizmente” para aqueles donos de fábricas dispostos a usar o aparato do Estado em benefício próprio, o governo não tinha problema algum em enviar as crianças dos reformatórios para trabalhar embaixo de máquinas funcionando. A maioria das crianças das comunidades tinha como alternativa a este trabalho morrer de fome ou viver na criminalidade.

Não é nenhuma coincidência que o primeiro romance sobre a Revolução Industrial publicado na Grã-Bretanha tenha sido Michael Armstrong: Factory Boy. Michael era um aprendiz de uma agência para crianças pobres que foi mandado para as fábricas. Também não é coincidência que Oliver Twist não era abusado por seus pais ou por agentes privados, mas sim por brutais funcionários públicos dos reformatórios, em comparação aos quais o antagonista Fagin era praticamente um humanitário. Lembre-se de que, aos 12 anos de idades, com sua família na prisão, Dickens havia sido ele próprio uma criança pobre que trabalhava numa fábrica. O economista Lawrence Reed observa que “a primeira lei na Grã-Bretanha voltada para crianças de fábricas foi criada para proteger justamente estas crianças de reformatórios, e não as crianças ‘livres’”. A lei mencionava isso de maneira explícita.

Logo, ao defender a regulamentação da mão-de-obra infantil, os reformistas sociais pediram ao governo para remediar abusos pelos quais o próprio governo era o responsável. Mais uma vez, o governo era a doença que se fingia de cura.

Ideologia equivocada em relação às mulheres

A distorcida apresentação dos fatos no que diz respeito ao trabalho infantil e à Revolução Industrial só encontra paralelos na distorcida ideologia pela qual se analisa o status da mulher. É perfeitamente possível argumentar que as mulheres foram as principais beneficiárias econômicas da Revolução Industrial. Isto se deveu majoritariamente à sua baixa condição econômica no período anterior à Revolução. Elas simplesmente tinham mais a ganhar do que os homens.

Quando as mulheres tiveram a oportunidade de abandonar a vida rural em busca dos salários das fábricas e de trabalho doméstico, elas invadiram as cidades em volume sem precedentes. Para a nossa vida moderna, as condições de vida e de trabalho eram obviamente terríveis, com várias mulheres recorrendo à prostituição como ocupação secundária, tudo para manter um teto sobre suas cabeças. No entanto, por mais terríveis que as condições possam ter sido, um fato fundamental não pode ser ignorado: as próprias mulheres acreditavam que ir para as cidades era algo vantajoso — caso contrário, elas jamais teriam feito a jornada ou simplesmente retornariam à vida rural desencantadas. Dizer que o trabalho industrial “prejudicou” as mulheres dos séculos XVIII e XIX é ignorar a preferência que elas próprias demonstraram e expressaram; é ignorar a voz de suas escolhas. Claramente, as mulheres da época acreditavam que tal situação era um aprimoramento de suas atuais condições.

Uma fatia substancial do historicismo feminista nada mais é do que uma tentativa de ignorar as vozes de mulheres que de fato fizeram suas escolhas à época. Um método comum de se fazer isso é reinterpretar a realidade que cercava as escolhas e, então, impor esta reinterpretação de modo a fazer com que as “escolhas” não mais aparentem ter sido voluntárias, mas sim coagidas. [1]

Uma obra essencial para se compreender a análise histórica da Revolução Industrial feita à luz do feminismo é a imensamente influente The Origin of the Family, Private Property and the State, de Friedrich Engels, lançada em 1884. Engels argumenta que a opressão à mulher originou-se com o formato tradicional da família, mas ele próprio desdenha a noção de que a família por si só havia subordinado as mulheres ao longo da história. Em vez disso, ele firmemente coloca toda a culpa no capitalismo, o qual ele acreditava ter destruído o prestígio que as mulheres outrora usufruíam dentro da família.

Engels escreveu: “Que a mulher era escrava do homem nos primórdios da sociedade é uma das ideias mais absurdas transmitidas pela filosofia do século XVIII… As mulheres não apenas eram livres como também usufruíam uma posição altamente respeitada nos estágios iniciais da civilização, e representavam o grande poder entre as tribos.”

Portanto, as épocas anteriores à Revolução Industrial foram romantizadas como sendo um período em que as mulheres tinham grandes poderes. Engels alegava que a industrialização provocou uma separação entre o trabalho doméstico e o trabalho produtivo, separação esta que fez com que a injustiça que era o formato da família tradicional se ampliasse. Sendo assim, o trabalho feminino se tornou um aspecto importante, porém subordinado ao uso maciço do trabalho masculino para alimentar a máquina capitalista. Presumivelmente, os inegáveis avanços gerados pela Revolução Industrial para as mulheres — incluindo-se um aumento na expectativa de vida e vários direitos políticos — foram adquiridos a um custo extremamente elevado.

A análise de Engels, no entanto, apresentava um problema para as feministas. Ele pressupôs que os homens não tinham nada a ganhar ao exercer poder sobre as mulheres, pois Engels analisava os seres humanos em termos de suas afiliações de classes — isto é, sua relação com os meios de produção. Feministas queriam uma abordagem que incluísse tanto uma opressão de sexos quanto uma opressão de classes. Para explicar por que as mulheres (ao contrário dos homens) possuem interesses que estão em conflito com o capitalismo, as feministas tiveram de ir além de Engels em suas análises. Elas desenvolveram uma ‘teoria do patriarcado’ — do capitalismo masculino —, segundo a qual as mulheres eram oprimidas pela cultura masculina por meio dos mecanismos criados pelo capitalismo laissez-faire. Tal teoria está em nítido contraste com as análises anteriores que diziam que as oportunidades geradas pelo livre mercado eram o remédio social para as mulheres culturalmente oprimidas pelo preconceito ou pelo privilégio masculino.

Em termos mais explícitos, como funciona este remédio? Um empregador quer maximizar seus lucros sobre cada $ gasto. Isto cria um forte incentivo para que ele leve em conta apenas o mérito de um empregado, desconsiderando por completo sua cor, etnia, religião ou sexo. Tudo o que importa é a produtividade do empregado. Uma mulher capacitada, que aceitar trabalhar por, digamos, um salário $100 menor que o de um homem similarmente capacitado, irá conseguir o emprego. Se ela não conseguir, então aquele concorrente isento de preconceitos, que possui um estabelecimento logo ali na esquina, irá contratá-la, e o empregador preconceituoso irá perder sua vantagem competitiva. Quando esta dinâmica ocorrer em escala maciça, as mulheres trabalhadoras serão crescentemente capazes de exigir salários continuamente maiores, reduzindo esta diferença de $100. Este fator “equalizador” não se manifesta de imediato, e não ocorre perfeitamente. Porém, com o tempo, movidos pelo interesse próprio, os empregadores tenderão a se tornar indiferentes a raça e gênero, pois é do interesse deles. Eles farão isso em busca do lucro, e todos se beneficiarão.

Feministas que se opõem a este processo de equalização não estão defendendo a igualdade por si só; elas estão defendendo uma igualdade que existe somente de acordo com os termos que elas consideram “justos” e “corretos”. Suas objeções à Revolução Industrial não são empíricas, mas ideológicas. Assim como elas não gostam das vozes das mulheres dos séculos XVIII e XIX que correram para as fábricas, elas também rejeitam tudo que o livre mercado está dizendo sobre seu desejo de igualdade.

Conclusão

Não importa se a “difamação” se deve a uma distorção dos fatos ou à imposição de uma ideologia; o fato é que a Revolução Industrial deveria processar a história por calúnia. Ou, mais especificamente, deveria processar a maioria dos historiadores.

Jocosidades à parte, e sem desconsiderar as injustiças que inevitavelmente ocorrem durante qualquer período, a Revolução Industrial estabeleceu a liberdade com a qual as pessoas se tornaram tão acostumadas, que até passaram a tratar a liberdade com desrespeito. Talvez o redentor da reputação da Revolução Industrial venha a ser a inegável prosperidade que ela criou. Atualmente, a prosperidade parece ser algo mais respeitado do que a liberdade, muito embora ambas sejam inextricavelmente relacionadas.
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Leia também:

Fatos e mitos sobre a “Revolução Industrial”
Capitalismo
Individualismo, marxismo e a Revolução Industrial
Sobre a diferença salarial entre homens e mulheres
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Nota:

[1] Dizer que as escolhas foram “coagidas” não é o mesmo que dizer que as mulheres dos séculos XVIII e XIX tinham escolhas severamente limitadas e podiam apenas escolher a melhor opção entre várias ruins. Significa dizer que o trabalho industrial representava um retrocesso, uma coerção pior do que a vida rural.
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Wendy McElroy é escritora, conferencista, articulista freelancer, e membro sênior do Laissez Faire Club

Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil