O secreto ‘Regulamento 1984’ da China sobre a extração de órgãos de prisioneiros

28/10/2013 15:00 Atualizado: 20/04/2014 21:07

O ‘Regulamento 1984’ discutido aqui não se refere ao romance de George Orwell de 1949, mas a uma lei chinesa que entrou em vigor em 1984. O nome da lei é “Regulamento provisório sobre o uso de cadáveres e órgãos de presos executados pelo Supremo Tribunal Popular, a Suprema Procuradoria Popular, o Ministério da Segurança Pública, o Ministério da Justiça, o Ministério da Saúde e pelo Ministério de Assuntos Civis”. Se este regulamento desencadeia o mesmo horror que o romance de Orwell, isso é mera coincidência.

Prisioneiros executados

Antes de 2012, o fato de que os órgãos para transplantes na China vinham de presos executados era apenas sussurrado. Mas, recentemente, após a execução de vendedor ambulante chinês Xia Junfeng, tem havido muita especulação dos internautas em microblogues para saber se seus órgãos foram roubados.

Cito três comentários típicos dos internautas:

Primeiro: “Xia foi condenado à morte em abril, mas a execução foi realizada repentinamente cinco meses depois. Sua família só foi notificada para pegar suas cinzas após a execução e ninguém nunca viu seu corpo.”

Segundo: “Os cinco meses de espera foram na verdade para o receptor do órgão se preparar e não por consideração por Xia para deixa-lo viver mais alguns meses.”

Terceiro: “Usar pessoas vivas como estoque de órgãos… só eles se atrevem a fazer isso.”

Notícias chinesas confirmaram que tais suposições são plausíveis.

Um internauta citou um artigo da mídia dizendo: “Quando Zhang Jing, a esposa de Xia, recebeu os pertences de Xia na prisão, ela descobriu que as roupas que Xia usava em seu último encontro estavam incluídas no pacote. Zhang perguntou a si mesma, o que ele estava usando quando partiu. Então, de repente, ela explodiu em lágrimas.”

Eu pesquisei online e descobri que o Beijing News e o Apple Daily de Hong Kong relataram isso. As especulações dos internautas não são exagero; apenas quando se é executado numa mesa de cirurgia – em outras palavras, morto para extração de órgãos – não há necessidade de roupas.

Muitos chineses estão furiosos por descobrirem que os prisioneiros na China têm de fazer sua contribuição econômica final para o grupo legislativo de interesse especial da China. Eu me sinto triste e impotente.

Transformando lixo em tesouro

Muitos anos atrás, eu sabia que havia uma regulamentação legalizando o uso de órgãos de prisioneiros executados para fins de pesquisa. Esse documento – o Regulamento 1984 – era ultrassecreto e eu já o vi. Cerca de dois anos atrás, eu topei com o documento online. O nome completo é “Regulamento provisório sobre o uso de cadáveres e órgãos de presos executados pelo Supremo Tribunal Popular, a Suprema Procuradoria Popular, o Ministério da Segurança Pública, o Ministério da Justiça, o Ministério da Saúde e pelo Ministério de Assuntos Civis”. Ele foi emitido em 9 de outubro de 1984 e está em vigor desde então.

Este regulamento tem vigorado na China por quase 30 anos, mas os cidadãos não sabem sobre isso devido à capacidade do regime comunista chinês de manter segredos.

A Seção 4, No. 4 do regulamento diz: “Usar cadáveres e órgãos de prisioneiros executados deve ser mantido em segredo e sua influência na opinião pública deve ser considerada. É recomendado que [a extração de órgão] seja realizada na mesma unidade. Se necessário, após a autorização ser concedida pelo tribunal que emite a pena de morte, um veículo médico pode dirigir até o local de execução e tomar os órgãos no local. Nenhuma identificação médica é permitida no veículo e sem uniformes brancos médicos. O estado de alarme no local da execução não pode ser levantado até que a remoção dos órgãos seja concluída.”

Podemos dizer que a alegação, que começou no final da década de 1980, das autoridades chinesas estarem tomando órgãos de prisioneiros executados é verdade. O regime vem mantendo isso em segredo e pessoas de fora não conhecem os detalhes. Além disso, os chineses naquela época não sabiam muito sobre os direitos humanos, muito menos que os prisioneiros no corredor da morte também têm direitos humanos. O regime também promoveu a doação de órgãos na sociedade naquela época, o que foi chamado de “mudança de costumes”.

Uma vez eu discuti este assunto com vários profissionais do Direito e eles eram da opinião de que pessoas condenadas à morte tinham de morrer mesmo, então seus órgãos podiam ser usados por outras pessoas. Isso é chamado de “transformar lixo em tesouro”.

Colheita de órgãos de pessoas vivas

O Regulamento 1984 especifica dois princípios. Um deles é que a execução deve ser realizada por um pelotão de fuzilamento, seguindo as disposições pertinentes do Código Penal, e que os órgãos devem ser removidos após a execução.

No entanto, a prática da colheita de órgãos de pessoas vivas na China, que começou mais tarde e que provocou forte condenação da comunidade internacional, levantou questões se o uso de órgãos de prisioneiros executados na China está em conformidade com os padrões éticos internacionais.

Em julho de 2006, o ex-secretário de Estado canadense para a Ásia-Pacífico, David Kilgour, e o advogado de direitos humanos David Matas publicaram um relatório de investigação independente, “Colheita Sangrenta: As alegações da colheita de órgãos de praticantes do Falun Gong na China”. O relatório apresenta várias evidências que apontam para a colheita forçada de órgãos de pessoas vivas em larga escala na China e chama isso de “um mal sem precedentes no planeta”. Ao longo dos anos, mais provas foram recolhidas e acrescentadas ao relatório, que está agora em sua terceira edição. Isso tem atraído grande interesse da comunidade internacional.

Em novembro de 2005, a revista Caijing publicou o artigo “Acelerando a regulamentação dos transplantes de órgãos”. O artigo levantou a densa e obscura cortina nesta área proibida a mídia e aproveitou a oportunidade quando Huang Jiefu, então vice-ministro da Saúde da China, admitiu publicamente numa reunião da Organização Mundial de Saúde em Manila que os doadores de transplantes de órgãos na China eram principalmente prisioneiros executados.

A Caijing também citou o Dr. Chen Zhonghua, o vice-diretor da Divisão de Transplante de Órgãos da Associação Médica Chinesa, dizendo que entre 2003 e maio de 2009, apenas 130 cidadãos chineses na China continental doaram seus órgãos após a morte. A lista anual de 1,5 milhão de pacientes chineses à espera de transplantes de órgãos deu origem à sangrenta indústria do tráfico de órgãos humanos.

Desde então, a mídia chinesa tem ocasionalmente relatado sobre o comércio de órgãos humanos. Mas a colheita de órgãos de prisioneiros executados manteve-se sempre um tema restrito, até março de 2013, quando Huang Jiefu propôs novamente no Congresso Popular Nacional que a regulamentação do transplante de órgãos na China fosse feita o mais rápido possível.

A mídia chinesa divulgou amplamente a respeito. O Sohu Watch, em seu artigo “Doação de Órgãos: Seu corpo ainda é seu após a morte?”, afirmou logo no início: “por que prisioneiros executados têm seus órgãos retirados quando ainda estão vivos”.

O segundo princípio estabelecido no Regulamento 1984 é a voluntariedade. O regulamento estipula claramente que os transplantes de órgãos só podem ocorrer nas seguintes situações: corpos não reclamados ou recusados pelas famílias; prisioneiros executados que doam seus corpos para uso por unidades médicas; corpos usados com permissão dos parentes.

No entanto, a julgar pela realidade, isto é basicamente conversa fiada. O Sohu Watch salientou que tem sido uma norma oculta nos departamentos judiciais da China abusar do princípio da doação voluntária para remover órgãos de prisioneiros executados jovens e saudáveis. Nos últimos anos, muitas famílias receberam apenas uma caixa com cinzas, mas nunca viram os restos mortais de seus entes queridos executados.

Qu Xinjiu, um professor de Direito Penal da Universidade de Ciência Política e Direito da China, disse: “Há um conflito insuperável entre o status de um prisioneiro condenado e sua liberdade para tomar uma decisão. Mesmo que um prisioneiro condenado desfavorecido tenha manifestado sua vontade de doar seus órgãos, isso pode não ser o seu verdadeiro desejo. Mesmo que as autoridades reguladoras e o Judiciário não se envolvam em qualquer persuasão, indução ou coerção, o estatuto jurídico do condenado torna impossível determinar se sua intenção de doar seus órgãos é verdadeira e voluntária.” Por isso, o princípio da voluntariedade no Regulamento 1984 é completamente duvidoso.

A utilização de órgãos de prisioneiros executados para transplante de órgãos é apenas parte do problema sobre a dignidade dos presos condenados na China. Algumas pessoas podem pensar que, num país que não consegue nem manter a dignidade pela vida, é um luxo discutir a dignidade de prisioneiros executados. No entanto, quando pensamos sobre a falta de segurança política e social na China e sobre o que ocorreu com Zeng Chengjie e Xia Junfeng, preocupar-se com a dignidade das mortes dos presos condenados está de fato intimamente relacionado com cada pessoa viva.

He Qinglian é uma proeminente autora chinesa e economista e atualmente vive nos Estados Unidos. Ela é autora dos livros “China’s Pitfalls”, que trata da corrupção na reforma econômica da China na década de 1990, e “The Fog of Censorship: Media Control in China”, que aborda a manipulação e restrição da imprensa. Ela escreve regularmente sobre questões sociais e econômicas contemporâneas chinesas.