Ultimamente, a mídia chinesa tem mencionado com cada vez mais frequência que outros países estão realizando uma “guerra cambial”. Em artigos que afirmam: “A China tornou-se vítima da desvalorização do iene japonês”, e assim por diante, eles argumentam que muitos países correram para diminuir o valor de suas moedas para manter uma vantagem em seu próprio comércio exterior e assim desviaram a atratividade da China.
Ao mesmo tempo, essas mídias elogiam o esforço do governo chinês em manter a estabilidade do yuan. Estes artigos fizeram pessoas no comércio se perguntarem por que Pequim não desvaloriza a moeda chinesa para estimular a exportação como outros países fizeram?
A razão por trás disso não é que Pequim está fora de sintonia com o mercado internacional. A verdadeira razão é uma que Pequim considera indizível: O governo chinês agora depende da valorização do yuan para atrair de volta o capital estrangeiro falso e assim evitar o estouro da bolha econômica.
Por que as pessoas estão céticas sobre o crescimento do comércio exterior da China?
Antes de responder a esta pergunta, olhemos primeiramente os incidentes que ocorreram em meados de fevereiro. A China divulgou seus dados de comércio exterior, que alegam que a indústria de comércio de importação-exportação estava pronta para um bom começo em janeiro de 2014.
A publicação, no entanto, gerou ceticismo geral, porque dois outros conjuntos de dados relacionados à macroeconomia da China não apoiavam o que o governo chinês alegava. Esta discrepância me lembrou do não-oficial “índice de Li Keqiang”, que leva em conta o volume de carga ferroviária, o consumo de energia elétrica e os empréstimos concedidos pelos bancos.
Quando inclusive o primeiro-ministro não ousa confiar nos dados oficiais do regime para avaliar como a economia chinesa está indo, pessoas que estudam a economia chinesa seriamente, é claro, tem de aprender a analisar os dados oficiais. E quando se trata de dados de comércio exterior, observadores da China têm utilizado dois outros conjuntos de dados de referência cruzada.
O primeiro conjunto de dados é o Índice dos Gerentes de Compras (PMI) industrial, o Índice de Novas Encomendas de Exportação e o Índice de Importação, que juntos refletem as condições de comércio exterior da indústria manufatureira. Em janeiro, o PMI foi de 50,5, e o Índice de Novas Encomendas de Exportação e o Índice de Importação foram de 49,3% e 48,2%, respectivamente.
O segundo conjunto de dados inclui o PMI industrial do HSBC, que foi de 49,5 em janeiro, caindo abaixo da linha de expansão-recessão pela primeira vez em seis meses, e o sub-índice do HSBC sobre novas encomendas, que se situou em 50,1 por dois meses seguidos. Empresas entrevistadas mencionaram que a demanda dos principais mercados de exportação enfraqueceram um pouco.
Além destes dois conjuntos de dados, os analistas têm alguns casos para se referir: os dois escândalos de exportação falsa que agitaram as coisas em 2013. Dados da Administração Geral das Alfândegas da China indicam que, entre janeiro e abril de 2013, a importação-exportação total do país foi 8,36 yuanes (c. US$ 1,33 bilhão). Aquilo foi um aumento de 14% ano-a-ano após o cálculo do fator taxa de câmbio.
Embora tenha havido uma redução geral nos mercados tradicionais de exportação da China, como Europa e Japão, o comércio bilateral entre a China continental e Hong Kong subiu 66%, para US$ 150,59 bilhões. O crescimento nos números de comércio entre Guangdong-Hong Kong e Shenzhen-Hong Kong foi particularmente notável.
Esta rodada de surtos incomuns tornou-se um tema quente na mídia, e os altos escalões em Pequim reagiram ordenando uma investigação rigorosa. Depois disso, dizia-se que os dados de exportação da China voltaram a níveis normais a partir de abril do ano passado em diante. Mas, no quarto trimestre de 2013, o comércio bilateral falso entre o continente chinês e Hong Kong veio à tona mais uma vez.
Comércio exterior e capital cinzento da China
Como muitas empresas têm recorrido a um artifício – apresentando notas fiscais falsas de comércio exterior para apresentar reivindicações fraudulentas de descontos de imposto de exportação –, a elevação artificial nos números de comércio exterior é um fenômeno que existe desde o princípio. Uma das maneiras que eles enganam é conhecida na indústria como “preencher pedidos em branco”, o que significa que as empresas forjam provas para mostrar que estão exportando mais bens.
De janeiro a outubro de 2013, o Escritório da Alfândega de Shenzhen descobriu um total de mais de 1.700 casos de exportação falsa. A quantidade de dinheiro envolvida era da ordem de 940 milhões de yuanes. Alguns destes casos eram suspeitos de fraudar descontos de imposto de exportação.
Note que havia algo mais envolvido no problema de exportações falsas nos últimos anos do que meramente a apresentação de reivindicações fraudulentas para descontos de imposto de exportação: exportações falsas têm sido um canal vital de lavagem de dinheiro através do qual grandes quantidades de capital cinzento retornam para a China.
Liu Ligang, economista-chefe para a Grande China do ANZ Bank, apontou muito claramente em seu artigo publicado na revista Caijing que transações transfronteiras persistentemente induzem a entrada de capital na China continental e aumentam os depósitos de RMB [renminbi, ou yuan, a moeda chinesa] em Hong Kong.
No cerne do artigo de Liu há uma questão: o comércio exterior da China se tornou parte das atividades de lavagem de dinheiro. O que Liu afirmou em seu artigo poderia ser verificado com base nos dados estatísticos sobre “fundos estrangeiros” (fundos pendentes de divisas) do Banco Popular da China (BPC).
Os dados do BPC mostraram que, a partir de julho de 2013, um fluxo contínuo de dinheiro quente/especulativo para a China foi observado. O maior volume de dinheiro ingresso num único mês foi de 850 bilhões de yuanes, uma quantia impressionante de fato.
Quão grande é a parte de lavagem de dinheiro do comércio exterior falso no volume total do comércio exterior? De acordo com uma investigação que ocorreu no primeiro semestre de 2013, as exportações falsas correspondem a pelo menos 30% do total das exportações. Essa investigação não provocou qualquer mudança de política, nem mesmo um ajuste para baixo no volume total do comércio exterior em 2013.
Essa falta de resposta do governo chinês indica que Pequim perdeu sua confiança no comércio exterior – os dias de glória que o tornavam parte da “troika” que impulsionou a economia chinesa se foram. Além disso, o governo chinês não tem intenção de acabar com os fundos estrangeiros falsos que entram na China por meio de exportações falsas porque estes fundos podem ajudar a fortalecer o mercado imobiliário, adiando, se não evitando completamente, o estouro da bolha.
Concorrência verdadeira e falsa
Durante anos, a China envolveu-se numa competição feroz com empresas de eletrodomésticos do Japão e da Coreia do Sul nos mercados doméstico e internacional. Nessas competições, produtos “made-in-China” tem uma vantagem de preço por causa de descontos do imposto de exportação e mão-de-obra barata. O governo sul-coreano foi tão longe a ponto de interferir na taxa de câmbio e desvalorizar o won coreano para apoiar empresas como Samsung e LG.
Empresas japonesas de eletrodomésticos, cujos produtos outrora ostentavam uma vantagem de qualidade, foram derrotadas na guerra de preços, sofreram grandes perdas em 2011 e retiraram-se do mercado chinês. Aparelhos japoneses também estavam em desvantagem na competição em outras regiões. Essa situação permaneceu inalterada até depois de Shinzo Abe assumir como primeiro-ministro japonês.
Abe trouxe mudanças na situação por meio de dois métodos: a desvalorização do iene japonês para impulsionar as exportações, e a implementação de flexibilização quantitativa moderada pelo banco central japonês para reativar a economia japonesa. Até o momento, a taxa de câmbio dólar-iene subiu mais de 30%, e a taxa yuan-iene atingiu uma nova alta em 15 anos. Até o final de 2013, vários sinais indicaram que a recessão de 15 anos do Japão pode estar prestes a acabar.
Neste caso, por que então o governo chinês não apoia o setor de comércio exterior e exportação chinesa desvalorizando sua moeda? Porque o governo chinês entende muito bem que o comércio exterior do país não possui genuínas vantagens em longo prazo, e se torna cada vez mais difícil manter a expansão contínua de suas exportações.
Ao mesmo tempo, os benefícios de um forte yuan são imediatos e reais: Os funcionários privilegiados e corruptos seriam tentados a retornar seus ativos no exterior para a China sob a forma de fundos estrangeiros falsos e salvar a economia chinesa.
Basta fechar os olhos para as exportações falsas – enormes quantias de dinheiro quente proveniente de famílias privilegiadas da China – e os ricos voltariam para a China para lucrar com as diferenças, por meio do cumprimento de “ordens em branco” de comércio exterior, ou seja, negócios fraudulentos de comércio exterior. Todo esse “dinheiro quente” entra na China com o objetivo de lucrar com especulação de curto prazo.
Embora a desvalorização do yuan fosse uma grande notícia para a exportação real, isso seria um golpe mortal para o setor (do mercado) imobiliário da China e o sistema bancário, pois os fundos estrangeiros falsos que são investidos em imóveis da China apressadamente fugiriam do país, provocando consequências ainda mais sérias. Este é um ponto que os funcionários dos departamentos governamentais relevantes estão bem conscientes e é óbvio para os jornalistas financeiros.
Em junho do ano passado, a mídia chinesa publicou uma série de artigos indicando que era esperado que uma depreciação do yuan piorasse a questão da fuga de capitais. É precisamente por causa da relação entrelaçada entre “cumprimento de ordens em branco” no comércio exterior e os setores especulativos da China, como imobiliário e financeiro, que fez o governo chinês incapaz de investigar e deter as exportações falsas. Na verdade, eles são forçados a deixar as coisas como estão.
Em 13 de fevereiro, o Wall Street Journal informou no artigo “China’s Rebound Invites Scrutiny of Data” que as exportações falsas evoluíram para usar o método de “percurso-circular” (“round-tripping“): “De acordo com esta abordagem, os bens são expedidos no exterior e pagos com capital estrangeiro de juros baixo. O dinheiro é investido na China, ganhando 5% ou mais. Depois de vários meses, os produtos são devolvidos para a China e os fundos reembolsados, fazendo a empresa lucrar com seu investimento.”
Mais de três décadas depois da reforma e abertura, muitos chineses se tornaram grandes atores da economia internacional. De empresas genuínas até falsas, as técnicas que essas pessoas usam são surpreendentes. As mais de 20 mil empresas offshore de propriedade chinesa incorporadas em Hong Kong e nas Ilhas Virgens Britânicas (IVB) desempenham não só o papel de serem ferramentas de transferência de ativos para os privilegiados, funcionários do regime e pessoas ricas, mas também de manterem o boom na economia chinesa.
A mídia chinesa faz uso frequente de títulos sensacionais como “Economia da China foi sequestrada” em suas manchetes, retratando o capital internacional como tendo intenções maliciosas em relação à China. Sugiro aos jornalistas dessas mídias que realmente sentem e estudem as empresas offshore constituídas nas IVB, Hong Kong e lugares semelhantes e descubram quem são os sequestradores reais da economia chinesa neste momento.
He Qinglian é uma proeminente autora chinesa e economista que atualmente vive nos Estados Unidos. Ela é autora de “China’s Pitfalls”, que trata da corrupção na reforma econômica da China da década de 1990, e “The Fog of Censorship: Media Control in China”, que aborda a manipulação e restrição da imprensa. Ela escreve regularmente sobre questões sociais e econômicas da China contemporânea. Seu blog é HQLEnglish.blogspot.com