Um dos erros mais frequentemente encontrados na maioria das análises ideologizadas da ciência econômica é aquele que pressupõe uma visão estática da riqueza. Quem pensa que a riqueza é estática cai no erro de considerar que, quando uma pessoa se torna rica, ela e seus herdeiros serão ricos — e cada vez mais ricos — para sempre.
Não é necessário ir muito longe para encontrar um exemplo recente deste erro. O economista Thomas Piketty, bastante em voga nestes tempos de demonização dos ricos, demonstra em seu deliciosamente equivocado livro Capital no Século XXI — o qual, obviamente, foi muito elogiado por Paul Krugman — que é muito provável que exista uma tendência dentro do capitalismo de que a rentabilidade do capital se situe acima da taxa de crescimento da economia, o que significa que a classe capitalista irá se apropriar de uma fatia cada vez maior da renda nacional, agravando as desigualdades sociais.
Pior ainda: Piketty também considera provável que os mais ricos dentro da classe capitalista tenham maiores facilidades para obter uma taxa de retorno superior àquela conseguida pelos capitalistas de menor dimensão, o que agravaria esse “curso natural” do capitalismo de fazer com que os super-ricos (e seus herdeiros) se apropriem de fatias crescentes da riqueza total.
Para demonstrar sua teoria, Piketty recorre ao ranking de bilionários elaborado anualmente pela revista Forbes e chega à seguinte conclusão: se agregarmos toda a riqueza possuída pela centésima milionésima parte da população mundial adulta em 1987 (ou seja, as 30 pessoas mais ricas do mundo em 1987) e compararmos esta riqueza à riqueza da centésima milionésima parte da população mundial adulta de 2010 (ou seja, as 45 pessoas mais ricas do mundo), chegaremos à conclusão de que esta riqueza cresceu a uma taxa média real anual de 6,8% (já descontada a inflação). Isso é o triplo do crescimento médio anual do conjunto da riqueza mundial (2,1%).
Os super-ricos, portanto, estão cada vez mais ricos, segundo Piketty. E estão mais ricos não por causa de sua exitosa gestão empresarial, mas simplesmente porque acumularam uma enorme quantidade de riqueza que é capaz de se auto-reproduzir como se estivesse no piloto automático.
Como diz o próprio Piketty em seu livro: “Uma das lições mais impactantes do ranking da Forbes é que, a partir de um determinado valor de riqueza, todas as grandes fortunas têm suas origens ou na herança ou no valor gerado por uma empresa já estabelecida no mercado, e crescem a taxas extremamente elevadas — independentemente de se seu proprietário trabalha ou não trabalha.”
No entanto, Piketty dá um salto lógico inadmissível: o fato de a riqueza da camada mais rica da sociedade ter crescido a uma taxa média anual de 6,8% entre 1987 e 2010 não significa que as pessoas ricas de 1987 sejam as mesmas de 2010.
E isso faz toda a diferença em sua teoria.
Por exemplo, se o indivíduo A foi a pessoa mais rica do mundo em 1987, tendo uma riqueza estimada em 20 bilhões de dólares, nada impede que, em 2010, este mesmo indivíduo já tenha se arruinado por completo, e que outro indivíduo, o indivíduo B, tenha se tornado a pessoa mais rica do mundo, com uma riqueza estimada em 40 bilhões de dólares.
Tendo isso em mente, será que podemos concluir que a conservação e o acréscimo de riqueza é um processo simples e automático, o qual não requer nenhuma destreza pessoal da parte de seu proprietário? É óbvio que não.
Por sorte, não há necessidade nenhuma de ficarmos apenas especulando hipóteses teóricas sobre o crescimento da riqueza dos super-ricos entre 1987 e 2010; podemos simplesmente analisar o que de fato ocorreu com os ricaços de 1987. Será verdade que a riqueza deles cresceu desde então a uma taxa de 6,8% ao ano, como afirma Piketty? Ou será que ela estancou ou até mesmo retrocedeu, fazendo com que eles tenham sido desbancados por outros criadores de riqueza?
Os dez homens mais ricos do mundo em 1987
Foi em 1987 que a revista Forbes começou a elaborar seu ranking de bilionários. Se você olhar hoje aquela lista de 1987, provavelmente irá se surpreender: você não conhecerá praticamente ninguém. E não, a razão disso não é que a maioria daqueles bilionários morreu; a razão é que praticamente todos eles viram seu patrimônio definhar de maneira considerável.
Comecemos pelo homem mais rico do mundo em 1987: o japonês Yoshiaki Tsutsumi, que tinha uma fortuna estimada em 20 bilhões de dólares. A última vez em que ele apareceu no ranking da Forbes foi no ano de 2006, e sua riqueza já havia encolhido para 1,2 bilhão de dólares. Descontando-se a inflação do período, isso equivalia a 678 milhões em dólares de 1987.
Ou seja, tomando por base o poder de compra de 1987, sua fortuna caiu de 20 bilhões para 678 milhões entre 1987 e 2006, o que significa que sua riqueza encolheu 96% neste período. E, desde 2006, sua riqueza continuou em irreversível declínio, de modo que ele hoje nem sequer figura no ranking da Forbes.
No entanto, segundo Piketty, a riqueza de Yoshiaki Tsutsumi deveria ter se multiplicado por seis.
O segundo homem mais rico do mundo em 1987 também era japonês: Taikichiro Mori. Na época, ele tinha uma fortuna estimada em 15 bilhões de dólares, o que o tornaria, em 1991, o homem mais rico do mundo, superando Tsutsumi. Taikichiro Mori faleceu em 1993 e legou sua fortuna a seus filhos: Minoru Mori e Akira Mori. O patrimônio conjunto de ambos é atualmente de 6,3 bilhões, o que equivalia a 3,075 bilhões de dólares em 1987. Ou seja, a riqueza encolheu 80%.
Não consegui encontrar dados referentes às atuais fortunas dos homens (ou de seus herdeiros) que ocupavam a terceira e a quarta posição da lista de 1987, os também nipônicos Shigeru Kobayashi e Haruhiko Yoshimoto, com fortunas estimadas em 7,5 bilhões e 7 bilhões de dólares respectivamente. No entanto, o fato de que ambos estavam acentuadamente investidos no setor imobiliário japonês em 1987, e dado que este setor vivenciou uma acentuada desvalorização no período — tudo combinado ao fato de que não há quase nada na internet sobre eles (ou sobre suas famílias) —, parece sugerir que ambos não tiveram melhor sorte do que seus conterrâneos Tsutsumi e Mori.
O quinto lugar da lista de 1987 era ocupado por Salim Ahmed Bin Mahfouz, cambista profissional e criador do maior banco da Arábia Saudita (o National Commercial Bank da Arábia Saudita). Naquele ano, o saudita gozava de uma fortuna estimada em 6,2 bilhões de dólares. Em 2009, faleceu seu herdeiro, Khalid bin Mahfouz, com uma riqueza estimada em 3,2 bilhões de dólares, que equivaliam a 1,7 bilhão em dólares de 1987. Ou seja, um empobrecimento de 72,5%.
O sexto lugar da lista era ocupado pelos irmãos Hans e Gad Rausing, donos da multinacional sueca Tetra Pak. Ambos detinham um patrimônio estimado em 6 bilhões de dólares. Atualmente, Hans Rausing, já com 92 anos de idade, possui um patrimônio estimado em 12 bilhões de dólares, e ocupa a 92ª posição entre os mais ricos do mundo. Gad morreu no ano 2000, mas estima-se que seus herdeiros possuem uma fortuna de 13 bilhões de dólares. No total, portanto, a fortuna de ambos passou de 6 bilhões de dólares para 25 bilhões. No entanto, descontando-se a inflação do período, o enriquecimento de ambos foi muito menor: de 6 bilhões para 12,2 bilhões, o que equivale a uma taxa média de rentabilidade anual de 2,7%. Muito abaixo dos 6,8% sugeridos por Piketty.
O sétimo lugar era ocupado por um trio de irmãos: os irmãos Reichmann, proprietários da Olympia and York, uma das maiores imobiliárias do mundo. Sua riqueza também era estimada em 6 bilhões de dólares. No entanto, cinco anos depois, a empresa protagonizou uma das mais estrondosas bancarrotas da história, a qual reduziu seu patrimônio a apenas 100 milhões de dólares. Um dos irmãos, Paul, conseguiu se recuperar das cinzas e hoje a riqueza de seus herdeiros está estimada em 2 bilhões de dólares, equivalentes a 975 milhões em dólares de 1987. Ou seja, uma perda de 84%.
A oitava posição estava ocupada por outro japonês, Yohachiro Iwasaki, com uma fortuna estimada em 5,6 bilhões de dólares. Seu herdeiro, Fukuzo Iwasaki, morreu em 2012 com um patrimônio de 5,7 bilhões, equivalentes a 2,8 bilhões em dólares de 1987: ou seja, uma perda patrimonial de 50%.
Melhor sorte teve o nono homem mais rico do mundo em 1987: o canadense Kenneth Roy Thomson, proprietário da Thomson Corporation (hoje parte do grupo Thomson Reuters). Naquele ano, Kenneth desfrutava um patrimônio de 5,4 bilhões de dólares; quando morreu, em 2006, havia conseguido incrementá-lo para 17,9 bilhões, equivalentes a 9,3 bilhões em dólares de 1987. Neste caso, sua média de retorno anual foi de 2,9%. De novo, muito abaixo dos 6,8% certificados por Piketty.
Finalmente, em décimo lugar estava Keizo Saji, com um patrimônio de 4 bilhões de dólares. Saji morreu em 1999 com uma fortuna de 6,7 bilhões de dólares, a qual, descontando-se a inflação do período, equivalia a 4,6 bilhões em dólares de 1987. Ou seja, uma taxa média de retorno anual de 1,1%.
A extremamente complicada conservação do capital
Ludwig von Mises já alertava para a inevitabilidade deste fenômeno ainda na década de 1940:
“Numa economia de mercado, naquela em que há liberdade de empreendimento, e ausência de privilégios e protecionismos estatais, a riqueza de um indivíduo representa a recompensa concedida pela sociedade pelos serviços prestados aos consumidores no passado. E esta riqueza só pode ser preservada se ela continuar a ser utilizada — isto é, investida — no interesse dos consumidores.”
“Atribuir a cada um o seu lugar próprio na sociedade é tarefa dos consumidores, os quais, ao comprarem ou absterem-se de comprar, estão determinando a posição social de cada indivíduo. Os consumidores determinam, em última instância, não apenas os preços dos bens de consumo, mas também os preços de todos os fatores de produção. Determinam a renda de cada membro da economia de mercado.”
“Se um empreendedor não obedecer estritamente às ordens do público tal como lhe são transmitidas pela estrutura de preços do mercado, ele sofrerá prejuízos e irá à falência. Outros homens que melhor souberam satisfazer os desejos dos consumidores o substituirão.”
“Os consumidores prestigiam as lojas nas quais podem comprar o que querem pelo menor preço. Ao comprarem e ao se absterem de comprar, os consumidores decidem sobre quem permanece no mercado e quem deve sair; quem deve dirigir as fábricas, as fornecedoras e as distribuidoras. Enriquecem um homem pobre e empobrecem um homem rico. Determinam precisamente a quantidade e a qualidade do que deve ser produzido. São patrões impiedosos, cheios de caprichos e fantasias, instáveis e imprevisíveis. Para eles, a única coisa que conta é sua própria satisfação. Não se sensibilizam nem um pouco com méritos passados ou com interesses estabelecidos.”
Contrariamente ao que muitos imaginam, e ao que Thomas Piketty pretende demonstrar, não é nada simples conservar seu patrimônio numa economia de mercado: este sempre estará ao sabor (1) das volúveis e inconstantes preferências dos consumidores, (2) do surgimento de novos concorrentes que podem acabar roubando sua fatia de mercado, ou (3) de um possível reajuste (e posterior colapso) do preço dos seus ativos. É falso dizer que há um valor acima do qual a acumulação de capital passa a ocorrer de modo quase automático.
Ao contrário, aliás: quanto maior for o patrimônio pessoal de um indivíduo, mais complicado será fazê-lo crescer: as oportunidades para reinvestir todo o seu capital a altas taxas de retorno são muito escassas, a menos que se queira arriscar e se aventurar em outros mercados, nos quais não se tem nenhuma vantagem comparativa.
As mesmas razões que fazem com que um Estado grande seja um péssimo gestor de capitais servem para explicar por que os bilionários vão ficando sem ideias e aptidões para gerenciar sua fortuna — até o ponto em que não mais são capazes de se reinventarem continuamente, acabando por ver seu patrimônio reduzido, nem que seja apenas pela inflação. Não é à toa que a sabedoria popular a este respeito vale mais do que as elucubrações de muitos economistas míopes: from clogs to clogs in three generations [1], o que significa que a riqueza acumulada por uma geração já estará totalmente dissipada na terceira geração.
Atualmente, com efeito, nem sequer são necessárias três gerações. Bastam três décadas para se perder quase tudo.
Em 2013, os sobrenomes Tsutsumi, Mori, Reichmann, Iwasaki e Saji eram praticamente irrelevantes. Da mesma maneira, em 1987, muitos dos homens mais ricos da atualidade — Bill Gates, Amancio Ortega, Larry Ellison, Jeff Bezos, Larry Page, Sergey Brin, Mark Zuckerberg — estavam trabalhando numa garagem, ou estavam fazendo faculdade, ou estavam brincando no jardim de infância. Nenhum herdou sua atual fortuna. Veremos quantos deles seguirão na lista dentro de três décadas.
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Nota:
[1] Clogs é um tipo de sapato barato, feito inteiramente de madeira e comumente utilizado por operários que realizam trabalho pesado.
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Juan Ramón Rallo é diretor do Instituto Juan de Mariana e professor associado de economia aplicada na Universidad Rey Juan Carlos, em Madri. Ele é o autor do livro “Los Errores de la Vieja Economía“
Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil