O Rio de Janeiro, ao contrário de outros verões, não está sob as fortes chuvas de final de tarde. No entanto, estamos agora vivendo sob uma chuva de lixo, por conta da greve dos garis da Comlurb. Mas o que é a Comlurb? (essa pergunta é especialmente relevante para os leitores de fora da Cidade do Rio de Janeiro)
A Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) é uma sociedade de economia mista do Município do Rio de Janeiro. Isso significa que ela é uma empresa estatal, com finalidade de lucro, mas que tem acionistas privados também. A Comlurb é como a Petrobras, só que cata lixo ao invés de explorar petróleo e tem como acionista majoritário o Município do Rio, e não o Governo Federal. Eu comecei com essa comparação para mostrar o quanto é louco o arranjo da Comlurb.
A Petrobras, embora ainda tenha várias benesses públicas na extração e distribuição de derivados de petróleo, é financiada por investimentos do mercado e pelo lucro na venda de combustíveis e demais derivados de petróleo. Além disso, não é a Petrobras que regula o mercado de petróleo, sendo, no máximo, uma empresa favorecida pelo governo, mas submetida a regras de outro órgão de controle, a ANP (Agência Nacional do Petróleo), que faz a gestão do petróleo no país.
Já a Comlurb, de acordo com as leis n.º 3273/2001, que dispõe sobre a Gestão do Sistema de Limpeza Urbana no Município do Rio de Janeiro, n.º 4.969/2008, que dispõe sobre diretrizes para a gestão integrada de resíduos sólidos no Município do Rio de Janeiro, e o decreto n.º 21305/2002, que regulamenta a primeira lei citada, “é órgão municipal competente responsável pela gestão (e pela execução) do Sistema de Limpeza Urbana do Município do Rio de Janeiro”. (em itálico é o art. 1o do decreto citado e em negrito é um adendo meu resumindo a ideia apresentada pelo art. 3o do mesmo decreto).
Isso significa, no que tange ao lixo do Rio de Janeiro, que a Comlurb funciona como ANP e como Petrobras ao mesmo tempo, ou seja, funciona como gestora e fiscalizadora (ANP) e como executora do serviço (Petrobras). A Comlurb é, portanto, fiscalizadora de si mesma. E quando alguém é responsável pela própria fiscalização, é sinal de que não há muito controle na área.
E aqui vai outra situação muito estranha: a Comlurb é uma empresa privada, pois sociedades de economia mista são empresas privadas com controle público, mas não deixam de ser empresas privadas, com acionistas privados e práticas privadas. Quando essas leis municipais entregam à Comlurb, uma empresa privada, um poder típico de administração pública, que é o poder de polícia, está incorrendo em uma inconstitucionalidade. A situação é tão flagrantemente errada que o decreto supracitado diz que a Comlurb é um órgão municipal, pois esse tipo de poder em regra é exercido por órgãos municipais, que são estruturas internas do governo, como Secretarias, por exemplo (há exceções, como autarquias e fundações públicas, que podem exercer tal função, mas aqui também são estruturas de direito público, e não de direito privado). A Comlurb não é órgão municipal, pois não é estrutura interna de poder, mas sim empresa privada. O decreto em questão incorre, portanto, em uma mentira.
Continuando as bizarrices da Comlurb, que é uma empresa privada com poder público, ela também tem sua estrutura custeada não pelo seu serviço, mas por um tipo de tributo, a Taxa de Coleta Domiciliar de Lixo (TCL). Ou seja, ela funciona como empresa, mas vive de tributos e tem poder de polícia.
O resultado dessa mistura é que a Comlurb se autogarante um virtual monopólio na coleta de lixo da cidade, terceirizando poucas situações onde também ganha muito dinheiro, já que o monopólio dos aterros onde ficam os resíduos finais também é dela, com a Comlurb ganhando na concessão do serviço e na recepção do produto da concessão, além de ganhar na já citada taxa de lixo.
Quando a Comlurb para, o Rio para também. E esse é um dos problemas mais visíveis de um monopólio: a subordinação do consumidor frente ao produtor do serviço. No caso da Comlurb, isso fica mais evidente, já que até o preço pago é cobrado de maneira autoritária, via tributo.
A solução para a otimização e melhor prestação do serviço está na concorrência entre agentes privados, sem a participação do Estado, pois o regime de concessão, nesses casos, funciona apenas para transferir monopólio do Estado para uma única empresa, normalmente através de negociatas. O papel do Estado deve ser apenas o de garantir a concorrência plena para quem quisesse recolher lixo, com os moradores escolhendo a empresa mais eficiente, como em qualquer outro mercado, sem cobrança de taxa de lixo, mas sim com preço livremente acordado entre as partes. Essa, infelizmente, não é a regra nas prefeituras brasileiras, e o lixo brasileiro é uma imensa fonte de subornos e negociatas em torno de monopólios para o seu recolhimento. Não é à toa que empresas de recolhimento de lixo são grandes doadoras de dinheiro em campanhas municipais.
O lixo urbano incomoda muito, mas o lixo que é a administração pública brasileira contamina a tudo e a todos, e incomoda muito mais.
Bernardo Santoro é Mestrando em Direito (UERJ), Economia (Universidad Francisco Marroquín) e Pós-Graduado em Economia (UERJ). Professor de Economia Política da Faculdade de Direito da UERJ. Advogado e Diretor-Executivo do Instituto Liberal
Esse conteúdo foi originalmente publicado no portal do Instituto Liberal