Quando o terror era chamado ‘liberação’ na China

28/12/2013 11:52 Atualizado: 28/12/2013 11:54

Na China continental, a palavra ‘liberação’ é comumente usada para descrever a tomado do poder pelos comunistas em 1949.

A República Popular da China, se as narrativas oficiais e a historiografia convencional podem ser acreditadas, é um produto da revolução, a salvadora da China de um século de caos interno e tentativas fracassadas de se levantar e defender contra as potências coloniais industrializadas responsáveis por sua miséria. Nas palavras do presidente Mao, a China tinha finalmente “se levantado”.

Mas foi isso mesmo? Em seu trabalho mais recente, The Tragedy of Liberation, Frank Dikötter descreve os primeiros anos do regime do Partido Comunista Chinês (PCC), desde sua consolidação da Manchúria ocupada pelos soviéticos após a Segunda Guerra Mundial até o recuo e retirada dos nacionalistas para Taiwan, passando por campanhas sangrentas de coletivização e repressão política até a véspera do cataclísmico Grande Salto para Frente, em 1957.

The Tragedy of Liberation mostra que a primeira década da República Popular da China não foi menos brutal do que os desastres subsequentes do Grande Salto para Frente e da Revolução Cultural.

Dikötter, investigando os próprios arquivos do PCC, afirma que o regime enviou “pelo menos 5 milhões de civis para a morte prematura”. O terror e a matança perpetrados nesta primeira década, segundo nos é mostrado, não foi o resultado da inexistência de um sentimento popular excessivo que alguns historiadores tentam culpar e justificar os “excessos” da era Mao, mas sim um exercício deliberado do poder totalitário.

Desde o início, Dikötter dissipa a noção de que os comunistas estariam numa busca pelo domínio nacional como expressão natural do sentimento popular.

Embora alguns de fato tenham saudado o PCC como um libertador, a maioria dos chineses estava apreensiva e sem entusiasmo. Eles estavam mais preocupados com a recuperação pós-ocupação japonesa do que com a revolução ou em se engajar em violentas “lutas de classes”, como seus novos governantes em breve os mobilizariam.

Em vez disso, Dikötter expõe os fatos: o PCC, uma ala radical revolucionária que mal escapou da destruição nas mãos do governo central antes da Segunda Guerra Mundial, primeiramente agarrou-se às periferias do Norte da China, com a bênção soviética, e em seguida começou a corroer as forças nacionalistas exaustas e desorganizadas que mal tiveram a oportunidade de se recuperar da guerra de resistência de oito anos contra o Japão. Ao final de 1949, toda a China continental estava nas mãos de Mao.

“Odiados proprietários de terras”

Mesmo que a reforma agrária e a eliminação da “servidão” seja frequentemente descrita como um dos primeiros triunfos do ideal revolucionário, The Tragedy of Liberation mostra que para o PCC essas campanhas resultaram em pouco mais do que estratagemas para mobilizar a população rural, de outra forma ambivalente, contra seus vizinhos e estilos de vida tradicionais ancestrais.

Dikötter argumenta que a narrativa sobre os “odiados proprietários de terras” e a “aristocracia maligna” foi uma visão artificial inventada no interesse da justeza ideológica e da dominação econômica. A resultante coletivização reduziu a produtividade e deixou os camponeses mais famintos do que nunca.

Dikötter mostra, entre outras coisas, que o próprio termo “proprietário de terras” era pouco adequado para descrever a sociedade agrícola chinesa como esta de fato existia. Muitas comunidades camponesas, por exemplo, aquelas nas províncias do Sudeste densamente povoadas, possuíam um sistema semicoletivo em que todos os membros da comunidade compartilhavam virtualmente padrões de vida indistinguíveis.

O que observamos é o resultado horripilante das diretivas de cima para baixo que exigiam a rotulação e punição dos “proprietários de terras” – famílias consideradas “ricas”, segundo padrões ridículos como a posse de uma vaca extra ou um pote de açúcar – e os tornava alvos da luta de classes e perseguição.

Oficiais comunistas, recrutados das fileiras de bandidos e criminosos, incentivavam as populações locais a se voltarem contra esses infelizes, que poderiam perder sua propriedade, direitos e vida.

Nem todos os lugares foram receptivos ao controle comunista. Relutantes em trair seus vizinhos com os quais haviam coexistido pacificamente por gerações, grande parte dos camponeses ignorou as diretivas totalitárias tanto quanto possível. Nos dois primeiros anos de regime comunista, províncias como Guizhou tiveram levantes camponeses em massa envolvendo dezenas de milhares de pessoas.

Liberdades extintas

O país desenvolveu um nível sem precedentes de autoritarismo enquanto os comunistas extinguiam as liberdades que mesmo os nacionalistas no auge de seu poder não se atreveram a tocar.

Antes de 1949, religião, imprensa independente e câmbio estrangeiro foram objetos de pouca interferência por parte do governo central, mas o PCC não perdeu tempo em demonizá-los e extirpá-los da sociedade chinesa.

O sistema prisional nacionalista, reformado gradualmente, foi analisado por Dikötter em sua obra Crime, Punishment and the Prison in Modern China, de 2002. As prisões e campos de prisioneiros foram transformados pelos comunistas numa monstruosidade brutal à semelhança do sistema de reeducação pelo trabalho forçado dos gulagui soviéticos, que só muito recentemente começou a ser desmantelado na China.

The Tragedy of Liberation é um olhar sóbrio na ascensão do maior regime autoritário do mundo. Equilibrando uma combinação ótima de estilo jornalístico fácil de ler com análises detalhadas de dados de arquivo, Dikötter apresenta ideias angustiantes sobre a natureza do sistema comunista como este se manifestou na China continental.

The Tragedy of Liberation: a History of the Chinese Revolution 1945-1957” de Frank Dikötter é publicado pela Bloomsbury Publishing.