Promovendo direitos humanos numa China em transição

30/06/2012 03:00 Atualizado: 30/06/2012 03:00

David Matas, um advogado canadense de direitos humanos e candidato ao Prêmio Nobel da Paz. (Matthew Little/The Epoch Times)Bo Xilai era um favorito da comunidade empresarial canadense. Para o Conselho Empresarial Canadá-China, Bo era um amigo especial. Missões comerciais canadenses na China faziam questão de se reunirem com Bo. O primeiro-ministro Stephen Harper, quando foi à China este ano, saiu do seu caminho para se encontrar com Bo Xilai em 11 de fevereiro.

Em 2 de fevereiro deste ano, Wang Lijun, o vice-prefeito e chefe de polícia de Chongqing, foi rebaixado. Quatro dias mais tarde, ele visitou o consulado norte-americano em Chengdu por um dia inteiro. Quando ele saiu, a polícia de segurança chinesa o prendeu. Em 15 de março, Bo Xilai perdeu sua posição como secretário-geral do Partido Comunista Chinês (PCC) em Chongqing. Em 10 de abril, ele foi suspenso do Politburo.

Essas mudanças produziram uma série de boatos, especulações e análises, bem como muitas expressões de surpresa. Eu sou um advogado na prática privada em Winnipeg. Eu não sou um membro de um departamento de estudos sobre a China numa universidade, não sou um diplomata que fui enviado à China nem sou um jornalista que cobriu assuntos chineses. No entanto, quando estes eventos acorreram, talvez ninguém tenha estado menos surpreso do que eu.

Porque eu conhecia Bo Xilai. Eu nunca o encontrei, mas eu sabia quem ele era. Eu sou advogado de uma vítima de tortura numa ação judicial contra ele em Ontário. Houve outras ações similares em todo o mundo e, nas minhas viagens, eu encontrei outros demandantes processando Bo Xilai em outros lugares e seus advogados.

Uma mulher usando o pseudônimo de Annie em Washington DC disse ao Epoch Times numa reportagem publicada em sua edição de 17 de março de 2006, que seu ex-marido colhia córneas de praticantes do Falun Gong no hospital de Sujiatun entre 2003 e 2005. Annie também disse que outros médicos no mesmo hospital colhiam outros órgãos destas vítimas, que os praticantes do Falun Gong foram mortos durante a colheita e que seus corpos foram cremados.

O Falun Gong é uma atualização e mistura de antigas tradições espirituais chinesas e exercícios, iniciado em 1992 com os ensinamentos de Li Hongzhi. Em 1999, o então líder chinês Jiang Zemin, afrontado por sua ampla e crescente popularidade, levou o PCC a banir a prática.

A entrevista de Annie gerou uma controvérsia sobre se ela estava ou não dizendo a verdade. O governo da China, como se poderia esperar, negou o que ela disse. A ‘Coalizão para Investigar a Perseguição ao Falun Gong’, uma ONG de Washington DC, perguntou a David Kilgour e a mim para investigarmos suas reivindicações, o que nós concordamos fazer.

Sujiatun é um distrito na cidade de Shenyang. Shenyang é uma cidade na província de Liaoning.

Bo Xilai é um príncipe. Seu pai foi vice-primeiro-ministro da China. Ele foi nomeado prefeito da cidade de Dalian na província de Liaoning de 1993-2001. Em 2000, ele foi nomeado vice-secretário do PCC na província de Liaoning. De fevereiro de 2001 a fevereiro de 2004, ele foi governador da província de Liaoning.

Enquanto ele estava em Liaoning, Bo desenvolveu uma reputação de ser um líder brutal na perseguição ao Falun Gong. O período que o marido de Annie trabalhou no hospital de Sujiatun e o período em que Bo Xilai era governador da província onde o hospital está localizado coincidem.

Em fevereiro de 2004, Bo foi a Pequim, onde se tornou ministro do Comércio. Enquanto ministro do Comércio, ele viajou ao redor do mundo para promover o comércio internacional com a China e os investimentos na China. Suas viagens deram a vítimas a oportunidade de servi-lo com ações legais por seu papel na perseguição ao Falun Gong na província de Liaoning. Processos instaurados contra ele em 13 países diferentes, incluindo aquele em que estou envolvido.

O consulado norte-americano em Shanghai escreveu em dezembro de 2007 para o Departamento de Estado em Washington: “Gu [o Prof. Gu de Nanjing] notou que Bo estava manobrando para ser promovido a vice-primeiro-ministro. No entanto, o primeiro-ministro Wen tinha argumentado contra a promoção, citando as inúmeras ações judiciais intentadas contra Bo na Austrália, Espanha, Canadá, Inglaterra, Estados Unidos e em outros lugares por membros do Falun Gong. Wen argumentou com sucesso que a significativa e negativa exposição internacional de Bo fazia dele um candidato inadequado para representar a China num nível ainda mais elevado internacionalmente.” (1)

Bo se tornou um membro do Politburo e passou de ministro do Comércio em Pequim para chefe do PCC em Chongqing em novembro de 2007.

De 2003 a 2008, Wang Lijun foi o chefe do ‘Centro de Pesquisa Psicológica In-Loco’ da Secretaria de Segurança Pública da cidade de Jinzhou, província de Liaoning. Ele conduziu uma pesquisa sobre um método duradouro de injeção letal que permitia remover os órgãos para transplantes antes que a pessoa morresse como resultado da aplicação. Ele ainda conduziu outra pesquisa para impedir que os pacientes que receberam órgãos de prisioneiros injetados viessem a sofrer efeitos adversos das drogas injetadas.

Em setembro de 2006, ele recebeu o Prêmio de Contribuição Especial e Inovação da Fundação de Ciência e Tecnologia de Guanghua por suas pesquisas e testes do método de injeção letal. Em seu discurso, ele falou sobre “milhares” de casos de transplantes in loco de órgãos de prisioneiros injetados em que ele e sua equipe participaram. Ele disse “ver alguém ser morto e ver os órgãos dessa pessoa sendo transpostos para os corpos de várias outras pessoas é profundamente comovente”, uma observação que seria digna de Josef Mengele.

Wang trabalhou sob Bo na província de Liaoning em 2003 e 2004. Em 2008, pouco depois de Bo ser movido de Pequim para Chongqing, Bo trouxe Wang da província de Liaoning. Wang ocupou vários cargos na segurança pública em Chongqing e em 2011 tornou-se vice-prefeito da cidade sob Bo.

A China tem duas estruturas de poder paralelas: uma estrutura do Partido Comunista e uma estrutura estatal. A estrutura do Partido governa a estrutura do Estado. Cada posição no Estado, da base até o topo do sistema, do centro até as regiões periféricas, tem uma posição paralela no PCC. É o órgão do Partido que instrui o órgão paralelo do Estado.

No topo, as duas estruturas se encontram na mesma pessoa. O chefe do Partido Comunista da China, o seu secretário-geral, é também o presidente do Estado. No entanto, em qualquer outra parte do sistema, os dois componentes, na maior parte das vezes, divergem. Uma pessoa ou grupo forma a estrutura do Estado. Outra pessoa ou grupo forma a estrutura instrutora do Partido.

Os funcionários do Estado são membros do Partido e têm funções no Partido. No entanto, normalmente, suas funções no Partido e suas funções instruídas pelo Estado divergem. Através do Partido, eles controlam um componente do sistema estatal. Através do Estado, eles são controlados por outro componente do sistema partidário.

A estrutura do Partido

Ideologicamente, o comunismo na China abandonou seu compromisso com o socialismo. No entanto, essa mudança de socialismo para capitalismo não mudou a existência dessa dual estrutura de poder. O Partido ainda instrui o Estado.

Consequentemente, quando olhamos para onde o poder está na China, quem faz o quê, nós não olhamos, como no resto do mundo, para o Estado; nós olhamos para o Partido. Se quisermos saber quem está no comando, nós precisamos saber quem está no comando do Partido.

O Partido Comunista é regido pelo seu Comitê Permanente. O Comitê Permanente é composto por nove indivíduos com mandatos de cinco anos. A última rodada de nomeações foi em outubro de 2007. Assim, uma nova rodada está chegando em breve.

Altos cargos no Partido Comunista têm uma idade de aposentadoria de 68 anos. Desta vez, sete dos nove atuais membros do Comitê Permanente têm 68 ou mais. Portanto, neste fim de ano, está programado para haver uma mudança maciça na liderança do Partido.

Da perspectiva dos direitos humanos, o membro mais importante do Comitê Permanente é a pessoa alocada com a responsabilidade de chefiar o Comitê dos Assuntos Político-Legislativos (CAPL). Esta pessoa é a principal responsável pela repressão e a liberdade, pelo Estado de Direito e sua violação.

A Agência 610, o órgão responsável pela repressão ao Falun Gong (nomeado segundo sua data de criação, 10 de junho de 1999) é um departamento do Partido, não um departamento do Estado. A Agência 610 é o instrumento do Partido que instrui a polícia, as prisões, o Ministério Público e os tribunais sobre a repressão ao Falun Gong. A Agência 610 está sob a jurisdição do CAPL.

O atual chefe do CAPL é Zhou Yongkang. De 2002 a 2007, Zhou Yongkang foi ministro da Segurança Pública. É indicativo da natureza da estrutura de poder na China que o movimento de Zhou Yongkang de ministro encarregado da segurança pública para uma posição do Partido como chefe de um Comitê do Partido seja considerado uma promoção. Como chefe do CAPL, Zhou tornou-se o dirigente do Partido responsável por instruir seu antigo Ministério da Segurança Pública e seu sucessor como ministro da Segurança Pública.

O Partido hierarquiza os membros do Comitê Permanente. O secretário-geral tem a classificação de primeiro lugar. O chefe do CAPL tem a mais baixa posição, o nono lugar. No entanto, quando se trata do respeito aos direitos humanos e suas violações, o poder está com o cabeça deste comitê.

Zhou Yongkang nasceu em dezembro de 1942. Ele fará 70 em dezembro deste ano. Desta forma, ele é um dos sete programados para a aposentadoria com a mudança do Comitê Permanente prevista para o fim deste ano. Antes que ele fosse purgado, a pessoa esperada para substituí-lo era Bo Xilai, o ex-membro do Politburo e secretário do PCC em Chongqing.

O Partido Comunista está estruturado como uma sequência de comitês dentro de comitês. O comitê no âmago mais profundo é o Comitê Permanente. A próxima camada exterior é o Politburo, ou Gabinete Político do Comitê Central do Partido Comunista da China.

Foi relatado que o primeiro-ministro chinês Wen Jiabao, numa reunião fechada do Partido Comunista em Zhongnanhai em 14 de março, abordou a colheita de órgãos e o envolvimento de Bo Xilai. Uma fonte atribui estas declarações a Wen: “Sem anestesia, a colheita de órgãos humanos de pessoas vivas e sua venda por dinheiro, isso é algo que um ser humano poderia fazer? Coisas como esta têm acontecido há muitos anos. Estamos prestes a nos aposentar, mas isso ainda não está resolvido. Agora que o incidente Wang Lijun é conhecido pelo mundo inteiro, use isso para punir Bo Xilai. Resolver a questão do Falun Gong deve ser uma escolha natural.” (2)

O Partido anunciou no dia seguinte que Bo perdeu sua posição como secretário-geral do PCC em Chongqing.

O que acontece na China atrás de portas fechadas em reuniões do Partido Comunista não é, por sua própria natureza, uma questão de registro público verificável. O que poderia ser visto por qualquer pessoa neste momento seria o levantamento da censura sobre o assassinato do Falun Gong por seus órgãos. No final de março de 2012, os resultados de pesquisa sobre transplantes de órgãos no Baidu, o maior buscador da internet chinesa que é oficialmente censurado, revelou informações do meu trabalho e de David Kilgour sobre o relatório “Colheita Sangrenta” e o envolvimento de Wang Lijun na colheita de órgãos.

É difícil deixar um gênio apenas um pouco fora da garrafa. Conhecimento se difunde, mesmo numa sociedade sujeita à censura. Vazamentos seletivos e referências ao abuso do transplante de órgãos obrigatoriamente têm um efeito além da luta pelo poder em si mesma, um impacto real sobre o abuso.

O inverso também é verdadeiro. O abuso de transplante de órgãos está tendo um impacto real na luta pelo poder na China.

Lições da história

Eu estava ciente do esforço feito por Bo Xilai de cultivar a comunidade empresarial canadense ao longo dos anos e tinha sugerido às pessoas da comunidade empresarial que eu conhecia para ficarem longe de Bo Xilai, que esse cara era problema. Quando ouvi dizer que o primeiro-ministro Harper estava planejando se reunir com Bo durante sua viagem em fevereiro, eu publicamente o pedi para não fazê-lo.

Esta história me sugere algumas lições. O Partido Comunista Chinês não é um monólito. Enquanto que a variação do debate político é muito mais limitada do que numa democracia, ainda há alguma. Além disso, não há oposição tolerada fora do Partido. A gama completa de discurso permitido é encontrada dentro do Partido.

Não há ninguém dentro do Partido que adote e promova os direitos humanos da maneira que gostaríamos. Os verdadeiros ativistas chineses de direitos humanos estão todos no exílio ou na prisão. Dentro do Partido, não há nenhum cavaleiro branco. O Partido vai de tons de cinza ao negro mais profundo. Ao lidar com a China, temos de dar ajuda a aqueles que estão pressionando o Partido por direitos humanos e ficar longe dos que violam os direitos humanos para construir seus próprios currículos.

Wen Jiabao e Bo Xilai não são apenas dois indivíduos. Eles representam facções e correntes de opinião dentro do Partido. O que os separa torna-se potencialmente um elemento em jogo na luta pelo poder entre as facções.

A questão não é se Wen ou Bo tem sucesso como indivíduo. Bo está agora marginalizado. No entanto, há outros que têm opiniões semelhantes a sua. O facciosismo e a luta pelo poder na China não acabarão com a reconstituição do Comitê Permanente atual.

Nos últimos cinco anos, durante o tempo deste Comitê Permanente que está de saída, o discurso chinês sobre o Falun Gong e o abuso de transplante de órgãos foi congelado. Quando pessoas de fora protestaram aos oficiais chineses sobre a perseguição ao Falun Gong, a resposta veio difamando o Falun Gong. Quando pessoas de fora questionam o abuso do transplante de órgãos na China, a resposta foi que as fontes de órgãos são unicamente de prisioneiros condenados à morte que seriam executados de qualquer maneira, nos dê tempo, vamos contornar isso e corrigi-lo eventualmente.

Agora, a perseguição ao Falun Gong e o abuso do transplante de órgãos se tornaram parte da luta pelo poder na China. Um lado busca a impunidade, o outro usa as violações para desacreditar seus oponentes.

No entanto, uma luta pelo poder é sempre mais do que apenas isso. Há valores que competem em jogo. O lado de Bo Xilai tem medo e ciúmes de um sistema de crença moral, espiritual e popular. O lado do primeiro-ministro Wen Jiabao aprecia a conexão do Falun Gong às antigas tradições chinesas e valoriza sua moralidade.

O Canadá neste debate chinês não deve ser um espectador silencioso. Enquanto as lutas internas de poder são normalmente assuntos de interesse apenas interno, a perseguição ao Falun Gong e o abuso do transplante de órgão dizem respeito a toda a humanidade. São crimes contra a humanidade, são crimes contra nós. Devemos aproveitar a oportunidade que esta luta pelo poder oferece para apoiar o lado que defende o fim da perseguição ao Falun Gong e pôr um fim ao abuso de transplante de órgãos.

Na atual transição chinesa, o Canadá tem um interesse na democracia, na liberdade e nos direitos humanos, que deve incentivar.

(1) Cheng Jing, “Wen Jiabao pressiona pela retratação ao Falun Gong, diz informante“, Epoch Times, 11 de abril de 2012.
(2) ID de referência, 07Shanghai771, 4 de dezembro de 2007, parágrafo 25, divulgado pelo Wikileaks.

Nota do Editor: Este artigo é baseado numa palestra dada por David Matas, o advogado de direitos humanos e de imigração reconhecido internacionalmente, num fórum sobre a China realizado na Colina do Parlamento, Canadá, em 30 de maio de 2012. O Sr. Matas assumiu uma série de casos de maior repercussão envolvendo proeminentes figuras chinesas, oficiais e líderes, que lhe conferiram conhecimentos e experiência específicos sobre a China e o sistema jurídico chinês. O Sr. Matas foi um candidato ao Prêmio Nobel da Paz em 2010 por seu trabalho na colheita de órgãos na China. Ele também é membro da Ordem do Canadá e um palestrante frequente no Parlamento canadense.