Todos os anos, o destaque das “duas sessões” é o “relatório de trabalho do governo” da China. Este ano, no entanto, foi um pouco diferente. Após o relatório ser lançado, ele não foi convincente o suficiente para criar um clima de otimismo e celebração.
Sem outras opções, a agência estatal de notícias Xinhua publicou uma entrevista com o diretor da Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma da China, Xu Shaoshi, intitulada “Refutando a nova rodada de previsões econômicas sombrias, a economia da China agora segue em desenvolvimento constante”.
O artigo serviu para anunciar ao mundo que a economia chinesa agora está totalmente dependente da confiança do mundo sobre a China. Se a confiança é alta, a economia da China será boa. Se um cenário sombrio prevalecer, a economia da China se dirigirá para uma recessão.
Na verdade, se a economia da China vai bem ou mal depende inteiramente dos fatores fundamentais da própria economia da China. Atualmente, as perspectivas econômicas da China não são otimistas, seja na economia real ou na economia fictícia, ou seja, os sistemas financeiros. É por isso que, quando o relatório de trabalho tenta cobrir todos os aspectos da economia, os problemas aparecerão em todos os lugares, como no velho ditado chinês: é como “tentar conter várias pulgas com os dedos”.
Muitos projetos, financiamento desconhecido
O relatório de trabalho afirma: “Com a transformação do modo de crescimento econômico da China, com uma política fiscal proativa, uma política monetária estável e saudável e outros fatores favoráveis, a economia da China continuará seu desenvolvimento constante.”
Esta premissa é em si contraditória. “Uma política fiscal proativa” significa que os governos precisam gastar mais. No entanto, “uma política monetária estável e saudável” tem como objetivo controlar a oferta de moeda.
Nos últimos anos, cada projeto de investimento adicional do governo tem contado com bancos concedendo empréstimos. Agora que o dinheiro não está sendo impresso e títulos não são emitidos, de onde virá o dinheiro? O relatório de trabalho não deixa claro, mas menciona muitos projetos que exigem enormes volumes de dinheiro.
Gastos de militares e de manutenção da estabilidade
De acordo com relatórios oficiais, haverá um aumento de 12,2% nos gastos militares da China este ano, perfazendo um total de 808,2 bilhões de yuanes (c. US$ 131,6 bilhões), um aumento de 1,5% em relação ao ano passado.
O custo de manutenção da estabilidade não foi mencionado, mas, segundo dados de vários anos anteriores, não será menor do que os gastos militares. Especialmente o fortalecimento do controle da internet, que requer mão de obra e financiamento adicional. Com protestos em Xinjiang e no Tibete se tornando uma realidade inevitável, a manutenção da estabilidade e as despesas militares só aumentarão.
Em 2013, a receita fiscal total do governo foi de 12,9 trilhões de yuanes. Se somarmos os gastos militares e os custos de manutenção da estabilidade, esses gastos já ultrapassam 1,6 trilhões de yuanes, ou 12,4% da receita total.
Redução da pobreza
O relatório de trabalho afirmou que a meta de redução da pobreza, de incluir mais de 10 milhões de pessoas, foi definida para 2014. Este é um projeto que custará muito dinheiro.
De acordo com Gao Hongbin, um membro do Comitê da Conferência Consultiva Política Nacional e ex-vice-ministro da Agricultura, a meta de redução da pobreza não é realista. “Com cada yuan a mais no padrão de pobreza da China, haverá um aumento de 680 mil pessoas pobres”, disse Gao.
Portanto, falar de redução da pobreza é falta de bom senso. Se o meta anual não faz sentido, outras declarações, como “a pobreza não deve ser herdada”, naturalmente também são conversa fiada.
Controle da poluição
Este ano, o objetivo anunciado dos líderes chineses é declarar guerra à poluição do ar, água e solo, criar normas de proteção ambiental e eliminar indústrias obsoletas.
A determinação parece forte. O prefeito de Pequim fez inclusive uma promessa solene: “Se o problema da poluição do ar não for corrigido, eu oferecerei minha cabeça!”
Na província de Hebei, onde a produção industrial está conectada à qualidade do ar de Pequim, uma regulamentação rígida foi definida: “Um aumento de 1 tonelada na produção de ferro e aço custará sua carreira imediatamente.”
Mas o problema é que nenhum dos três tipos de poluição é fácil de eliminar.
Em janeiro eu escrevi um artigo intitulado “Controle da Poluição do Solo: a dificuldade da China em imitar o Japão”. O texto explica como o Japão usou a substituição do solo para o tratamento de metais pesados em terrenos contaminados. Isto é relativamente barato e rápido de realizar. O tempo de limpeza levou 33 anos por hectare e custou cerca de 180 mil yuanes por hectare em média.
Mas os líderes chineses admitiram oficialmente que a China tem 50 milhões de hectares de terras agrícolas contaminados por metais pesados com gravidade entre média e séria. Especialistas envolvidos na investigação disseram que há 300 milhões de hectares. Com esse tipo de poluição maciça, permanece uma grande pergunta onde o solo para substituição será obtido. O financiamento para a limpeza é uma dor de cabeça ainda maior.
Consequentemente, se na próxima década a China vier a anunciar oficialmente que “a guerra contra a poluição tem feito grandes progressos”, isso é falsificação de dados ou o processo de limpeza é apenas propaganda para enganar o público.
Há muitos projetos que precisam de dinheiro, e não vou enumerá-los todos aqui. Farei simplesmente uma análise de onde o dinheiro poderia vir.
Novas fontes de receita de impostos
Os governos não são os criadores diretos de riqueza material. Num país normal, em condições normais, um governo pode aumentar a receita fiscal aumentando os impostos ou emitindo títulos, e deve haver limites ou parâmetros para o volume de títulos emitidos. Ultrapassar esses limites criará grandes problemas.
A China tem sofrido com o problema do excesso de emissão de títulos locais nos últimos anos, e o relatório de trabalho listou a redução da dívida do governo local como uma meta. Portanto, o aumento dos impostos se torna a única opção para gerar mais receitas fiscais.
Há dois métodos para aumentar o imposto de renda. Um deles é elevar a taxa de imposto; o outro é criar novas fontes de impostos pelo ajuste da estrutura industrial, melhorar o ambiente de investimento, atrair novos investimentos e ajudar a facilitar mais empresas.
A margem para aumentos de impostos na China é quase zero. Nos últimos três anos, tem havido muitas queixas sobre os níveis dos impostos. O departamento fiscal do regime já esgotou todos os meios de cobrança.
Coletar impostos antecipadamente se tornou uma prática comum e tem sido criticada em vários artigos, como o intitulado “Coleta de imposto com antecedência: uma maneira de garantir o crescimento matando a galinha dos ovos de ouro”.
O regime também admite que a supercarga tributária da China é pesada demais. Em fevereiro, a Academia Nacional de Estratégia Econômica da China publicou um relatório intitulado “Realizando a reforma do sistema fiscal de forma abrangente e profunda”. O relatório cita 2.013 dados que mostraram que a receita fiscal da China atingiu 1,29 trilhões de yuanes, com uma carga tributária média de quase 10 mil yuanes por pessoa. Não é aconselhável aumentar ainda mais os impostos.
Consumo doméstico
A reestruturação industrial é ainda mais difícil. Durante o regime dos ex-líderes chineses Jiang Zemin e Hu Jintao, a exportação foi a principal força motriz do crescimento econômico da China. Além disso, os governos locais em todos os níveis investiram pesadamente em projetos de infraestrutura. Os líderes atuais querem mudar para uma economia baseada no consumo interno. O relatório de trabalho também listou várias metas de reforma, mas não indicou como alcançar essas metas.
Claramente, nenhum dos três métodos utilizados no passado para impulsionar a economia da China é adequado para as novas metas. Por um lado, o investimento do governo não estará disponível por algum tempo, como o relatório de trabalho indica: “uma política monetária estável e saudável” será efetuada.
O comércio exterior tem muitas “bolhas”, porque muitas empresas falsas foram criadas com o objetivo de movimentar o dinheiro quente/especulativo para dentro e fora da China. Além disso, o estouro da bolha imobiliária é apenas uma questão de tempo.
A reestruturação da economia e a melhoria da taxa de emprego e da renda nacional são muito comentadas, mas sem substância. Mais de 80% da população da China está abaixo do nível de renda baixa ou média. Grandes populações de desempregados mal conseguem sobreviver. Famílias de baixa renda não têm dinheiro extra para gastos não-essenciais. O grupo de renda média tem seu dinheiro amarrado em hipotecas.
Resumindo, há um longo caminho para converter a economia chinesa de um modelo orientado à exportação para um que priorize o consumo doméstico.
Metas excessivas
Há muitas metas a serem alcançadas no relatório de trabalho, e algumas delas até mesmo se contradizem. É como tentar segurar pulgas com seus dez dedos: você pega uma e perde outra.
Por exemplo, o relatório de trabalho menciona “a mudança do modo de crescimento econômico” e “a redução em grande escala da poluição da água, solo e ar”. Isto é mais fácil dizer do que fazer.
Com a gigante escala de poluição, é difícil até mesmo reduzir o avanço da poluição. A indústria petroquímica é a principal contribuinte fiscal da China e a maior poluidora. Para deter a poluição, é preciso começar com as empresas estatais Sinopec e CNPC. Mas isso é quase impossível no momento.
Na província de Hunan, centro da China, o crescimento econômico depende de chumbo, zinco e mineração de outros metais não-ferrosos que poluem todos os principais corpos d’água na província. A indústria de mineração não fez a província rica, mas danificou as fundações da província para o desenvolvimento sustentável.
Durante as duas sessões deste ano, o governador da província de Hunan pediu mais apoio fiscal ao governo central porque agora a província tem mais de 6,4 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza, ultrapassando as populações totais de certas províncias, como Ningxia e Qinghai.
O relatório de trabalho enfatizou a promoção de uma “política fiscal proativa”. O slogan já existe há muito tempo, por isso este ano uma nova definição foi feita: “As despesas fiscais facilitarão a construção mais centralizada, civil e social.”
Se há relação civil, então haverá apenas investimento do governo, e a fonte de financiamento precisa ser alocada em primeiro lugar. Nos últimos mais de dez anos, o regime chinês tem empurrado a economia, imprimindo mais dinheiro, emitindo mais títulos locais e aumentando os investimentos do governo. Ele se tornou a maior máquina de impressão de dinheiro do mundo. As medidas acima também levaram a uma economia altamente inflacionada e a governos locais atolados em dívidas.
O relatório de trabalho pretende realizar uma “política monetária estável e saudável”, o que significa sem aumento de dinheiro e emissão de títulos. Isto contradiz a “política fiscal proativa” do relatório.
Além disso, uma série de governos locais está esperando a “política fiscal proativa” para estimular o crescimento econômico. O governador da província de Qinghai, por exemplo, queixou-se ao primeiro-ministro Li Keqiang que, nos últimos anos, ele tem assistido ao noticiário da noite da emissora estatal CCTV por sinais de estímulo econômico. E há muitos outros como ele que observam ansiosamente o regime central esperando por estímulo fiscal.
Ao falar sobre a economia chinesa, o crescimento do PIB não é um indicador muito significativo agora, porque este número pode ser manipulado por todos os níveis do governo.
A “confiança” pode, em alguma medida, atrair dinheiro quente, mas não pode apoiar o desenvolvimento de um país no longo prazo, sem mencionar que a confiança do público na situação econômica de um país não é decidida pela propaganda, mas sim com base nos fatores reais subjacentes à economia. Em outras palavras, o julgamento das pessoas é baseado em se a economia real e a fictícia são saudáveis ou não.
He Qinglian é uma proeminente autora chinesa e economista que atualmente vive nos Estados Unidos. Ela é autora de “China’s Pitfalls”, que trata da corrupção na reforma econômica da China da década de 1990, e “The Fog of Censorship: Media Control in China”, que aborda a manipulação e restrição da imprensa. Ela escreve regularmente sobre questões sociais e econômicas da China contemporânea