Estados são estruturas guerreiras. Isto é assim desde que apareceu a primeira forma de Estado, o Estado-Templo na antiga Mesopotâmia (provavelmente a primeira monarquia, em Kish, na Suméria). Foi assim nos proto-Estados das hordas de predadores que rumaram para o Ocidente a partir das margens setentrionais do Mar Cáspio. Foi assim nas cidades-Estados monárquicas da antiguidade, nos Estados feudais antigos e nos Estados teocráticos associados ao chamado modo de produção asiático. Foi assim nos Estados feudais europeus medievais e nos Estados do feudalismo oriental mais recente (como no Japão). Foi assim nos Estados principescos (de que tratou Maquiavel) e nos Estados reais. E foi assim na forma atual do Estado-nação que surgiu com a paz de Westfália no século 17. Quem mitigou a fome pantagruélica por terra ou “espaço vital” (o expansionismo territorial) e o destrutivo impulso guerreiro do Leviatã foi a democracia reinventada pelos modernos, dando origem ao Estado democrático de direito. Ainda assim, mesmo o Estado democrático de direito continuou eivado de quistos autocráticos, continuou mantendo uma estrutura hierárquica regida por modos de regulação, em grande parte, autocráticos (a despeito da democracia). A democracia dos modernos surgiu para proteger os cidadãos contra o seu próprio Estado, já que sua mão pesada, desenhada para a guerra contra inimigos externos, não conseguia evitar que esse tronco gerador de programas verticalizadores da rede social acabasse construindo inimigos entre os de seu próprio povo (quer dizer, da população arrebanhada dentro de suas fronteiras, estabelecidas estas últimas, via de regra, manu militari). Não conseguiu democratizar suficientemente o Estado (na medida em que também não conseguiu horizontalizar boa parte de suas instituições), mas conteve alguns de seus efeitos mais perigosos.
Deve-se porém reconhecer que, apesar de todas as limitações da democracia dos modernos (a democracia representativa, formal e política realmente existente), ela trouxe, entre outras, uma vantagem notável (e inegável): Estados democráticos de direito não costumam guerrear entre si. Quem duvidar desta afirmação, deve dar exemplos de guerras (quentes) entre dois Estados democráticos de direito (sobretudo entre aqueles que experimentam a democracia representativa em seu sentido pleno, quer dizer, respeitando os critérios da liberdade, da eletividade, da publicidade ou transparência, da rotatividade ou alternância, da institucionalidade e da legalidade e, como consequência de todos esses, da legitimidade democrática). Quem procurar, dificilmente encontrará. Encontrará, isto sim, guerras entre Estados democráticos de direito e ditaduras (como a guerra das Malvinas). E encontrará, é claro, guerras entre dois ou mais Estados autocráticos.
Pois bem. Dito isto (consideração necessária para entender o que vem a seguir), podemos afirmar que a guerra atual entre Israel e o Hamas é uma guerra entre um Estado democrático de direito e um proto-Estado autocrático. Sim, o Hamas é a Irmandade Muçulmana na Palestina e essa organização político-militar, como se sabe, é um proto-Estado (reivindicando para si o direito de usar a força contra seus inimigos, estabelecendo objetivos nacionais, prestando serviços sociais nas áreas de saúde, educação, segurança e outras). Um Estado palestino (reconhecido, posto que já existe de fato como proto-Estado) sob influência do Hamas, não evitará a guerra com Israel. Pelo contrário. Mesmo sendo reconhecido internacionalmente pelas outras nações como legítimo Estado, não abandonará por isso sua natureza. A menos que este Estado palestino seja um Estado democrático de direito (o que não é muito fácil obter diante da hegemonia crescente do jihadismo e de outros fundamentalismos dentro da população muçulmana). Quem não entender a afirmação da última frase deve reler os dois parágrafos anteriores.
Portanto, não é de falta de Estado o problema na Palestina e sim de falta de democracia. Já há excesso de Estado (autocrático) na região. E mesmo o Estado de Israel, um Estado democrático de direito construído meio artificialmente pelos ingleses e reconhecido universalmente pelo mundo (menos por algumas correntes muçulmanas), não pode se comportar democraticamente nas suas relações externas. Para perceber isso é preciso entender que a democracia dos modernos – e inclusive a dos antigos – só vige para dentro das fronteiras do Estado e nunca na política externa. Até mesmo os atenienses, como observou Hannah Arendt (1959) em A Questão da Guerra, sabiam que não se comportavam democraticamente quando guerreavam com as outras cidades-Estado da região. Até hoje a política internacional ainda não foi violada pela ideia e pela prática da democracia. Volta-se aqui, então, à afirmação inicial de que para não haver guerra (quente ou fria ou como política pervertida como continuação da guerra por outros meios), havendo Estados (no plural) coexistindo, sobretudo em uma mesma região (com contiguidade ou proximidade territorial) é necessário que esses Estados sejam Estados democráticos de direito.
Na região onde se situa o Estado de Israel não existem praticamente Estados democráticos de direito (além de Israel). Nem mesmo os aliados tácitos de Israel no recente conflito israelo-palestino – como o Egito – são Estados democráticos de direito. Não há com quem Israel celebrar e manter a paz, a não ser por razões táticas, com uma ou outra autocracia (como o Egito nas mãos dos militares nacionalistas e o Líbano acossado internamente pelo Hezbollah e as monarquias da Jordânia e da Arábia Saudita). A Síria do ditador Assad e o Irã teocrático dos aiatolás estão fora inclusive dessas possibilidades táticas.
Voltando ao conflito israelo-palestino ou, mais diretamente, à guerra atual entre o Estado de Israel e o proto-Estado do Hamas, deve-se compreender a dificuldade de celebrar um acordo de paz com uma instituição que no seu preâmbulo declara: “Israel existirá e continuará existindo até que o Islã o faça desaparecer, como fez desaparecer a todos aqueles que existiram anteriormente a ele (segundo palavras do mártir, Iman Hasan al-Banna, com a graça de Alá)”. Esse Banna (citado entre parênteses) fundou a Irmandade Muçulmana em 1928 com o objetivo de libertar a pátria islâmica do controle dos estrangeiros e dos infiéis (kafir) e estabelecer um Estado islâmico unificado sob o lema (declarado ou oculto, pouco importa) de que “a jihad é o único caminho”.
A mesma constituição (ou estatuto) do Hamas, proclamado em 18 de agosto de 1988, estabelece no seu Artigo 32 a seguinte barbaridade (reproduzindo a fraude da existência de um Protocolo dos Sábios de Sião – documento falso, forjado em 1897 pela Okhrana, a polícia secreta do Czar Nicolau II – que descreve um projeto de conspiração por parte dos judeus e maçons de modo a atingirem a dominação mundial através da destruição do mundo Ocidental e principalmente da raça branca). Vale a pena ler com atenção esse artigo:
“Art. 32 O sionismo mundial e as potências colonialistas, por meio de manobras espertas e meticuloso planejamento, tentam afastar os países árabes, um a um, do círculo do conflito com o sionismo, a fim de, finalmente, conseguir isolar o povo palestino. Já levaram o Egito para fora do círculo do conflito, em grande parte através do traidor Acordo de Camp David (de setembro de 1978), e está tentando arrastar outros países árabes para acordos semelhantes, de forma a ficarem fora do círculo do conflito. O Movimento de Resistência Islâmica convoca todos os povos árabes e muçulmanos a lutarem seriamente e diligentemente a fim de prevenir esse terrível esquema, bem como alertar as massas dos perigos inerentes à exclusão do círculo do conflito com o sionismo. Hoje é a Palestina, e amanhã será algum outro país ou países, pois o plano sionista não tem limites, e depois da Palestina pretenderão se expandir do Nilo até o Eufrates, e quando terminarem de devorar uma área, estarão famintos de novas expansões, e assim por diante, indefinidamente. O plano deles está exposto nos Protocolos dos Sábios de Sião, e o comportamento deles no presente, é a melhor prova daquilo que lá está dito. Deixar o círculo do conflito com o sionismo é um ato de alta traição; todos os que o fazem devem ser amaldiçoados. “Quem (quando combatendo os infiéis) vira as costas para eles, ao menos que seja uma manobra de batalha, ou para se juntar a outra companhia, incorre na ira de Alá, e sua morada deverá ser o inferno. Seu destino será do maior infortúnio.” (Alcorão, 8:16)”.
Acrescente-se que não é só o Hamas que se organiza como proto-Estado na região. Recentemente apareceu o Isis – Estado islâmico no Iraque e no Levante, que pretende erigir um califado. E dentre os 1 bilhão e 200 milhões de muçulmanos, pelo menos 200 milhões estão sob a influência do jihadismo e se organizam militarmente para alcançar seus objetivos: ou seja, têm, todos, projetos de Estado.
Alguém pode argumentar que não se pode viver sem Estado (o que é rigorosamente falso: existem povos pré-patriarcais que remanescem sem Estado e existem povos patriarcais que mantêm sua cultura sem terem se organizado como Estado: e. g., os ciganos). Mas digamos que ter um Estado seja necessário para sobreviver e prosperar na atual civilização patriarcal. Mesmo assim, isso tem um preço: a guerra; ou a preparação constante para a guerra – o que é a mesma coisa, como já havia percebido Hobbes (em 1651).
Falando agora em termos culturais – da cultura religiosa às vezes evocada em interpretações da história operadas com transposições não-hermenêuticas, para legitimar a formação do Estado de Israel na Palestina no século 20 com base em um suposto direito ancestral do povo eleito de IHVH de ocupar sua terra prometida – caberia constatar, para concluir, apenas uma ironia. Talvez fosse mais fácil para a matriz cultural que gerou o judaísmo a partir do hebraísmo ter ouvido o conselho profético: “Às tuas tendas, Oh! Israel” (1 Reis 12:16). Ou ter acatado os conselhos de Samuel (em 1 Samuel 8) quando advertiu em Ramá os anciãos de Israel para o perigo de erigirem um Estado. Sei que o desfecho dessa reunião não foi aquele que queria o profeta: “Porém o povo não quis ouvir a voz de Samuel; e disseram: não, mas haverá sobre nós um rei. E nós também seremos como todas as outras nações; e o nosso rei nos julgará, e sairá adiante de nós, e fará as nossas guerras” (1 Sm 8: 19-20).
Pois é. E aí está agora o moderno Estado de Israel condenado a fazer guerras, incessantemente, para sobreviver, como quiseram seus anciãos (e não sou eu que o digo e sim a narrativa histórica que eles mesmos teceram e querem preservar).
Augusto de Franco é escritor, palestrante e consultor