A luta pela soberania alimentar no Pacífico teve um grande impulso em dezembro passado, quando Billy Kenoi, prefeito da Ilha Grande do Havaí, assinou uma lei que impede os agricultores de produzir quaisquer novos cultivos geneticamente modificados (com exceção do mamão). Isto segue um impulso bem-sucedido em Kauai, no outro extremo das ilhas, de forçar grandes produtores em divulgar quais pesticidas são utilizados e quais as culturas geneticamente modificadas que estão produzindo.
Este é um grande passo na batalha pela agricultura ecologicamente sustentável no Havaí, que tem sofrido durante mais de um século sob o peso da dominação corporativa e militar dos EUA.
Assim como outras regulamentações locais, estaduais e nacionais destinadas a proteger a população e o meio ambiente, as leis anti-OGM podem ser rapidamente anuladad se o Presidente Obama assinar a Parceria Trans-Pacífico (TPP), o mais ambicioso e de longo alcance acordo de livre comércio do mundo. Em 9 de janeiro, o Congresso dos EUA introduziu uma legislação “acelerada”, permitindo que o governo Obama assine a TPP sem passar por um debate público. Autoridades do “fast-track” concederiam à Casa Branca o poder de acelerar as negociações, dando ao Congresso apenas 90 dias para rever a TPP antes de votar.
A TPP se estende por 12 países – incluindo os Estados Unidos, Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Cingapura e Vietnã – que compreende 40% da economia do mundo. Como quase todos os acordos comerciais assinados desde o NAFTA, é quase certo que a TPP permitirá que as corporações multinacionais de qualquer lugar do bloco processem os governos em tribunais secretos para derrubar as regulamentações nacionais ou locais, tais como as leis de OGM recentes do Hawai, que podem limitar seus lucros. Portanto, não é apenas a soberania alimentar do Havaí que está em risco.
“Isso não é principalmente sobre o comércio”, explica Lori Wallach, diretor da Global Trade Watch Public Citizen. “É um Cavalo de Tróia corporativo. O acordo tem 29 capítulos, e apenas cinco deles têm a ver com o comércio. “Mais de 600 lobistas corporativos representantes de multinacionais como a Monsanto, Cargill e Wal-Mart tiveram acesso irrestrito para modificar o acordo secreto, enquanto o Congresso e o público só puderam ver poucos capítulos que vazaram.”
Mas a TPP é ainda mais do que um Cavalo de Tróia corporativo. É uma parte essencial do eixo Ásia-Pacífico da administração Obama, que é centralizado na China.
Uma nova Guerra Fria?
À frente do encontro de 2011 no Havaí do Asia Pacific Economic Forum (Apec), a então secretária de Estado, Hillary Clinton delineou um plano para transferir recursos militares, diplomáticos e econômicos do Oriente Médio para o Pacífico, no que ela chamou de “America’s New Pacific Century”. Descrevendo o eixo em termos militaristas como “forward-deployed diplomacy”, Clinton elogiou a TPP chamando-a de “ponto de referência para futuros acordos”, levando a ” uma zona de comércio livre da Ásia-Pacífico. ”
Ainda que a TPP exclua a China, que se tornou a segunda maior economia do mundo e está prestes a superar a economia dos EUA em questão de anos, este é um fato não muito agradável para as elites norte-americanas acostumadas à hegemonia incomparável.
Como os Estados Unidos, o futuro do crescimento econômico da China encontra-se na região da Ásia-Pacífico, que de acordo com todos os indicadores, será o centro da atividade econômica no século 21. Em 2015, de acordo com um artigo de um conservador membro do Foreign Policy Research Institute, “é esperado que os países do Leste Asiático superem o NAFTA e a zona do euro e se tornem o maior bloco comercial do mundo. As oportunidades de mercado só irão aumentar à medida que a região tenha um incremento adicional de 175 milhões de pessoas até 2030.”
Ao aumentar o acesso ao mercado dos EUA e a influência com os vizinhos da China, Washington tem esperança de aprofundar o seu compromisso econômico com os países da TPP enquanto diminui sua integração econômica com a China.
O “Eixo Ásia-Pacífico” de Obama também pretende conter a China militarmente. Em 2020, 60% da capacidade naval dos EUA terá como base a região Ásia-Pacífico, onde 320 mil soldados norte-americanos já estão posicionados. O realinhamento implicará a reconstrução e reforma de antigas instalações norte-americanas nas Filipinas, colocando 2.500 fuzileiros navais na Austrália, transferindo 8 mil fuzileiros navais e suas famílias de Okinawa para Guam e Havaí, e construindo novas instalações, como o da pequena ilha de Saipan. Enquanto isso, os militares dos EUA organizam regularmente exercícios militares conjuntos em massa envolvendo dezenas de milhares de tropas e porta-aviões de propulsão nuclear com seus principais aliados – e os vizinhos da China – Japão e Coréia do Sul. Eles vêm realizando regularmente exercícios militares com a Tailândia, Singapura, Indonésia, Malásia, e até mesmo Mianmar.
Washington parece acreditar que estas são precauções necessárias. De acordo com a Rand Corporation, por exemplo, 90% das bases dos EUA na região estão “sob ameaça” de mísseis balísticos chineses, porque eles estão dentro das 1.080 milhas náuticas da China. Mas quem está ameaçando quem? Os chineses têm precisamente zero bases na Ásia-Pacífico fora de suas próprias fronteiras.
Alguns analistas norte-americanos insistem em que é necessário uma presença militar mais robusta dos EUA para conter as ambições territoriais da China na região. Sem dúvida, a China tomou recentemente uma postura mais agressiva nas disputas territoriais regionais devido à diminuição dos recursos naturais, irritando muitos de seus vizinhos. Washington se arrisca ao incentivar os rivais da China a se comportarem mais provocantemente, bem como irrita a própria China. De acordo com Mel Gurtov, “apesar de aceitar que os Estados Unidos são uma potência do Pacífico, as autoridades chinesas agora resistem à ideia de que os Estados Unidos têm algum direito especial em predominar na Ásia e no Pacífico ocidental.”
Dois socos curtos
“A mão invisível do mercado”, como escreveu o famoso colunista do New York Times Thomas Friedman, nos anos 90, precisa do pulso forte oculto dos militares. A TPP e o eixo da administração Obama do Pacífico incluem ambos.
De todas as pessoas no mundo, os havaianos sabem disso melhor do que ninguém. Uma vez quando eram nação soberana, o Hawai foi o ponto de partida para o século do imperialismo da América e a conquista do Pacífico. A maioria das pessoas não sabe dessa história crítica, mas o que alimentou a queda da monarquia do Havaí foi o comércio. Durante os anos de 1800, os comerciantes americanos lucravam bastante com a exportação de açúcar do Havaí para os Estados Unidos. Quando confrontados com as novas tarifas que o governo dos EUA impôs para proteger a indústria nacional de açúcar na América do Sul, os exportadores orquestraram um golpe com os fuzileiros navais dos Estados Unidos para derrubar a rainha das ilhas e anexar o Havaí, assim o açúcar havaiano não estaria mais sujeito a tarifas.
Com o mundo enfrentando as questões prementes da mudança climática global, a perda da biodiversidade, o aumento dos preços dos alimentos e o declínio das fontes de energia fóssil, o que é necessário agora mais do que nunca são políticas que promovam economias locais sustentáveis, que garantam o bem-estar de seus povos e protejam os ecossistemas dos quais todas as nossas vidas dependem.
As comunidades locais parecem estar conseguindo isso – novas leis como as restrições de OGM aprovadas recentemente no Havaí são um passo nessa direção. Mas, com as elites multinacionais e o governo dos EUA empurrando monstruosidades não democráticas como o eixo do Pacífico e a TPP, as perspectivas de uma forma mais genuína de segurança parecem mais distantes do que nunca.
Christine Ahn é membro sênior do Instituto Oakland e co-presidente da Women De-Militarize Zone (DMZ)
Esse conteúdo foi originalmente publicado no site Foreign Policy in Focus