Pouca transparência marca estudos sobre riscos dos transgênicos

14/11/2013 11:17 Atualizado: 14/11/2013 11:17

Foco de toda a polêmica que contrapõe defensores e adversários dos transgênicos desde o início de sua comercialização mundial há 17 anos, os potenciais riscos trazidos pelos alimentos geneticamente modificados à saúde humana, ao meio ambiente e à diversidade alimentar permanecem insatisfatoriamente esclarecidos e ainda são objetos de divergência entre cientistas, empresas do setor de biotecnologia, governos nacionais e organizações multilaterais.

Quando se fala em transgênicos, em que pese a maciça propaganda favorável patrocinada pelas empresas detentoras da tecnologia, ainda são muitas as vozes que evocam o Princípio da Precaução (um dos pilares do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, firmado no âmbito da ONU) e alertam sobre o perigo de ameaças como o aumento da incidência de doenças, as contaminações de cultivos convencionais e de áreas de proteção ambiental, a expansão do uso de agrotóxicos e o controle monopolizado de sementes e técnicas de produção.

No que diz respeito à saúde humana, entidades multilaterais de peso como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização da ONU para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) afirmam não haver comprovação de que os produtos transgênicos comercializados até hoje façam mal. Entretanto, organizações representativas da sociedade civil que atuam contra a disseminação dos cultivos geneticamente modificados criticam o pouco rigor dos testes de biossegurança – muitos, patrocinados pelas próprias empresas que atuam no setor de transgenia – realizados na maioria dos países e se apoiam em estudos independentes publicados recentemente para afirmar que uma alimentação à base de transgênicos pode favorecer o aparecimento de tumores e outras anomalias.

Prazos de pesquisa curtos

A pouca transparência e os métodos utilizados nos testes de biossegurança são criticados pelo movimento socioambientalista: “A questão dos riscos está ficando mais evidente, pois alguns cientistas independentes resolveram enfrentar as leis que protegem as empresas de transgenia de qualquer exame de seus produtos sem sua autorização. Esses pesquisadores adotaram procedimentos cientificamente rigorosos para avaliar os riscos para a saúde, mas, sobretudo, passaram a avaliar os possíveis impactos por prazos mais longos do que aqueles usados nos testes de segurança das empresas. Nestes últimos, os prazos nunca foram superiores a três meses e, frequentemente, são ainda mais curtos. Curiosamente, todos os problemas (tumores, deformações de órgãos etc.) começam a aparecer a partir do quarto mês de testes”, diz Jean Marc von der Weid, dirigente da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), organização fundadora da Campanha por um Brasil Livre de Transgênicos e Agrotóxicos.

Professor do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em biossegurança, Paulo Brack aponta a contaminação das lavouras convencionais como outro fator de risco trazido pelos transgênicos: “Mesmo que o agricultor não queira, a proximidade com cultivos transgênicos traz poluição genética e a contaminação de culturas convencionais. É quase inviável plantar hoje sementes que não sejam transgênicas, pois a contaminação já está acontecendo”, diz. Brack ressalta que a contaminação “faz parte do processo” de domínio levado a cabo pelas empresas de transgenia: “A contaminação é também uma maneira de as empresas se tornarem hegemônicas e praticamente totalitárias nesse mercado.”

Ratos com câncer

Como contraponto aos estudos bancados pelas empresas, Jean Marc cita os testes sobre o milho transgênico da Monsanto realizados com ratos durante dois anos pelo cientista francês Gilles Seralini: “O estudo produz resultados arrasadores, inclusive com algumas fotos assustadoras. Apesar do bombardeio de cientistas pró-transgenia, muitos deles empregados diretos ou indiretos das empresas, Seralini respondeu a todas as objeções e cobrou dos críticos que usassem o mesmo rigor para os testes mais do que superficiais que são feitos pelas próprias empresas”, diz o ambientalista.

A situação é semelhante no Brasil, avalia Jean Marc: “Essa observação sobre o rigor dos testes vale também para os nossos cientistas da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que competem com os mais subservientes no seu afã em servir às empresas. Um dia ainda vão pagar por sua irresponsabilidade, assim como os cientistas que por décadas defenderam a inocuidade dos cigarros acabaram processados (alguns pelo menos) por sua má fé.”

A equipe coordenada pelo professor Seralini, que trabalha na Universidade de Caen, na França, publicou em setembro do ano passado um estudo sobre o milho transgênico NK603, desenvolvido pela Monsanto para ser resistente ao herbicida RoundUp (à base de glifosato), também fabricado pela empresa transnacional, ambos presentes em 80% dos transgênicos alimentícios plantados em todo o mundo. Realizado com 200 ratos de laboratório, o estudo revelou que o consumo contínuo tanto do milho transgênico quanto do glifosato levou-os a uma mortalidade mais alta e frequente que as registradas habitualmente na espécie.

Entre os distúrbios mais graves apresentados pelos roedores está o desenvolvimento de grandes tumores mamários na maioria das fêmeas, enquanto outras morreram em decorrência de problemas renais. Os machos, por sua vez, tiveram em sua maioria deficiências graves nos sistemas hepático e renal. Para a realização do teste, os ratos foram alimentados de três maneiras: apenas com milho transgênico, com milho transgênico tratado com RoundUp e com milho convencional tratado com RoundUp. As doses de milho transgênico (a partir de 11%) e de glifosato (0,1 ppb na água) dada aos ratos foram as mesmas consumidas pelos cidadãos dos Estados Unidos submetidos à dieta da Monsanto.

OMS

Apesar da publicação de estudos que comprovariam os malefícios dos alimentos transgênicos, o Departamento de Segurança Sanitária dos Alimentos da OMS garante que jamais foi identificado nenhum caso de efeito nocivo sobre a saúde humana resultante do seu consumo. Segundo um estudo publicado em parceria com a FAO em 2005, e acatado até hoje, “os efeitos potenciais diretos dos alimentos geneticamente modificados sobre a saúde são em geral comparáveis aos riscos conhecidos associados aos alimentos tradicionais” no que diz respeito ao seu potencial alergênico e a toxidade de seus constituintes, como também à qualidade nutricional do alimento e sua segurança sanitária.

O mesmo estudo, no entanto, fala também em efeitos indiretos: “Grupos de especialistas da FAO e da OMS examinaram o risco de que os genes sejam transferidos de um alimento geneticamente modificado a células mamárias ou bactérias da flora intestinal. Esses especialistas julgaram prudente considerar que fragmentos de DNA subsistem nas vias digestivas humanas e são suscetíveis de serem absorvidos pela flora intestinal ou pelas células somáticas que forram a parede do intestino”. O estudo conclui que “a inserção aleatória de genes em um OGM [organismo geneticamente modificado] poderia determinar instabilidades genéticas e fenotípicas, mas não há atualmente nenhuma prova científica indiscutível de tais efeitos.”

Paulo Brack lamenta que não haja instituições multilaterais, ou mesmo nacionais, capazes de centralizar os testes sobre os riscos trazidos pelo consumo de organismos geneticamente modificados: “A questão dos transgênicos é relativamente recente, e nós não temos instituições que façam estudos em relação aos seus efeitos porque hoje quem trabalha com isso são as próprias empresas do setor de transgenia. Estas não querem realizar trabalhos relativos aos transgênicos e aos seus produtos associados.” O professor da UFRGS diz acreditar que essa questão será mais transparente no futuro: “A ciência vai avançando. Há 30 ou 40 anos, quando se falava que o cigarro e a nicotina faziam mal à saúde, isso era motivo de chacota por parte das empresas e até mesmo de alguns setores das ciências. Hoje, no entanto, não se tem mais dúvidas quanto aos malefícios do cigarro.”

Duplo risco

Segundo a organização ambientalista Greenpeace, os transgênicos representam um duplo risco: “Primeiro, por serem resistentes a agrotóxicos ou possuírem propriedades inseticidas, o uso contínuo de sementes transgênicas leva à maior resistência de ervas daninhas e insetos, o que por sua vez leva o agricultor a aumentar a dose de agrotóxicos ano a ano. Não por acaso, o Brasil se tornou o maior consumidor mundial de agrotóxicos, sendo mais da metade deles destinados à soja, primeira lavoura transgênica a ser inserida no país. Além disso, o uso de transgênicos representa um alto risco de perda de biodiversidade, tanto pelo aumento no uso de agroquímicos (que têm efeitos sobre a vida no solo e ao redor das lavouras), quanto pela contaminação de sementes naturais por transgênicas”, diz um documento da organização.

O Greenpeace também critica os testes de biossegurança realizados nos últimos anos: “Não existe consenso na comunidade científica sobre a segurança dos transgênicos para a saúde humana e o meio ambiente. Testes de médio e longo prazo em cobaias e em seres humanos não são feitos, e geralmente são repudiados pelas empresas de transgênicos.” A organização internacional considera a liberação de transgênicos “uma afronta ao Princípio da Precaução e uma aposta de quem não tem compromisso com o futuro da agricultura, do meio ambiente e do planeta”.

Além dos riscos à saúde e ao meio ambiente, há também os riscos sociais. Reunidas de 23 a 27 de maio em Bogotá (Colômbia), as 30 organizações de 12 países que compõem a Rede por uma América Latina Livre de Transgênicos (RALLT) enviaram a toda a equipe dirigente da ONU uma carta aberta na qual alertam sobre os impactos trazidos pela transgenia: “Longe de cumprir as promessas que as empresas fizeram para entrar na região, os transgênicos têm semeado desolação e morte na América Latina, onde esses cultivos alcançaram altos limites de expansão, ocupando o segundo lugar em área cultivada com transgênicos no mundo.”

“Genocídio”

Segundo a RALLT, a disseminação acelerada dos transgênicos “tem significado a contaminação genética da agrobiodiversidade, a destruição de ecossistemas naturais e a submissão da população a uma condição sanitária que, devido ao uso de pesticidas, se aproxima do genocídio”. Apenas nos países do Cone Sul, diz a carta aberta, a soja resistente ao glifosato cobre uma área de 475,7 mil km²: “Toda essa área é fumigada com um coquetel de agrotóxicos, afetando milhões de pessoas que vivem na zona de influência das fumigações de veneno associadas a cultivos transgênicos.” O documento diz ainda que “os impactos produzidos pelo modelo de sementes transgênicas alcançaram níveis tão grandes que este deixou de ser um problema que pode ser resolvido por meio de técnicas como a avaliação e manejo dos riscos para se converter em uma violação dos direitos humanos de populações inteiras”.

A carta alerta também para o perigo que o controle das sementes de milho pelas empresas do setor de biotecnologia representa para a diversidade alimentar e a soberania cultural dos países latino-americanos – sobretudo o México e os países da América Central – e pede que essa discussão deixe o âmbito restrito do Protocolo de Cartagena e da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) da ONU e passe a ser tratada também por outros setores do sistema das Nações Unidas, como, por exemplo, o Alto Comissariado para Direitos Humanos.

“As empresas que produzem sementes e agrotóxicos e comercializam alimentos transgênicos, juntamente com as elites locais e a cumplicidade dos governos de plantão, converteram a América Latina em plataforma dos cultivos transgênicos do mundo, criando um problema de violação sistemática e legalizada dos direitos humanos”, diz o documento, que foi enviado simultaneamente para Navanethem Pillay (alta comissária para Direitos Humanos), Olivier de Schutter (relator especial sobre Direito à Alimentação) e os brasileiros José Graziano (diretor da FAO) e Bráulio Dias (secretário-executivo da CDB), entre outras autoridades da ONU.

Esta matéria foi originalmente publicada pelo Repórter Brasil