Imagine que um grupo de vizinhos em seu bairro — que foram eleitos ou que se auto-elegeram governantes — decidem que ninguém, exceto eles, pode fornecer serviços de segurança e de resolução de contendas judiciais.
E não apenas isso: além de estipularem e imporem taxas para custear gastos com iluminação, ruas e manutenção de todas as instalações e infraestruturas com as quais já nos acostumamos, suponha também que comecem a cobrar uma porcentagem do salário dos solteiros para pagar pela educação de quem tem filhos, uma porcentagem dos salários dos que têm um estilo de vida saudável para custear a saúde de quem quiser tais serviços gratuitamente, uma porcentagem do salário de todos para criar programas de fomento à cultura e para conceder empréstimos subsidiados a determinadas empresas, a criar empregos na administração do bairro para seus militantes — novamente, à custa de todos os vizinhos —, e a controlar toda uma série de elementos da própria vida das famílias.
Não é necessária muita imaginação para se criar novas justificativas para que o estado continue tomando dinheiro das pessoas com o intuito de financiar novos programas. E foi exatamente nisso que o estado se transformou para os latino-americanos ao longo das últimas gerações. Na maioria dos países do continente, já no final da década de 1970, o estado era eletricista, encanador, engenheiro, médico, professor, conselheiro matrimonial e familiar, e, acima de tudo, uma casa de beneficência.
Apesar deste diagnóstico agora evidente, e do fato de que o famoso (infame para a esquerda) Consenso de Washington se apresentou como sendo a cura para todos os males do continente, os resultados deixaram muito a desejar. Tanto é que os ungidos do populismo e do coletivismo estão — em termos eleitorais — mais fortes do nunca na região, justamente pelo fato de denunciarem diariamente as consequências das reformas impostas pelo Consenso.
No entanto, se supostamente o final da década de 1980 e toda a década de 1990 trouxeram uma onda maciça de privatizações, desregulamentações e aparentes aberturas comerciais, o que foi que falhou? Será que os ungidos de fato têm razão ao afirmar que o “neoliberalismo” é intrinsecamente incapaz de gerara prosperidade geral?
Voltemos à analogia do início do artigo. O que ocorrerá se os governantes — que mudaram apenas de rosto, mas não práticas políticas — decidirem abandonar muitas das atividades que até então efetuavam? Voltaremos ipso facto a uma situação natural? De jeito nenhum. O grupo de governantes pode, mediante a concessão de algumas atividades para grupos privados, tornar mais “eficiente” uma série de atividades; mas nós, os vizinhos, ainda não sentimos que somos donos de nossas vidas. O grupo de governantes pode ter deixado de efetuar determinadas atividades, mas ele ainda não permite que possamos efetuá-las. Apenas um pequeno grupo, selecionado a dedo pelos governantes, podem efetuar estas atividades. Os governantes ainda mantêm e impingem leis que ditam como e até que ponto tais atividades podem ser efetuadas.
Ainda não somos donos de nossas vidas. No máximo, os governantes nos permitem determinadas iniciativas em nosso bairro, mas apenas com sua prévia permissão e somente sob sua supervisão técnica. De novo, não recuperamos realmente nada.
O problema com as reformas da década de 1990 é exatamente este. Para começar, não houve nenhuma genuína desestatização, mas sim apenas concessões de monopólios estatais para monopólios privados, arranjo esse que não permite nenhuma concorrência. Não há livre concorrência nos grandes setores econômicos da América Latina.
Desde a divisão de Buenos Aires em duas zonas, cada qual tendo apenas uma empresa telefônica monopolista, passando pela criação de várias agências reguladoras no Brasil que têm o intuito de cartelizar o mercado e proteger grandes empresas da concorrência externa, permitindo que pratiquem preços altos e mantenham serviços de baixa qualidade, chegando ao Ejido mexicano, que mantém o estado como proprietário de terras para uso agrícola coletivo (tendo o estado o poder de tomar terras privadas), e culminando nos sistemas de “seguridade social” em que o estado “poupa por nós” para nos proteger em nossa velhice, não há absolutamente nenhuma forma de liberalismo (não existe um prefixo “neo”) no continente. Há apenas o velho e absoluto mercantilismo.
Ou seja, o remédio ministrado é somente um pouco melhor do que a própria enfermidade. Se tínhamos um estado obeso e empresário, agora temos um estado obeso que se sente um pouco menos empresário, mas que, por sua obesidade, confisca e monopoliza os recursos com os quais poderíamos ser nós mesmos os empresários. O estado nos mantém regulados, supervisionados, concessionados (o monopólio se mantém, embora a qualidade do serviço possa aumentar notavelmente em uma concessão), desprovidos, sobre-tributados e monopolizados juridicamente. E estes dois últimos fatores, embora sejam os menos notados e discutidos, são os mais importantes para o crescimento econômico.
Têm toda a razão aqueles que dizem que Austrália, Nova Zelândia, Estônia ou até mesmo Hong Kong e Cingapura não são sistemas liberais puros, mas ainda assim são as estrelas mundiais em termos de crescimento e prosperidade para seus habitantes. Da mesma maneira, países já ricos e, consequentemente, de crescimento baixo, como Dinamarca, Suécia, França, Itália, Canadá e Alemanha também não são puramente liberais. Mas há algo que todos eles têm em comum, algo que é o segredo, o requisito sine qua non do progresso: segurança jurídica para a propriedade e para os contratos voluntários.
Eles têm isso há muito tempo; nós nunca tivemos.
Por que esse é o diferencial? Nada mais pode explicar por que 80% do fluxo de investimentos estrangeiros ocorrem entre os próprios países desenvolvidos quando se sabe que uma empresa como a Microsoft pagou 8% de dividendos a seus acionistas nos últimos anos ao mesmo tempo em que empresas bem-sucedidas no Equador pagaram 25%. Sendo assim, o capital estrangeiro não deveria estar chovendo sobre os países latino-americanos, onde os investimentos geram maiores taxas de retorno? Infelizmente não. Se um país da América Latina permite que você mantenha 60% do lucro gerado por uma empresa ao passo que na Dinamarca esse percentual é de apenas 40%, por que ainda assim a Dinamarca continuará sendo um destino preferencial para os investimentos? Porque a Dinamarca possui um sistema tradicional e reconhecidamente eficaz de proteção à propriedade, aos contratos e às decisões judiciais.
Isso significa que, na América Latina, o investidor pode até ter mais dinheiro após impostos, mas existem mais possibilidades de trapaças e de estelionatos por parte de um sócio local, mais conflitos trabalhistas, mais incerteza jurídica, maiores possibilidades de calotes serem protegidos pelo judiciário, e mais vários outros elementos que desmotivam empreendedores a fazer investimentos e a aplicar seu capital em nosso território. É por isso que os reinvestimentos são um ato de heroísmo, e que a repatriação de lucros se torna um ato mais racional e seguro.
Mas o assunto não termina aí. Hernando de Soto, em sua obra El Misterio del Capital, calcula que 80% da propriedade nos países em desenvolvimento está totalmente na informalidade. Ou seja, há dezenas de milhões de famílias em nosso continente que simplesmente não podem utilizar sua propriedade como garantia para a obtenção de crédito, com o qual poderiam abrir pequenas empresas, fornecer empregos e, de forma geral, se integrar ao sistema produtivo. Se a casa ou o terreno de uma família pobre não são formalmente seus, como no caso das favelas brasileiras, não há nenhuma medida de abertura econômica, de privatizações ou de ortodoxia fiscal e monetária que possam compensar tudo isso. Caso essas pessoas pudessem usufruir um título de propriedade, elas imediatamente começarão a usá-los como colateral ou a transacioná-los, aumentando sobejamente sua renda, sua riqueza e seu padrão de vida.
O atual arranjo faz com que, literalmente, a classe baixa e até mesmo boa parte da classe média sejam meras espectadoras do processo econômico. E os governantes sabem como capitalizar esta situação denunciando-a como sendo uma exclusão social. Eles estão corretos nesta percepção — embora tenham sido eles próprios que criaram esta situação —, mas estão errados ao proporem que a solução está na inclusão política (“vamos decidir o rumo do país em assembléias populares”).
A resposta, sob o prisma da mentalidade empreendedorial, deve ser distinta e clara: sim, o mercantilismo é excludente, mas podemos caminhar em direção ao liberalismo caso massifiquemos o acesso à propriedade (com títulos e registros de propriedade para todos), tornemos o sistema judiciário mais rápido e confiável (arbitragens privadas são um ótimo começo), e aumentemos a segurança (com o policiamento privado liberado).
Em outras palavras, a liberdade econômica começa pela propriedade privada, pelo respeito aos contratos, e por um sistema judiciário confiável e eficiente. São secundárias, porém de suma importância, questões como impostos, as tarifas e as regulamentações.
Uma economia livre é uma economia de proprietários, e não uma economia de proletários.
Juan Fernando Carpio mora em Quito, Equador, possui mestrado em Economia Empreendedorial pela Universidad Francisco Marroquin, da Guatemala e é o presidente do Instituto para la Libertad, um think tank libertário equatoriano
Instituto Ludwig von Mises Brasil