Crimes graves acontecem na USP porque somos uma comunidade que não consegue compartilhar regras básicas de convivência e isso cria um ambiente particularmente propício para a ocorrência de crimes e atos violentos, como demonstram diversos estudos e experiências práticas em várias cidades do mundo.
Por que ocorrem tantos crimes no maior campus da melhor universidade do país? A criminologia pode ajudar a entender como um lugar que deveria ser modelo de segurança mostra sinais de que está se convertendo em um espaço de convivência marcado por tensões de vários tipos. Na semana passada vieram a público os casos de estupro que ocorreram nas festas organizadas por estudantes de Medicina. Em 2014, foram registrados 94 casos de roubo, seis sequestros relâmpagos, 214 prisões em flagrante de infratores e a apreensão de nove menores apenas no campus do Butantã. Pelo menos três casos de agressões homofóbicas foram divulgados pela Frente LGBTT da USP, e outras ocorrências graves do ano incluem a morte por afogamento de um jovem que participava de uma festa no campus e um atropelamento múltiplo que resultou em cinco feridos e uma vítima fatal.
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Casos de mortes e homicídios não ocorreram apenas este ano. O aluno Felipe Paiva morreu em um assalto dentro do campus em 2011. Além desses casos graves, ocorrem centenas de acidentes de trânsito a cada ano e muitos casos de agressões, furtos e roubos não registrados.
Muita coisa está fora do lugar: o consumo de drogas e álcool encontra poucas restrições, quadrilhas atuam sem embaraços, o trânsito é selvagem (o campus é um dos poucos locais onde não há controle de velocidade ou multas por infrações), o estacionamento não tem regras. Tudo isso afeta diretamente a atividade acadêmica. O barulho das festas prejudica as aulas nos prédios e uma simples caminhada revelará um cenário de desordem.
Para muitos especialistas e dirigentes universitários, no entanto, o fato do nosso campus sofrer com problemas de desordem e convivência não tem nenhuma correlação com os crimes que acontecem aqui. Afinal, por que o barulho, o trânsito desordenado e os hábitos de lazer de nossos alunos teriam relação com crimes graves como estupro e o latrocínio? Para vozes influentes na universidade, o sentimento de inquietação diante da desordem é uma mera dramatização de conflitos sociais mais profundos que encobrem o desejo latente de grupos privilegiados por punições mais rigorosas contra os desfavorecidos e os marginalizados. Mas, contrariando a visão dominante por aqui, as conexões entre desordem e crime têm sido alvo de uma intensa atividade acadêmica, o que pode ser bastante interessante para entendermos por que a USP se tornou em tão pouco tempo quase um hot spot de crimes.
Duas teorias concorrem para explicar a relação entre desordem e crime. A primeira é a conhecida teoria das ‘janelas quebradas’. Tornou-se conhecida na década de 1980 pelo artigo de James Q. Wilson em parceria com George Kelling, que teve grande influência na definição da política de segurança pública de NY. Os resultados dessa inovação são objeto de grandes controvérsias acadêmicas até hoje, mas serviram para disseminar os conceitos de prevenção situacional e de policiamento da desordem como ferramentas que permitem ao gestor público atuar diretamente sobre a estrutura de oportunidades que propiciam a ocorrência de crimes. Ao dirigir o esforço do policiamento contra eventos sem regras e atos de incivilidade, a polícia foi capaz de alterar um elemento importante que está na base da estrutura de oportunidades da maioria dos crimes: a desordem. Essa é primeira lição para a atual crise na USP. A tolerância cotidiana com as pequenas e algumas delas não tão pequenas assim transgressões gera um ambiente inseguro e propício ao crime.
A segunda hipótese sobre a relação entre desordem e crime foi formulada pelo sociólogo Robert Sampson a partir de 1990 com base em dados coletados por mais de uma década na cidade de Chicago. A combinação dessas informações permitiu uma ‘descoberta’ sociológica relevante: o crime e a desordem têm uma origem comum. A desordem não é a causa do crime, mas ambos refletem a corrosão da capacidade coletiva das comunidades de exercer o controle social em seus limites. A “eficácia coletiva”, como Sampson e seus colaboradores definem o conceito, é o fator que explica as diferenças no nível de segurança e ordem nos bairros. Não é a pobreza, ou a precariedade da infraestrutura urbana, mas a fragilidade das relações de amizade entre vizinhos, a falta de interesse por assuntos comunitários e a falta de confiança entre residentes que tendem a gerar altos níveis de desordem e criminalidade. A incapacidade coletiva de agir na defesa de objetivos comuns é o vetor que propaga isso.
Algo semelhante ocorre na USP. Somos uma comunidade dividida e hesitante diante de um problema que parece exigir mais energia e liderança do que somos capazes de reunir . O primeiro problema grave diante do qual falta consenso é a tolerância com o consumo de álcool e drogas ilícitas. Embora tenha ocorrido algum avanço nesse sentido, ainda estamos longe de nos livrar do problema.
Muitos centros acadêmicos fazem festas ou vendem informalmente bebidas durante o horário normal de aula, o que contraria as normas da universidade, mas dificilmente a guarda universitária atua diante dessas infrações ou porque é orientada explicitamente para não fazê-lo ou porque, por experiência prática, percebe a dificuldade que é atuar sem o devido apoio da comunidade. O álcool é um problema que se pode comprar em qualquer mercado. As drogas ilícitas trazem desafios mais complexos. Nas festas do campus circulam drogas que são abastecidas de diferentes formas: o ecstasy e outros alucinógenos sintéticos são provavelmente traficados pelos próprios alunos ou por conhecidos com base em um sistema de rede. Quem está dentro sabe quem tem e quem quer comprar, e há pouca ou nenhuma violência associada a sua distribuição varejista. O mesmo não acontece com a cocaína e a maconha, que fazem parte do core business do crime organizado e passam por uma longa e violenta cadeia de distribuição até chegar ao varejo. As ‘biqueiras’ do entorno da USP têm a vantagem de estarem ligadas diretamente ao campus por um portão que é praticamente controlado por organizações criminosas e que dá acesso privilegiado a um mercado de 47 mil jovens de alto poder aquisitivo.
Ao contrário do que muitos acreditam, a distribuição da cocaína e da maconha é marcada por disputa violenta entre grupos organizados nas várias etapas da cadeia logística do produto. Também não há evidências consistentes de que o crime organizado envolvido com a distribuição de drogas seja capaz de pacificar conflitos e evitar a atuação de outros. O mais provável é que traficantes e assaltantes estejam associados ou que o mesmo grupo cometa crimes diferentes.
O segundo obstáculo que impede a cooperação é a barreira na produção e divulgação de dados sobre crimes ocorridos no campus. Sem informações confiáveis, é difícil adotar medidas preventivas.
Há uma última dificuldade que enfraquece diretamente a competência da comunidade universitária para agir de forma coordenada diante do problema: uma flagrante desconexão entre o trabalho da guarda universitária, as forças de segurança pública e os seguranças e vigias terceirizados. Os vigilantes terceirizados que atuam nas unidades da USP, e que são em muito maior número do que a guarda universitária, não têm praticamente nenhuma capacidade de compartilhar as tarefas de patrulhamento do campus. Como não há regras claras sobre o que é permitido no campus e sobre quem faz o que, a atuação desses profissionais restringe-se à segurança patrimonial. Na prática, quase nenhuma informação sobre o que está acontecendo no entorno dos prédios vigiados por esses profissionais chega ao conhecimento da guarda. Há ainda problemas na relação entre a guarda e a PM.
Será necessário desenvolver um esforço sério para melhorar essa relação que é hoje fundamental para trazer a segurança de volta ao campus. As manifestações públicas dos dirigentes do serviço de segurança da universidade são parte importante do esforço de cooperação e precisam evitar a todo custo evitar criar um clima de desconfiança no trabalho da Polícia Militar. A Reitoria da USP terá que fazer esse trabalho sozinha, pois infelizmente os sindicatos de servidores, a associação dos docentes e o diretório dos estudantes colaboram na desconstrução da imagem da PM e agem sem fazer qualquer tipo de conta sobre os custos que a falta de segurança acarreta à comunidade universitária.
Crimes graves acontecem na USP porque somos uma comunidade que não consegue compartilhar regras básicas de convivência e isso cria um ambiente particularmente propício para a ocorrência de crimes e atos violentos, como demonstram diversos estudos e experiências práticas em várias cidades do mundo. Infratores preferem agir em áreas com sinais visíveis de desordem porque ninguém parece se importar com o que acontece ali e, assim, suas atividades não serão imediatamente notadas. E esse parece ser exatamente o tipo de ambiente que estamos criando no principal campus da USP.
Leandro Piquet Carneiro é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas (NUPPs) da mesma universidade. Foi pesquisador visitante do Taubman Center da John F. Kennedy School of Government, Harvard University (2006-2007). É economista graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). É membro do Conselho da Cidade do Rio de Janeiro