Os 30 anos de desenvolvimento econômico da China estão agora numa encruzilhada. Os governantes comunistas do país estão descobrindo que perderam sua direção. Trinta anos atrás, o governo do Partido Comunista Chinês (PCC) introduziu reformas econômicas, mas ele logo parou de verdadeiramente criar um mercado livre na China e recusou-se a instituir mudanças políticas sérias. Agora, esse caminho de reforma atingiu um muro. Especificamente, há dois problemas principais: um vácuo ideológico e crescente agitação social. Por questão de tempo, concentrarei minhas observações no segundo destes problemas.
Nos últimos anos, a agitação social agravou-se em meio a crescente desigualdade econômica, a repressão política e a corrupção desenfreada. A resposta do PCC tem sido uma abordagem denominada “manutenção da estabilidade”. Eu mostrarei como este conceito foi desenvolvido, como foi implementado e por que, paradoxalmente, isso se tornou a mais séria ameaça à estabilidade na China.
A equipe de liderança para ‘manutenção da estabilidade’
O conceito de ‘manutenção da estabilidade’ foi introduzido pela primeira vez na década de 1990. No entanto, uma vez que não era uma prioridade para os líderes do PCC na época, não havia nenhuma estrutura formal para implementá-lo e ele recebeu pouca atenção dos observadores no país ou no exterior. Isso mudou na preparação para os Jogos Olímpicos de Pequim em agosto de 2008.
No começo do ano, em meio a crescente agitação social e temores de que sinais de turbulência apareceriam enquanto o país estava no centro das atenções internacionais, os governantes do PCC sentiram que era necessário criar uma equipe de liderança para evitar tal ocorrência. Desde 1950, o PCC usou tais equipes de liderança para coordenar a ação sobre várias questões. Elas são tipicamente secretas, criadas e dissolvidas arbitrariamente e chefiadas por membros do Comitê Permanente do Politburo.
A equipe recém-criada foi chamada de ‘Equipe de Liderança para a Manutenção da Estabilidade’ do Comitê Central do PCC. Zhou Yongkang, a chefe maior da segurança pública chinesa, foi nomeado para dirigi-la. Como é típico para essas equipes, um departamento do grupo de liderança foi criado para lidar com as tarefas diárias. Esse foi chamado de ‘Departamento para Manutenção da Estabilidade’.
Liu Jing, o então vice-ministro da Segurança Pública, foi nomeado para dirigi-lo. A tarefa imediata da nova equipe de liderança e do departamento era ‘manter a estabilidade’ antes e durante as Olimpíadas. Mas, na prática, sua existência se estendeu muito além dos Jogos Olímpicos de 2008, uma missão referida como ‘Normalização da Segurança Olímpica’. Isso significa que, mesmo após as Olimpíadas, as medidas de segurança usadas durante as Olimpíadas se tornariam rotina.
Uma vez que o mandato do aparato de ‘Manutenção da Estabilidade’ envolvia, na maior parte, questões de segurança, ele foi colocado sob o controle do mais amplo sistema existente do Comitê Central do PCC, o Comitê dos Assuntos Político-Legislativos (CAPL), a divisão do PCC encarregada de supervisionar a segurança pública, o Judiciário e as autoridades policiais, que também é liderado por Zhou Yongkang. Na verdade, desde 2008, a manutenção da estabilidade se tornou o principal foco do trabalho do CAPL.
O sistema de manutenção da estabilidade opera com sua própria lógica e incentivos, que diferem de outras partes do aparato do governo chinês. Na maioria das áreas do PCC e do trabalho do governo, se as metas estabelecidas não forem alcançadas, os dirigentes responsáveis são responsabilizados. Por exemplo, se o crescimento do PIB é menor do que o esperado ou se peticionários locais vão a Pequim para apelar, os oficiais correspondentes normalmente perderão sua chance de promoção ou podem até ser rebaixados.
Mas esses incentivos estão distorcidos no sistema de manutenção da estabilidade. Numa estranha distorção, os departamentos e o pessoal encarregado se beneficiam burocraticamente da ‘manutenção da estabilidade’ a partir de condições sociais instáveis. Sempre que ou onde quer que a agitação social ou o chamado ‘incidente de massa’ acontece, os respectivos departamentos de ‘manutenção da estabilidade’ e os oficiais são capazes de pedir mais financiamento, mais pessoal e mais poder. Dada a importância da estabilidade para o PCC, eles normalmente conseguem o que querem.
É aí que reside o problema. A influência do aparato encarregado de manter a estabilidade dentro da estrutura de poder do PCC na verdade aumenta quando há mais instabilidade e não quando há menos. A sociedade torna-se mais instável quanto mais poder o aparato e os indivíduos envolvidos ganham. Não há incentivo para resolver os problemas fundamentalmente, como responder às solicitações dos peticionários ao invés de reprimir sua tentativa de buscar a justiça.
Isso ajuda a explicar por que, ao longo dos últimos anos, as autoridades tendem a responder com força excessiva aos conflitos sociais ou à tentativa de cidadãos que buscam responsabilização. Isto, por sua vez, tem frequentemente agravado as tensões subjacentes ao invés de resolvê-las.
Um exemplo desse paradoxo é como o número de ‘incidentes de massa’ (um termo vagamente definido que se refere a qualquer protesto antigovernamental de mais de um punhado de pessoas) tem de fato aumentado desde a criação da ‘Equipe de Liderança para a Manutenção da Estabilidade’.
Segundo dados oficiais, cerca de 80 mil incidentes de massa ocorreram em 2007, 120 mil em 2008 e pelo menos 180 mil em 2010. Também durante este período, Zhou Yongkang se tornou o membro mais poderoso do Comitê Permanente do Politburo do PCC em termos do tamanho do aparato que ele supervisiona, ainda que em 2007, quando ele entrou para o Comitê, ele fosse considerado o último dos nove membros. Em 2012, o orçamento de manutenção da estabilidade excedeu os gastos militares pelo segundo ano consecutivo.
Um estudo de caso: Chen Guangcheng
O caso do advogado cego autodidata Chen Guangcheng é um exemplo típico destas dinâmicas. Quando Chen teve um conflito com as autoridades locais por ajudar mulheres que foram vítimas de aborto e esterilização forçados, eles o colocaram na cadeia. Este é um tratamento de rotina adotado pelo PCC local e pelo governo para lidar com os chamados “causadores de problemas”. O que era único no caso de Chen é que, enquanto ele estava na prisão, as autoridades locais converteram sua casa numa prisão e fortificaram a segurança em torno de toda a aldeia para impedir que sua esposa recebesse visitas de colegas ativistas, jornalistas estrangeiros ou diplomatas. Chen foi libertado da prisão em 2010 e foi imediatamente transferido para outra prisão, sua própria casa.
Todas essas ações das autoridades locais são ilegais segundo a lei chinesa. Então, por que eles foram capazes de contorná-la, mesmo em meio a tanta condenação e atenção de dentro e de fora da China? É porque eles têm atuado sob a bandeira da ‘manutenção da estabilidade’. Enquanto este for o objetivo declarado, os oficiais podem fazer praticamente o que quiserem sem serem processados. Além disso, eles obterão mais recursos humanos e financeiros por fazê-lo.
Há entre 50 e 100 oficiais monitorando Chen e sua família. Em 2008, o custo de sua prisão domiciliar foi de 30 milhões de yuanes (4,72 milhões de dólares) e, em 2012, este valor mais que dobrou. É um grande negócio, com muitos lucros a serem feitos. Todos os envolvidos querem manter ou até expandir este negócio, de bandidos locais até altos oficiais da segurança em Pequim. Eles farão de tudo para manter o negócio. Nós soubemos do irmão mais velho de Chen e de jornalistas ocidentais que, embora Chen tenha ido para os Estados Unidos, a segurança em sua cidade natal está ainda mais acirrada do que antes.
É um ciclo vicioso que se perpetua. Deixado por conta própria, ele puxará o PCC e toda a nação para baixo. Para aqueles de nós fora da China, é importante que entendamos com quem estamos lidando e que o sistema de ‘manutenção da estabilidade’ é crucial para entendermos como o Partido Comunista governa a China. Na Arte da Guerra, Sun Tzu escreveu, “Conheça a si mesmo e conheça seus adversários. Você ganhará cem batalhas sem perder uma única.”
Quando os representantes do governo dos EUA estavam inicialmente discutindo a situação de Chen com seus homólogos chineses, eles estavam cientes da fraqueza política do representante oficial da China, o Ministério das Relações Exteriores, segundo Jerome Cohen da Universidade de Nova York, que ajudou nas negociações como consultor de Chen.
Mas quando eles procuraram por alguém no sistema que fosse forte e tivesse a autoridade para tomar uma decisão difícil, eles cometeram um erro. Eles se voltaram para a polícia secreta, que está diretamente sob o comando do CAPL e seu chefe Zhou Yongkang. Desde que Zhou e suas forças de segurança são a razão para a situação trágica de Chen em primeiro lugar, eles claramente têm interesses conflitantes quando se trata deste caso e, portanto, devem ser evitados em negociações relacionadas.
Logo depois que Chen deixou a embaixada dos EUA, ele mudou de ideia e pediu para deixar a China, enquanto antes ele disse que queria ficar. Isso não ocorreu porque ele recebeu telefonemas de amigos incentivando-o a partir, mas sim porque ele e sua família foram ameaçados pelas forças de segurança, tanto em casa como em Pequim.
A única explicação para essas ameaças é que o aparato de segurança não queria que Chen permanecesse na China e continuasse a expor seus crimes. Uma vez que eles também estiveram envolvidos nas negociações, eles sabiam os detalhes e fraquezas do acordo e foram capazes de atacar tão logo tiveram a chance. Isso colocou o Departamento de Estado dos EUA e a Administração Obama sob enorme pressão. Se o último estivesse mais claro desde o início que este centro de poder foi a causa fundamental do problema, eles poderiam ter evitado a estranha reviravolta dos eventos.
Estes e outros desenvolvimentos na China relacionados ao CAPL nos últimos três meses não são acidentais. Quando o CAPL foi criado no início de 1980, inicialmente, ele não era mais poderoso do que outros departamentos do Comitê Central do PCC. Ele ganhou seu poder através da perseguição do grupo espiritual do Falun Gong, que começou em julho de 1999 e continua até hoje. Ao perseguir o Falun Gong, um grupo composto por dezenas de milhões de pessoas de todas as províncias, idades e profissões, o CAPL acumulou poder e experiência para realizar ampla vigilância e repressão.
Agora, eles estão usando o mesmo mecanismo contra uma ampla gama de alvos, o povo chinês com queixas contra o PCC ou o governo. Este fato é evidente, basta olhar para as pessoas envolvidas em ambas as campanhas. A ‘Equipe de Liderança para Lidar com a Questão do Falun Gong’ é chefiada pela mesma pessoa que lidera a ‘Equipe de Liderança para a Manutenção da Estabilidade’, Zhou Yongkang.
O departamento correspondente, o Departamento de Manutenção da Estabilidade, quando recém-formado, foi liderado por Liu Jing, a mesma pessoa que chefiou a Agência 610 (encarregada da coordenação diária da campanha anti-Falun Gong) até 2009. Por esta razão, alguns observadores têm confundido os dois departamentos, pensando que foram fundidos e que a Agência 610 havia mudado seu nome. Na verdade, eles permanecem distintos, mas muito do seu trabalho e pessoal se sobrepõem. A diferença é que a Agência 610 ainda se concentra em grande parte no Falun Gong, enquanto o aparato de ‘Manutenção da Estabilidade’ atinge a população em geral.
A turbulência política é apenas a ponta do iceberg. A política de ‘Manutenção da Estabilidade’ é baseada no fato de que o desenvolvimento econômico da China é feito às custas dos direitos humanos, do meio ambiente e dos recursos naturais. Qualquer modelo, o modelo de Chongqing ou o modelo chinês, não durará muito se for baseado nisso.
Nota do Editor: Este artigo é baseado numa palestra dada por Yiyang Xia, o diretor sênior de Política e Pesquisa da ‘Fundação Legal dos Direitos Humanos’ de Washington DC, num fórum sobre a China realizado na Colina do Parlamento em 30 de maio de 2012. O Sr. Xia é um especialista em política chinesa e na estrutura e funcionamento do sistema judicial e propaganda chinesa. Ele apresentou sua pesquisa e análise no Parlamento Europeu, na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas e em instituições acadêmicas nos Estados Unidos e no Sudeste da Ásia.