Será que o governo deveria punir coletivamente donos de empresas que, por aparentes razões religiosas, se recusassem a servir alguns grupos de consumidores?
Embora esse comportamento seja repugnante, a recusa em prestar serviços por conta de raça, etnia ou orientação sexual é um exercício de auto-propriedade e da liberdade de não-associação. É um ato não-violento e que não viola os direitos das outras pessoas. Se acreditamos de fato na liberdade de associação, logicamente também devemos aceitar também a liberdade de não-associação. O teste convicção de uma pessoa à liberdade de associação ocorre, como no caso da liberdade de expressão, quando o conteúdo dela é repugnante.
Isso, porém, significa que indivíduos privados não podem pacificamente punir empresas que discriminam injustamente alguns consumidores potenciais?
Não! Eles não apenas podem, mas devem. Boicotes, publicidade negativa, ostracismo e outras medidas não-coercitivas também são partes constituintes da liberdade de associação.
Por que tantas pessoas presumem que o único antídoto para algo ruim — incluindo males que não envolvem o uso da força física — é a ação estatal, que sempre implica ameaças de violência? Será que somos mesmo impotentes para lidar com atos repulsivos — porém não-violentos — a não ser que os políticos ajam em nosso nome?
Como todos devem saber, a assembleia legislativa do estado americano do Arizona passou um projeto de lei — que foi vetado pelo governador — que acrescentaria algumas emendas à Lei de Restauração da Liberdade Religiosa (RFRA; Religious Freedom Restoration Act), que afirma que até mesmo uma lei aparentemente neutra em relalão a questões religiosas não pode ser um “fardo substancial” ao exercício da religião na ausência de um “interesse governamental convincente” e um método menos restritivo de satisfazer tal interesse.
Esse projeto de lei foi incentivado por uma decisão da Suprema Corte do Novo México no caso de um fotógrafo comercial que, por motivos religiosos, se recusou a tirar fotos de uma cerimônia de comprometimento de um casal de mesmo sexo. A corte decidiu que a RFRA não se aplica em casos que envolvem indivíduos privados, isto é, casos em que o governo não é uma parte interessada. Assim, um indivíduo privado ou dono de empresa acusado de violar a proibição da discriminação a determinado grupo em acomodações públicas não pode invocar uma exceção por razões religiosas. (“Acomodações públicas” geralmente se referem a empresas e repartições estatais abertas ao público.) Casos parecidos surgiram em outros locais.
A lei do Arizona estenderia a RFRA para qualquer “indivíduo, associação, parceria, corporação, igreja, assembleia ou instituição religiosa, propriedade, consórcio, fundação ou outra entidade legal”. A legislação foi interpretada como um projeto que permitia a discriminação a gays em acomodações públicas — e provavelmente era, de fato — mas o texto não fazia menção a preferências sexuais ou identidades de gênero. (A legislação o Arizona proíbe a discriminação com base em raça e sexo, mas não orientação sexual.) Como afirmou o New York Times, “Muitos críticos — entre eles líderes empresariais e personagens importantes em ambos os partidos políticos nacionais — alegaram que era uma lei amplamente discriminatória e que permitiria todo tipo de negação de serviço, abrindo as portas para que, por exemplo, um taxista muçulmano se recusasse a pegar uma passageira mulher que estivesse sozinha”.
O que um defensor da liberdade individual, da cooperação social pacífica e da tolerância deveria fazer num caso desses?
Primeiramente, eu perguntaria por que um “interesse governamental convincente” — o que quer que isso seja poderia dar ao governo o direito de impor obrigações, substanciais ou não, ao exercício pacífico da religião de qualquer pessoa. O estado é uma organização de meros mortais que, por um método dúbio ou outro, conseguiram vestir o manto da legitimidade política e forçar a obediência, sob pena de prisão, até daqueles que nunca consentiram a esse sistema absurdo.
A seguir, eu perguntaria por que a religião é a única preocupação considerada. O estado não deveria ser impedido também de impor fardos excessivos sobre o exercício de convicções seculares?
Como escreveu Mario Rizzo, da Universidade de Nova York, no Facebook:
“O problema é que a lei identificava apenas um motivo aprovado — o religioso — por que uma pessoa pudesse se recusar a fornecer serviços a outra. O padrão costumava ser a liberdade de associação e contrato a não ser que houvesse uma excelente razão para impedir o exercício dessa liberdade. Agora, aparentemente o padrão é que você deve agir de acordo com os valores “progressistas” ou encarar as consequências. Ninguém no Arizona correria qualquer risco de ficar sem serviços vitais — o ambiente é competitivo e as pessoas querem ganhar dinheiro. É um ambiente diferente do antigo sul. Mas, bom, ninguém tem interesse em distinções sutis a respeito da liberdade.”
Quando Rizzo afirma que “ninguém no Arizona correria qualquer risco de ficar sem serviços vitais — o ambiente é competitivo e as pessoas querem ganhar dinheiro”, ele se refere ao fato de que, a não ser que a intervenção estatal proteja as empresas discriminatórias (como no sul dos EUA antigamente), o mercado as pune e recompensa estabelecimentos mais inclusivos.
Agora, no momento em que uma pessoa diz que o governo não deveria ter o poder de punir as empresas de discriminarem em acomodações públicas, um interlocutor socialdemocrata provavelmente perguntará: “Então uma empresa deve poder recusar serviço a uma pessoa só por ela ser gay ou negra?”
Ao que eu responderia: “Não, a empresa não deveria poder fazer isso. Mas ‘não poder’ para mim significa que nós devemos não-violentamente impor custos sobre aqueles que ofendem a decência ao humilhar pessoas com a recusa do fornecimento de serviços“. Como afirmado acima, isso incluiria boicotes, publicidade e ostracismo. O estado não deve ser visto como antídoto e, dado que sua essência é a violência, ele não deve punir condutas não-violentas, não importa o quão inaceitáveis elas sejam.
As proibições estatais escondem o preconceito, tornando a resposta privada mais difícil. Um casal judeu quereria que um antissemita fotografasse seu casamento? Um casal gay gostaria que um homofóbico fizesse seu bolo? Além disso, proibições legais podem causar problemas para o lado contrário. Um fotógrafo negro deveria ser obrigado a trabalhar no casamento de um casal supremacista branco? Nesse caso, o trabalho forçado não deveria nos deixar arrepiados?
A intolerância deve ser exposta abertamente, para que seja desprezada e ridicularizada.
Como já escrevi em relação à provisão sobre acomodações públicas da Lei de Direitos Civis de 1964, a ação privada não é apenas moralmente superior à ação governamental, mas é também mais eficiente. Ações governamentais não-violentas “já eram empregadas muito antes do estabelecimento [da Lei de Direitos Civis]. A partir de 1960, protestos passivos e outros confrontos ao estilo Gandhi já dessegregavam as lanchonetes de lojas de departamentos em todo o Sul. Nenhuma lei precisou ser aprovada ou repelida. A pressão social — a ridicularização pública dos racistas — funcionava.”
“Até mesmo antes, nos anos 1950, David Beito e Linda Royster Beito relatam em Black Maverick que o empresário T.R.M. Howard liderou um boicote às empresas nacionais de gasolina que forçou seus franqueados a permitirem que os negros usassem os banheiros de que eram barrados há anos.”
“Às vezes se afirma que a provisão das acomodações públicas foi um remédio eficiente porque afetava todas as empresas em uma só tacada. Mas os movimentos sociais diretos também foram eficientes: grupos inteiros de racistas cederiam de uma vez após uma campanha intensa de protestos passivos. Não havia necessidade de dessegregar uma lanchonete de cada vez.”
“A lei, portanto, foi desnecessária. Mas, além disso, foi prejudicial. As maiores vitórias da liberdade ao longo da história foram alcançadas não por lobby, legislação e litígio — não através de pastas de processos e tratados filosóficos — mas através da luta “popular” direta que marcou as sociedades a partir da Idade Média. [Veja também o livro de Thaddeus Russell, A Renegade History of the United States.] Como dizia um de meus mentores, o que é dado como presente pode ser tirado facilmente, enquanto aquilo que é ganho pela luta contra o poder é mais difícil de se perder.”
“A campanha social pela igualdade que foi a dessegregação do sul mudou ao chegar em Washington. O foco então deixou de ser o movimento de base e as atenções se voltaram à elite branca que tentava assumir o controle das aspirações populares…”
“Nós nunca saberemos como o movimento teria evoluído — que instituições de auxílio mútuo independente teriam emergido — se esse desvio de foco não tivesse ocorrido.”
Em outras palavras, “os libertários não precisam se esconder da pergunta ‘Os brancos deveriam poder excluir os negros de suas lanchonetes?’ Eles podem responder com orgulho: ‘Não. Eles não devem poder fazer isso. Eles devem ser impedidos — não pelo Estado, que não é confiável, mas por ações sociais não-violentas em prol da igualdade.’”
A resposta libertária ao preconceito é a organização comunitária.
Sheldon Richman é um escritor político americano, acadêmico, ex-editor da revista The Freeman, atual vice-presidente da Future of Freedom Foundation e editor da Future of Freedom, publicação mensal da FFF
Esta matéria foi originalmente publicada pelo Center for a Stateless Society
*Imagem de “mãos juntas” via Shutterstock