O Partido dos Trabalhadores, há bem mais de uma década, nada de braçada nas águas revoltas da nossa política. Isso não aconteceu por sorte ou acaso. Foi perícia coletiva, dentro de bem traçado planejamento e perfeita execução. De um lado, o partido se constituía na tradição de partido das massas, rara entre nós, e aplicava com tenacidade os métodos de infiltração que o fizeram presente e ativo nos corpos sociais e nas instituições do Estado. De outro, partia para o ataque a seus opositores sem tréguas nem misericórdia. O objetivo era produzir a demolição moral de quem estivesse em seu caminho. Pela cartilha petista, escândalo no território inimigo era e continua sendo coisa que ou existe ou se fabrica. Onde houvesse o mais tênue fio de fumaça da suspeita o partido era o primeiro a chegar, com um tonel de gasolina.
Impoluto, apontava o dedo acusador para as privatizações, por exemplo, com a autoridade moral de quem jamais o usou para contar dinheiro mal-havido. Quando seus líderes clamavam por CPIs para investigar as privatizações e a base do governo FHC não os apoiava, roíam-me desconfianças e suspeições. “Ai tem!”, pensava eu. Se o nariz petista acusava algo, se sua alma se ouriçava, se seu fino tato acusava, era certo que algo havia. Afinal, eles sabiam tudo, mas tudo mesmo, sobre o governo dos outros.
Foi assim que o partido, sem muito esforço diga-se, destruiu moralmente os governos Collor e Sarney. Foi assim que o partido requereu contra o governo FHC mais de duas dezenas de CPIs. As investidas foram tantas, tão contínuas e violentas que o prestígio do ex-presidente despencou dos elevados índices a que chegara nos pleitos que venceu. Quanto de verdade havia naquelas acusações? O PT atribuía a falta de provas cabais ao engavetamento dos processos na Procuradoria Geral da República e à recusa da base do governo em conceder à oposição os votos necessários à formação das CPIs.
A posse de Lula seria, também, a hora da verdade para sua oposição? Eu pensava que sim. Os petistas não mais dependiam das CPIs para investigar e exibir as negociatas alheias. Passavam a dispor de todos os meios de investigação, servidos em bandeja de prata, com guarnição de veludo azul. Ministério da Justiça, Controladoria-Geral da União, ABIN, Polícia Federal, Receita Federal, eram apenas alguns dentre os muitos instrumentos disponíveis. Sem esquecer, ainda, os arquivos de todos os ministérios, repartições e empresas estatais do país. Vai ter muito colarinho branco na cadeia, pensava eu.
Surpresa! Em 1º de janeiro de 2003 a inquisição petista deve ter embarcado em Alcântara rumo a algum asteróide distante. O outrora refinado faro não capta mau cheiro sequer quando vem da sola do próprio sapato. Seus sherloques, seus produtores de dossiês, que antes sabiam de tudo que acontecia na República, foram acometidos de um alheamento, de um autismo em que não apenas ninguém está a par do que acontece na sala ao lado, mas é a própria mão direita a primeira a desconhecer o que a esquerda faz. Sobre essa duplicidade de conduta nada se fala, nada se escreve. Quando não há explicação moralmente aceitável é preferível deixar o dito pelo não dito. E Lula maneja com perfeição a prolongada retórica do silêncio.
Percival Puggina (69) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, membro do grupo Pensar+
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