Entre as liberdades prezadas numa sociedade livre – econômica, política e civil – a liberdade econômica ocupa lugar especial. A liberdade econômica, além de ser um fim em si mesmo, respalda as demais liberdades. Quando a liberdade pessoal, a troca voluntária e a proteção à propriedade privada não são garantidas, fica difícil imaginar como a liberdade política ou as liberdades civis possam ser exercidas de maneira significativa.
Em 1962, o ganhador do prêmio Nobel de Economia Milton Friedman observou:
“A História é unânime no que diz respeito à relação entre liberdade política e mercado livre. Não conheço um exemplo sequer de sociedade, seja no tempo, seja em algum lugar, que tenha sido marcada por grande dose de liberdade política sem ter exercido dose comparável de liberdade de mercado para organizar o conjunto de suas atividades econômicas.”
O colapso do planejamento centralizado nos países do Terceiro Mundo e do próprio socialismo nos últimos 20 anos parece sustentar a tese de Friedman. O avanço da liberdade econômica acompanhou os avanços das liberdades política e civil no mundo todo, e todas foram importantes para os países que abandonaram o autoritarismo e abriram seus mercados.
Liberdade econômica
A liberdade econômica é um fim desejável em si mesma, pois geralmente amplia a gama de escolhas individuais, tanto para o consumidor como para o produtor. No entanto, o papel mais abrangente da liberdade econômica na sociedade é negligenciado com frequência, inclusive pelos que acreditam no pluralismo político, nos direitos humanos e na liberdade de associação, de religião e de expressão.
Apesar disso, a descentralização da tomada de decisão na economia respalda a sociedade civil ao criar espaço para que todos os tipos de organização possam existir sem depender do Estado. Numa nação onde existe liberdade econômica, o setor privado pode financiar as instituições da sociedade civil. Portanto, é mais provável a existência de igrejas verdadeiramente independentes, partidos políticos de oposição e grande variedade de empresas e meios de comunicação nos países onde o poder econômico não esteja concentrado nas mãos de burocratas e políticos.
Por definição, liberalização econômica implica perda de controle político total sobre os cidadãos. Isso é algo que os governos autoritários no mundo inteiro têm descoberto na era atual de globalização. As ditaduras foram substituídas por democracias nos países que começaram a liberalizar seus mercados nos anos 1960 e 1970, entre eles a Coreia do Sul, Taiwan, Chile e Indonésia. Culminando com a eleição do presidente Vicente Fox em 2000, a liberalização do mercado no México nos anos 1990 ajudou a acabar com mais de 70 anos de governo de partido único, o PRI (Partido Revolucionário Institucional), situação à qual o romancista peruano Mário Vargas Llosa certa vez se referiu como “a ditadura perfeita”.
Liberdade econômica permite fontes independentes de riqueza para contrabalançar o poder político e promover uma sociedade pluralista. Por exemplo, quando o Estado tem a posse ou o controle indevido do sistema bancário, de crédito, das telecomunicações ou da imprensa escrita, ele não só controla a atividade econômica como controla também a manifestação. O mundo demorou muito para reconhecer a verdade contida na declaração feita pelo escritor Hilaire Belloc no início do século 20 de que “controlar a produção de riquezas é controlar a própria vida humana”.
Por isso, não é novidade o dilema enfrentado atualmente pelo Partido Comunista Chinês. Para manter a estabilidade social, a China precisa dar continuidade à liberalização econômica que impulsionou duas décadas de altos índices de crescimento. Entretanto, as reformas de mercado tornaram centenas de milhões de chineses mais independentes do Estado e criaram uma classe média emergente que exige cada vez mais liberdade política e representatividade. Por um lado, o Partido quer manter o poder político, mas a liberalização econômica está minando essa meta; por outro, o fim da liberalização levaria à redução do crescimento e à instabilidade.
Assim como ocorre na China e em vários outros países, a liberdade econômica incentiva o pluralismo político ao promover o crescimento que produz uma classe média e cidadãos menos dependentes do Estado. Evidências empíricas comprovam essa relação.
O relatório Liberdade Econômica do Mundo (EFW) elaborado pelo Instituto Fraser do Canadá é o estudo empírico mais abrangente sobre a relação entre, de um lado, as políticas econômicas e as instituições e, de outro, o nível de prosperidade de um país. O estudo investiga 38 componentes da liberdade econômica que vão desde a dimensão do governo, passando pelo estado de direito, até políticas monetárias e comerciais. Esse estudo foi realizado em 127 países ao longo de um período de mais de 30 anos. Os resultados mostram forte relação entre liberdade econômica e prosperidade. Os países de economia mais livre têm renda per capita média de US$ 25.062 em comparação aos US$ 2.409 nos países de economia mais fechada. As economias livres também crescem mais rápido do que as menos livres. O crescimento per capita nos últimos dez anos foi de 2,5% nos países mais livres e de 0,6% nos menos livres.
O estudo do Instituto Fraser também mostrou que a liberdade econômica está fortemente relacionada com redução da pobreza e outros indicadores de progresso. O Índice de Pobreza Humana da ONU apresenta uma correlação negativa com o índice Fraser de liberdade econômica. O nível de renda dos 10% mais pobres da população dos países mais livres em termos econômicos é de US$ 6.451 enquanto é de apenas US$ 1.185 nos países de economia mais fechada. Além disso, as pessoas dos países que estão entre os 20% com maior liberdade econômica tendem a viver cerca de 25 anos a mais do que os habitantes dos países classificados entre os 20% com menor liberdade. Taxas mais baixas de mortalidade infantil e mais altas de alfabetização, menos corrupção e maior acesso à água potável também estão associados a altos índices de liberdade econômica. O Índice de Desenvolvimento Humano da ONU apresenta uma correlação positiva com a maior liberdade econômica. Significativamente, o mesmo acorre com o índice de liberdades política e civil da Freedom House: países que têm maior liberdade econômica tendem a ter as outras liberdades mais fortes também.
Na verdade, há muito tempo o crescimento autossustentado depende de um ambiente que estimule a livre iniciativa e a proteção da propriedade privada. O fim da pobreza em massa no Ocidente nos anos 1800 ocorreu nesse tipo de ambiente, que por sua vez deu início à era de crescimento econômico moderno. Mesmo em época anterior, a emergência de uma classe de agricultores comerciais na Inglaterra possibilitou sua representação no Parlamento permitindo-lhes, no século 17, limitar os confiscos arbitrários de riqueza pela coroa. Em resumo, o surgimento dos agricultores comerciais ajudou a criar a monarquia constitucional. As limitações plausíveis do poder governamental fortaleceram os direitos de propriedade e o estado de direito, fatores que foram fundamentais para tornar a Grã-Bretanha o principal poder político e econômico do mundo. Evidentemente, à medida que a Grã-Bretanha se tornava mais rica, ia se consolidando como democracia.
Fatos mais recentes apoiam a ideia de que crescimento e níveis mais altos de renda levam à democracia, ou pelo menos ajudam a sustentá-la. Os cientistas políticos Adam Przeworski e Fernando Limongi estudaram o comportamento de 135 países no período de 1950 a 1990 e descobriram que “a renda per capita é um bom indicador para prognóstico da estabilidade das democracias”. Descobriram, por exemplo, que nos países com renda per capita inferior a mil dólares (em dólares PPC de 1985), a expectativa média de sobrevivência das democracias era de oito anos. (PPC é a sigla para ‘paridade do poder de compra’, teoria segundo a qual as taxas de câmbio entre as moedas de dois países estão em equilíbrio quando seu poder de compra é o mesmo em ambos os países.) Quando a renda se situava entre 1.001 e 2.000 dólares a probabilidade de sobrevivência democrática era de 18 anos. As democracias de países com rendas superiores a US$ 6.055 podem durar indefinidamente.
Liberdade econômica produz crescimento, mas nem sempre leva à democracia. Hong Kong e Cingapura, duas das economias mais livres do mundo, são exemplos notáveis. Tampouco a riqueza é sempre produto da liberdade econômica, como comprovam alguns países ricos em recursos naturais com rendas relativamente altas, mas onde o poder econômico está sob forte controle do Estado e, como esperado, as liberdades política e econômica também são extremamente limitadas. O papel central da liberdade econômica na democracia, entretanto, é evidente. Ela pode ser uma força poderosa na promoção da democracia, e uma boa dose de liberdade econômica é necessária para respaldar a liberdade política.
Democracia liberal e estado de direito
Democracia não é sinônimo de liberdade. Como vimos, uma democracia que não seja acompanhada de outras liberdades dificilmente consegue limitar o poder arbitrário das autoridades políticas, ainda que eleitas. Por isso, existe hoje grande esforço para promover o estado de direito – componente central tanto da democracia liberal quanto da liberdade econômica.
Dizer que o estado de direito é necessário para o bom funcionamento da democracia é um axioma. Há um crescente reconhecimento de que o estado de direito é importante também para o desenvolvimento econômico. O relatório Liberdade Econômica do Mundo, por exemplo, revelou que nenhum país onde o estado de direito é fraco conseguiu sustentar uma taxa de crescimento sólida (mais de 1,1%) depois que a renda per capita superou os US$ 3.400. Em outras palavras, quando uma economia atinge certo nível de desenvolvimento, torna-se essencial aperfeiçoar o estado de direito para sustentar o crescimento.
Ao contrário do que ocorre com as reduções de tarifas e as privatizações, talvez não seja possível promover o estado de direito de forma direta. É bastante provável que o estado de direito se estabeleça após ou mais ou menos durante a implementação correta de outras coisas.
Apresento uma proposta modesta. Em vez de nos concentrarmos em promover diretamente o estado de direito, deveríamos criar o ambiente em que o estado de direito possa evoluir. Entre outras medidas, estaria a promoção de reformas de mercado ou liberdade econômica. Para muitos países pobres, isso inclui reduzir o tamanho do governo. Os países que hoje têm estado de direito forte criaram primeiro essa instituição e só depois aumentaram o tamanho do governo.
Infelizmente, são muitos os países pobres que hoje tentam repetir esse processo de maneira inversa. Em países tão distintos como Brasil, Eslováquia, República do Congo e Rússia, por exemplo, os gastos do governo como parte do produto interno bruto excedem 30 ou 40%. As tentativas de promover o estado de direito em países onde o governo continua superdimensionado estão destinadas ao fracasso ou a ser extremamente difíceis. Na verdade, embora nesses últimos 20 anos a tendência mundial tenha sido de aumento tanto da liberdade econômica quanto da liberdade política, a maioria dos países ainda tem um longo caminho a percorrer rumo à liberdade econômica. A Rússia pode ter abandonado o socialismo, mas entre 127 países aparece em 115º lugar no índice de Liberdade Econômica do Mundo.
Ademais, o escritor Fareed Zakaria observa que a maioria das democracias pobres do mundo são democracias não liberais – ou seja, regimes políticos em que as liberdades, exceto a de escolher os governantes, não são bem consolidadas. No Ocidente, destaca Zakaria, a tradição constitucional liberal desenvolveu-se primeiro e a transição para a democracia depois. Em 1800, por exemplo, apenas 2% dos cidadãos votaram na Grã-Bretanha, talvez a sociedade mais liberal do mundo na época. Zakaria ressalta ainda que nas nações não ocidentais que fizeram recentemente a transição para a democracia liberal, como Coreia do Sul e Taiwan, o capitalismo e o estado de direito também vieram antes. Esse padrão talvez explique por que regiões como a América Latina, que primeiro se democratizaram e depois iniciaram a liberalização econômica, passaram por períodos especialmente difíceis para promover a liberdade econômica ou o crescimento.
Hoje, países da Europa Oriental e Central, da América Latina e de outras regiões tentam alcançar, com graus variados de sucesso, democracia e liberdade econômica ao mesmo tempo. Em alguns casos, a liberdade econômica retrocedeu ou deixou de ser prioridade, o que significa mau presságio para a democracia. Em outros casos, como na Etiópia, a liberdade econômica cresceu em ritmo regular fortalecendo assim a democracia. Aqueles de nós que acreditam no capitalismo democrático – quer vivendo em democracias ricas, quer nas pobres, quer em Estados autocráticos – não deveriam jamais perder de vista o papel central da liberdade econômica para se chegar a uma sociedade livre.
Ian Vasquez é diretor do Centro para a Liberdade e Prosperidade Global do Cato Institute
Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ordem Livre