As palavras perdidas de Xi Jinping: Quem apagou o constitucionalismo?

12/09/2014 13:57 Atualizado: 12/09/2014 13:57

Num discurso recente, o líder chinês Xi Jinping discutiu o “constitucionalismo”, mas ninguém saberia a respeito a partir dos relatos oficiais. O website de notícias financeiras de tendência liberal Caixin ofuscou a mídia estatal ao reproduzir o texto completo do discurso de Xi, com as partes expurgadas numa caixa cinza em destaque.

O que isso significa é algo aberto a debate. Na China, onde mudanças aparentemente insignificantes na propaganda do regime podem sinalizar mensagens importantes da liderança, este conjunto de circunstâncias levantou algumas sobrancelhas.

O estado de direito e o constitucionalismo são conceitos politicamente carregados na China. Uma interpretação possível para sua ausência em qualquer das reportagens estatais é que Liu Yunshan, o chefe da propaganda e da ideologia do regime, certificou-se que essas peças fossem cortadas. O motivo de Liu fazer isso pode ter a ver com a luta pelo poder que está sacudindo o Partido Comunista Chinês (PCC).

Liu Yunshan é membro do centro nervoso do PCC, o Comitê Permanente do Politburo, e um protegido político do ex-líder chinês Jiang Zemin, que por sua vez é um arquirrival do atual líder Xi Jinping. Jiang Zemin tem a propensão de empilhar na alta liderança aqueles que lhe devem favores, como se verificou durante as transições da liderança em 2002 e 2007. Jiang e seus comparsas também são os grandes alvos do expurgo político em andamento no regime comunista chinês, coordenado por Xi Jinping.

Como um de três funcionários (dos sete totais) no Comitê Permanente cuja fidelidade pode ser rastreada a Jiang, Liu Yunshan poderia estar servindo seu antigo mestre em censurar os escritos de Xi Jinping, em vez de servir seu novo putativo.

Outro cenário potencial é que Xi Jinping esteja deliberadamente usando a revista de negócios Caixin para publicar mensagens que são inconvenientes para propagação nos canais oficiais. A Caixin tem sido uma aliada da campanha anticorrupção de Xi, publicando detalhes exclusivos e vazamentos de fontes do regime sobre a queda de funcionários nos últimos 18 meses, e Xi Jinping é conhecido por ser amigo de Hu Shuli, o fundador da Caixin.

O discurso em questão é intitulado “Em referência à celebração do 60º aniversário do estabelecimento do Congresso Popular Nacional”.

É uma postura política bastante comum para um líder chinês, quando recitando a necessidade do corpo de funcionários, “ter fé firme no caminho do socialismo com características chinesas, fé na teoria e fé no sistema”.

Os membros do Partido, além disso, foram instruídos a “lutar para realizar o sonho da China de rejuvenescimento da nação chinesa”. O discurso contém um resumo da história da China moderna do ponto de vista do Partido Comunista e conclui que o PCC – surpresa, surpresa – é o mais adequado para liderar a China em direção ao futuro.

A Xinhua, a mídia estatal porta-voz oficial da República Popular da China, publicou um artigo sobre esse discurso e uma “análise” do mesmo. As análises publicadas pela mídia oficial são frequentemente uma forma dos propagandistas do PCC de apresentar uma interpretação aparentemente distinta dos anúncios políticos recentes e explicá-los ainda mais para os leitores.

Mas a Xinhua não publicou o discurso em si conforme proferido por Xi Jinping. A organização não respondeu a questionamentos por e-mail. Comumente o texto completo do discurso de Xi Jinping e de outros líderes chineses está disponível na Xinhua ou no Diário do Povo, outra mídia estatal porta-voz do Comitê Central do PCC.

A Caixin, porém, publicou o discurso em sua totalidade e incluiu várias frases politicamente sensíveis que não apareceram no sumário da Xinhua ou em reportagens posteriores. A Caixin não respondeu a perguntas sobre onde obteve o texto completo do discurso.

As frases que a Caixin incluiu, e que os canais oficiais não incluíram, diziam que o PCC deve “usar a Constituição para governar o país” e que, para o estado de direito ser estabelecido na China, “o poder deve ser exercido em conformidade com a Constituição”.

Evidentemente, tendo percebido a importância dessas afirmações, a Caixin colocou essas duas passagens do discurso em destaque na parte superior da matéria para assegurar-se que os leitores as vissem. (As duas frases se situavam no terço superior do discurso, no meio de um parágrafo sobre a necessidade de aperfeiçoar a instituição do Congresso Popular Nacional.)

O significado dessas frases decorre do fato de que o constitucionalismo é um vazio gritante no regime chinês. O constitucionalismo baseia-se na lei, e é o fundamento da ordem e do poder, ao invés da vontade de uma elite autonomeada, ou seja, o Partido Comunista Chinês. Xi Jinping fez outros comentários – por exemplo, que “o poder deve ser restrito pelas cercas dos regulamentos”.

Ultimamente, o constitucionalismo tem sido um assunto comum de discussão entre os ideólogos do PCC, reformadores e intelectuais em geral na China, mas essas ideias estão em profundo conflito com o DNA ideológico do Partido.

O PCC é uma organização revolucionária marxista-leninista, uma “aliança de operários e camponeses”, conforme a atual Constituição chinesa coloca. O Partido Comunista é a ferramenta da “ditadura democrática do povo” e, portanto, implicitamente, a fonte de ordem e poder – e está sempre acima da lei ou da Constituição.

Enquanto a interferência política de Liu Yunshan é uma possível explicação para a ausência do discurso, e seus argumentos, da imprensa oficial, os próprios imperativos de propaganda de Xi Jinping também podem estar por trás disso.

Qian Gang, um estudioso da mídia chinesa, destacou num editorial para a edição chinesa do Wall Street Journal que a publicação recente de um livro de discursos reunidos de Xi Jinping silenciosamente omitiu vários discursos cruciais feitos pelo líder chinês. Ambos os desdobramentos estão relacionados ao constitucionalismo.