A pachorra brasileira vem do Império. O partido liberal aderiu à causa abolicionista, e mesmo assim aos pedaços, apenas em 1884. O partido conservador, só na antevéspera da assinatura da Lei Áurea, em 1988. País desavergonhado, no século XIX, pretendia acabar com a escravidão “naturalmente”, como decorrência da Lei do Ventre Livre.
Pelas contas de Joaquim Nabuco, mantida a legislação brasileira do final da década de 1880, ainda teríamos cativos “ingênuos” no início dos 30 do século XX. À época da abolição, havia 700 mil escravos no país, para uma população de quinze milhões de pessoas. Os “grandes perdedores” eram um núcleo de cafeicultores do Vale do Paraíba. O Barão de Cotegipe, senador pela Bahia, gastava seu tempo na tribuna, atacando o projeto abolicionista sob o argumento dos “direitos adquiridos”. O Brasil tem história… O trade off era evidente e sugestivo. A civilização contra alguns trocados de uma aristocracia decadente.
O retardo da abolição foi um prenúncio. O símbolo monumental de uma elite sem convicções. Havia Nabuco, é verdade. Mas tipos como ele raramente alcançaram uma posição hegemônica em nosso processo político. Uma exceção foi o presidente Fernando Henrique. Ele expressou uma convicção modernizadora, traduzida no Plano Real, no saneamento do sistema financeiro, na Lei de Responsabilidade Fiscal e no desenho do marco da reforma do Estado. Tratou-se de uma “modernização pela metade”, é verdade, descontinuada nos governos que se seguiram. Tratou-se, igualmente, de um processo com alto custo político. Fernando Henrique saiu derrotado nas urnas, acossado pela malta corporativa brasileira. Mas a história lhe vem rapidamente fazendo justiça.
Não parece faltar ao Brasil lideranças de qualidade aqui e acolá. O que parece faltar é um traço cultural muito particular, que chamo de “convicção modernizadora”, na sociedade e na elite política. Exemplos disso não faltam. Tomemos o caso da estrutura do nosso serviço público. Em linhas gerais, nossa rede de escolas públicas, universidades, hospitais, museus, centros de atendimento social, sistema prisional, funcionam segundo um modelo de monopólio estatal, herdeiro do antigo Dasp (Departamento Administrativo do Serviço Público), do estado novo varguista, e consolidado pela Constituição de 1988. Qualquer pessoa que precise utilizar nosso sistema público de saúde, ou coloque o filho em uma escola pública, sabe que este sistema não funciona. A imprensa registra, à exaustão, todo santo dia, notícias sobre a precariedade das nossas prisões, o descaso nos postos de saúde, os últimos lugares obtidos por nossos estudantes de ensino público em qualquer exame internacional.
Se tornou voz corrente interpretar que boa parte do descontentamento que levou às manifestações do mês de julho era devido à “má qualidade dos serviços públicos”. Todos estamos cansados de saber disso. A pergunta é: há alguma disposição no sistema político ou na sociedade para encaminhar uma mudança estrutural nesta situação? O modelo das Organizações Sociais (OS), talvez a mais inteligente tentativa de produzir uma mudança real na qualidade da prestação de serviços públicos no país, e que vem apresentando resultados extraordinários no estado de São Paulo (vide exemplos da Osesp e da rede de hospitais OS do Estado), é simplesmente ignorado em nível federal e em boa parte dos estados e municípios. Quanto aos chamados “movimentos sociais”, quando vão às ruas, parecem tomar exatamente a direção contrária ao óbvio: solicitam “mais Estado”, mais “setor público”, e tendem a reagir acriticamente contra qualquer projeto de parceria publico-privada.
No Rio de Janeiro, assistimos recentemente a um caso típico. As manifestações de junho tinham como um ponto central a ideia de “nenhum dinheiro público nos estádios e arenas de futebol”. Dias depois, curiosamente, passeatas se voltavam contra a “privatização do Maracanã”. A pergunta que me vinha à cabeça era sobre quem, afinal de contas, aquelas pessoas imaginavam que deveria administrar o maior estádio de futebol do país. Sem dinheiro público e sem a iniciativa privada, talvez um bom santo milagreiro daria conta do serviço.
O que me pareceu mais significativo, naquele processo, foi o rápido recuo do governo do estado, diante da pressão exercida por um pequeno número de pessoas, defendendo a preservação do Museu do Índio, do antigo estádio de atletismo Célio de Barros, do parque aquático Júlio Delamare e da escola municipal Friedenreich. Os edifícios foram “retombados” pelo patrimônio histórico do município, em tempo recorde, e todo o processo de concessão da área ao setor privado posto em risco. Imagino que o governo do Rio de Janeiro, bem como a prefeitura da cidade, não tenha agido dessa forma simplesmente em função das pequenas mobilizações de grupos de interesse. Os governos recuaram a partir da percepção de que um processo de concessão como o do Maracanã, absolutamente óbvio e necessário, e feito através de um amplo processo concorrencial, não contava com uma base significativa de apoio junto à população, o que poderia ser desastroso nas eleições do ano que vem. Imagino que a leitura, em minha visão inteiramente equivocada, tenha sido esta.
O episódio nos diz algo sobre a natureza dos processos de modernização. Sua lógica pode ser apreendida a partir da clássica matriz “custos concentrados x benefícios difusos”, cuja formulação original remonta aos escritos de Nicolau Maquiavel. Impor mudanças ou criar uma “nova ordem”, nas palavras do pensador florentino, é um dos mais perigosos empreendimentos para um governante. Ele tenderá a enfrentar a oposição tenaz dos que perdem, e obter apenas um apoio tímido dos que ganham. São assim, nas grandes democracias, os processos de mudança que implicam no desalojamento de interesses corporativos muito bem situados e identificados.
A legislação trabalhista brasileira, por exemplo, precisa mudar. A Alemanha produziu uma mudança de sua legislação, em 2003, e hoje dispõe de uma das menores taxas de desemprego da Europa. A lei trabalhista brasileira remonta ao final do Estado Novo, foi feita para um mundo sem computadores, sem automação industrial, muito antes da emergência da chamada “economia do conhecimento”. Enfrentar suas amarras, entretanto, supõe fazer frente à corporação sindical brasileira, regiamente financiada pelo imposto sindical, e imensamente capaz de produzir danos a qualquer político que desafiar seu programa e seus interesses.
Por tudo isto, os processos de modernização exigem, por parte de quem lidera, uma enorme dose de convicção. Exigem “visão de Estado”, foco no futuro, mais do que a sabedoria dos marqueteiros e a urgência política das próximas eleições. Visão de Estado supõe, por sua vez, a percepção do momento histórico. Havia base social para a reconstrução da democracia, no país, no início dos anos 80. O cenário era muito distinto às vésperas do golpe de 1964. A sociedade que deu guarida, tácita ou explicitamente, à derrubada do governo Goulart e foi às ruas, duas décadas após, na campanha das diretas. Mas nem a ditadura, nem a reconstrução democrática, eram resultados necessários, em um ou outro caso. O movimento da história se faz de virtude e fortuna.
A democracia, no Brasil, se fez porque tivemos, ao longo dos anos mais difíceis, líderes capazes de manter a lucidez e a tenacidade de pôr em execução uma agenda democrática. Nos anos 90, um novo consenso social se criou, dessa vez em torno da estabilização da moeda, com o Plano Real. Novamente, estavam lá o ambiente social favorável e a liderança política de Estado. O consenso se fez tão poderoso que determinou, inclusive, o feliz ajuste programático do PT, originalmente resistente à estabilização, permitindo que esta se mantivesse ao longo dos dois mandatos do presidente Lula. No atual governo, não parece existir a mesma convicção.
O ponto é que, o mesmo tipo de consenso formado em torno da democracia, nos anos 80, e da estabilidade econômica, nos anos 90, parece não existir em torno daquela que seria a terceira grande agenda contemporânea brasileira: a modernização de nosso Estado e da nossa economia. O Brasil parece não ter tomado a “decisão” de se tornar efetivamente um país capitalista liberal, aberto e com um welfare state moderno, não assistencialista, capaz de integrar as pessoas ao mercado de trabalho. Uma economia aberta a novos negócios, com baixa burocracia, carga tributária moderada e voltada à competição internacional. Uma sociedade menos tolerante com a corrupção e fundada em um código de igualdade dos cidadãos diante da lei. Talvez soe estranho imaginar que um país possa tomar uma “decisão”. A expressão tem um sentido figurado. O ponto é saber em que nível certas ideias são hegemônicas na sociedade e, em particular, junto à liderança política do país.
Temo que, por absoluta carência de convicção modernizadora, o Brasil atravesse este incrível período histórico do bônus demográfico sem ultrapassar a chamada “armadilha da classe média”. Isto é, o país logra superar os estágios mais aviltantes da miséria, faz a renda per capita chegar a um patamar mediano, em termos globais, mas permanece, para usar uma expressão, a meio caminho. Orgulha-se em universalizar uma educação medíocre para nossas crianças, no ensino fundamental. Contenta-se em dispor de pouco mais de 15% de brasileiros na idade apropriada cursando o ensino superior, em regra, em instituições de pouca qualidade. Contenta-se com pouco, em fazer a sua “modernização pela metade”. Oxalá eu esteja equivocado.
Fernando Luís Schüler é doutor em Filosofia Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e diretor-geral do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec), no Rio de Janeiro
Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Millenium