A Ucrânia é hoje o palco da evolução de um velho conflito e, se o Ocidente acusa Vladimir Putin de ter dado início a um novo modelo de guerra para o século XXI, o líder russo diz que muito pouco mudou e que a Rússia está apenas e uma vez mais se defendendo.
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Aliança da Otan diz que prefere a dissuasão
Falou-se bastante de uma nova Guerra Fria, dos velhos inimigos que voltaram a erguer-se com os fantasmas do passado, como um desafio do futuro. Nos últimos meses, com o desenrolar da crise no Leste da Ucrânia, as relações entre a Aliança Atlântica e o Kremlin foram muito além do azedume. A cortina de ferro imposta pelo Ocidente não chegou para demover a Rússia, mesmo quando os seus indicadores acusam claramente o abalo das sanções econômicas e houve já a necessidade do banco central intervir e desembolsar milhões para não permitir uma derrocada maior do rublo face ao dólar. Mas se a situação se tornou alarmante e há um risco de colapso provocado por uma crise sistêmica, Vladimir Putin recusa-se a desviar o país da linha de embate e tem dado mostras de uma frieza e determinação implacáveis.
Trata-se de um conflito que os próprios analistas da Otan qualificam como “híbrido”, dada a intervenção de forças regulares e irregulares, de uma forte campanha de contra-informação e da ostentosa presença militar numa ofensiva limitada. “Os russos demonstraram que são capazes de mobilizar quase um exército inteiro numa questão de dias, e isto sobre as fronteiras da Otan. É este o modelo que temos em mente”, afirmou na semana passada um alto comando da aliança num encontro com jornalistas na sede de Bruxelas, à margem da reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros da organização.
O cenário invocado passa por um modelo de guerra em que se vê evoluir uma estratégia que organiza e funde os esforços de militares sem uniforme, grupos paramilitares, táticas terroristas, defesa cibernética, conexões com o narcotráfico e o tipo de insurgência urbana que não tem dificuldade em ver-se armada com as AK-47. “É uma combinação de diferentes meios e instrumentos, do previsível com o imprevisível, em que deixa de haver fronteiras entre o que é legal e ilegal, entre a violência e a não violência, quando deixa de haver uma distinção real entre guerra e paz”, explicou ao “El País” Félix Arteaga, especialista em segurança e defesa.
É este o modelo de guerra em que aposta o presidente russo. A guerra que tem conduzido na Ucrânia e o conjunto de operações que realizou ao longo do ano em outros pontos, como os mais de 400 voos não autorizados de aviões de combate no espaço aéreo do Báltico e do Mar Negro, ou o misterioso episódio do submarino russo que surgiu junto à costa sueca ou até, porventura, o bem mais preocupante abate do avião da Malaysia Airlines no Leste da Ucrânia, em julho. Estas ações fizeram soar o alarme entre os antigos membros do Pacto de Varsóvia e da extinta União Soviética. “Não queremos um conflito com Moscou”, tem repetido o novo secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg. E se os analistas garantem que a aliança quer evitar um conflito, preferindo a dissuasão, o ponto de vista de Putin é de que a Rússia foi empurrada para o conflito pela posição dominante que assumiu a Otan junto das suas fronteiras.
Putin diz que foi empurrado para a guerra
A anexação da Crimeia foi apenas um pretexto para as sanções ocidentais contra a Rússia, afirmou Vladimir Putin no discurso do Estado da Nação, na quinta-feira passada (4). O presidente russo fez questão de sublinhar a importância da península do Mar Negro, garantindo que esta era tão sagrada para os russos como o Monte do Templo de Jerusalém é para os judeus e muçulmanos. Pouco interessa se esta alusão religiosa contorna o fato de a Crimeia apenas ter sido conquistada pela Rússia no final do século XVIII, tendo passado muito mais tempo enquanto território do Império Otomano. Também não seria com esse argumento que iria conseguir esquivar-se às sanções ocidentais. O ponto, segundo Putin, é que, não fosse a anexação da península ucraniana, o Ocidente teria encontrado outra desculpa.
Na década de 1990, prosseguiu, os americanos tinham já usado os serviços secretos para financiar e apoiar os terroristas chechenos num esforço para dividir a Rússia. “Teriam ficado felizes se pudessem deixar a Rússia no cenário de desintegração e desmembramento em que ficou a Iugoslávia… Mas não resultou, tal como não resultara antes a tentativa de Hitler, que se empenhou em destruir a Rússia e conseguiu nos empurrar para lá dos Urais. Mas todos ainda devem estar lembrados como isso terminou”, disse Putin. Para o homem que tem controlado o Kremlin desde o início do século XXI, a revolução que derrubou o governo pró-russo em Kiev, no mês de fevereiro, foi outro golpe norte-americano contra os interesses russos na região.
Há um aspecto no qual a maioria dos analistas parecem concordar: Putin está realmente convencido de que a Otan, com os EUA à frente, quer dominar o mundo. Tal como os meios de comunicação russos inventaram que a revolução na praça Maidan não passava de um golpe de um bando de fascistas, os meios ocidentais esforçam-se por passar de Putin a imagem de um tirano corrupto e paranoico. A contra-informação, como se vê, é um elemento-chave num conflito híbrido.
No discurso ao país, Putin não evitou falar sobre a economia, e começou por assegurar que não irá aumentar os impostos nos próximos quatro anos, anunciando ainda, como medida para travar a acelerada fuga de capitais, uma anistia legal para todo o dinheiro que seja repatriado através de offshores. Em contraste com Mikhail Gorbachev, que, perante o colapso em meados da década de 1980, abriu o sistema político soviético à concorrência e melhorou as relações com o Ocidente, Putin não falou sobre o sistema político e evitou também o tema da corrupção.
Putin parece confiante de que a desvalorização do rublo combinada com uma atitude menos draconiana quanto à propriedade privada seja o suficiente para relançar a economia. Contudo, há sinais de que o “czar” possa estar perdendo a batalha, uma vez que as suas palavras já não têm tanto peso sobre a economia, e a verdade é que mesmo enquanto falava o rublo continuava a perder frente ao dólar. Os russos podem ter ficado eufóricos com a anexação da Crimeia numa altura em que os seus rendimentos não paravam de crescer, mas agora que uma ameaça paira sobre os padrões de vida a que se habituaram na última década e com um inflação cada vez mais elevada, talvez comecem a inclinar-se mais para a devolução da península e para poderem se livrar de mais chatices.
Editado por Epoch Times