A OMC e os acordos de ‘livre’ comércio

10/10/2014 07:00 Atualizado: 09/10/2014 21:14

Dentre as várias notícias oriundas de todas as partes do mundo sobre recessão, novos bombardeios aéreos, tentativas de secessão e mudanças climáticas, a questão do comércio internacional — o qual, em 2008, passou pela maior crise da sua história — tem estado majoritariamente fora do radar.

No entanto, essa ausência de debate não deve gerar nenhuma preocupação, pois, segundo nos dizem, a Organização Mundial do Comércio — o mais proeminente órgão global na promoção do comércio multilateral, dirigida pelo brasileiro Roberto Azevêdo — permanece atenta e vigilante, e está otimista de que os esforços para a liberalização do comércio gerarão frutos no futuro próximo.

Lamentavelmente, o otimismo da OMC não se justifica: a Rodada de Doha, que começou em 2001 e que tinha o intuito de discutir a ampliação do livre comércio mundial, não se concretizou após longos 13 anos, e não há êxito nenhum a ser mostrado.

Procurando atender às preocupações e exigências dos países menos desenvolvidos em relação à liberalização do comércio, a Rodada de Doha deveria culminar em 2005 com um novo acordo comercial. O acordo deveria envolver uma redução nas tarifas de importação sobre commodities e sobre serviços, bem como um novo arcabouço internacional para os direitos de propriedade intelectual.

Porém, tão logo as negociações começaram, tanto os governos dos principais países em desenvolvimento — Índia, Brasil, China e África do Sul — quanto organizações não-governamentais (ONGs) reclamaram que tais acordos internacionais impediriam que seus respectivos governos adotassem políticas protecionistas para blindar seus setores e suas indústrias (supostamente ainda em desenvolvimento), bem como dificultariam a regulação de serviços financeiros.

Após o fracasso da Conferência Ministerial de Cancun em 2004, os defensores dos acordos internacionais começaram a se preocupar com a hipótese de que Doha não fosse completada dentro do seu prazo original. Ainda assim, mantiveram as esperanças de que as negociações continuariam. No entanto, as negociações chegaram a um impasse em 2006, 2009 e 2011, majoritariamente por causa de discordâncias sobre as políticas agrícolas. Os EUA e a União Europeia chegaram até mesmo a revogar acordos firmados anteriormente sobre uma redução aos seus subsídios agrícolas e às suas exportações, argumentando que não queriam enfraquecer suas posições de barganha na Rodada.

Desde então, tentativas de reconciliar divergências entre os países foram em vão.

No entanto, em dezembro de 2013, novos ventos pareciam empurrar a Rodada de Doha para direções mais favoráveis. A Conferência Ministerial de Bali, a qual foi concluída com a assinatura de um pacote de acordos sobre o recolhimento de tarifas alfandegárias e com a divulgação de uma agenda de desenvolvimento, foi proclamada como tendo “alcançado aquilo que muitos acreditavam ser impossível”: fez com que todos os 160 membros da OMC concordassem pela primeira vez em doze anos.

Porém, ainda que o pacote de Bali não tivesse muito a ver com livre comércio — o acordo facilitava o recolhimento, mas não a redução, de tarifas alfandegárias —, o acordo, até de julho de 2014, ainda não foi assinado por todos os membros. A Índia vetou a ratificação do acordo para ganhar mais poder de barganha para seu programa de subsídios aos seus alimentos domésticos. A Reuters anunciou que “os diplomatas em Genebra se disseram ‘estupefatos’, ‘atônitos’, ‘decepcionados’, e descreveram a posição da Índia como ‘suicida’ e típica de quem quer ‘fazer reféns’.”

O fato é que ninguém, muito menos articulistas econômicos, deveria se surpreender com esse impasse. Ele é da própria essência da Organização Mundial do Comércio.

O que é a OMC

Entender a OMC requer uma percepção um tanto contra-intuitiva: embora a entidade se diga uma proponente do livre comércio, ela na realidade representa a maior ameaça ao livre comércio.

Como todas as burocracias, a OMC está majoritariamente preocupada em expandir seus poderes e sua jurisdição, o que significa que ela não tem nenhuma objeção em fazer do comércio internacional um veículo para a imposição de “direitos trabalhistas” universais e de regulamentações ambientalistas paralisantes. A simples ideia do livre comércio clássico, o qual não requer nenhum controle centralizado, é a verdadeira vítima da OMC.

A OMC não passa de uma assembléia de governos que, por meio de seus burocratas representantes, brigam entre si para ver quem irá efetivamente controlar os formidáveis poderes da entidade e, com isso, intermediar contendas comerciais e impor sanções. Todos os países membros — tanto os desenvolvidos quanto os em desenvolvimento — querem o poder de nomear juízes que irão burlar as regras em benefício de suas próprias indústrias e contra os concorrentes externos.

Neste cenário, quaisquer promessas sobre “abrir as fronteiras para o comércio internacional” são meras palavras ao vento. Um genuíno livre comércio e uma genuína concorrência externa iriam solapar o poder dos grandes empresários que fazem lobby para que os burocratas da OMC defendam seus interesses. Um genuíno livre comércio e uma genuína concorrência externa iriam driblar e abolir toda essa estrutura de intervenção governamental.

Um genuíno livre comércio

O livre comércio não requer tratados. Tudo o que ele necessita é que se removam (unilateral ou multilateralmente) todas as barreiras artificiais ao comércio: a Inglaterra fez isso em meados do século XIX, Hong Kong o fez em meados do século XX. Para se ter uma ideia, em 1879, a Constituição dos Estados Unidos usou apenas 54 palavras para estabelecer o livre comércio entre os estados. Já o NAFTA, o acordo de “livre” comércio entre o Canadá, o México e os EUA tem duas mil páginas, novecentas das quais se referem unicamente a tarifas.

O tamanho mastodôntico desses acordos de comércio, com suas miríades de estipulações e controles — tais como regras sobre a origem e a correspondente inspeção de produtos, exigências de verificação, e a interferência em assuntos soberanos, como leis trabalhistas — desvirtuam completamente seu nome.

Acordos de comércio vêm sempre cheios da palavra “exceção”. Aqueles que sabem manusear suas influências políticas por meio de grupos de interesses sempre recorrem a “favores” para se protegerem da concorrência externa. Em vez de livre comércio, o que esses acordos criam é um sistema de comércio dirigido e manipulado, além de — como era de se esperar — muitos, caros e inúteis empregos para burocratas, empregos estes que só servem para destruir a riqueza dos países envolvidos.

Supervisionar e controlar o comércio entre dois países faz tanto sentido econômico quanto supervisionar e controlar o comércio entre os estados de um mesmo país.

Acordos comerciais têm também outras implicações prejudiciais. Eles discriminam importações de baixo custo de países que não fazem parte do tratado. O comércio com estes países é ignorado em prol de fornecedores que, apesar de serem mais caros, gozam de isenções fiscais, pois pertencem a países signatários do acordo. E parte da receita tributária de que o governo abriu mão por causa do uso de isenções tarifárias acaba se transformando em renda para o bolso do fornecedor privilegiado.

Políticos que falam em livre comércio estão iludindo o eleitorado. Várias indústrias de seus respectivos países entrariam em colapso caso as importações estrangeiras fossem totalmente liberadas.

Qualquer indivíduo que realmente tenha a paciência de ler, na íntegra, os acordos comerciais atuais não se surpreenderia em descobrir que eles se concentram cada vez menos na redução das tarifas de importação e cada vez mais no “desenvolvimento da indústria nacional”, na promoção de exportações, e na afirmação de uma política doméstica. Seu verdadeiro propósito — um protecionismo discreto — é ocultado por termos vagos como “comércio mais livre e mais justo”, “liberalização gradual”, “concessões recíprocas” e “pacotes de desenvolvimento”.

No entanto, os benefícios do comércio internacional não estão na moderação e no grau de reciprocidade. Uma genuína política de livre comércio seria a abolição de toda e qualquer barreira comercial, e esse deve ser o objetivo unilateral de todo e qualquer país. Se os mercados fossem libertos da mão pesada dos governos, o livre comércio internacional seria o resultado automático e inevitável.

Até o início do século XX, o comércio entre as nações funcionava sem a intervenção de um organismo legalmente nomeado para ser o arbitrador dos termos do comércio. É verdade que, em algumas ocasiões, os governos impunham pesadas restrições às importações e às exportações, mas as contendas eram majoritariamente solucionadas pelos próprios agentes envolvidos na transação. A Lex mercatoria regulava os contratos, ao passo que confiança, reputação e soberania do consumidor eram as forças autônomas que mantinham todos honestos.

A grande constatação dos liberais clássicos britânicos foi justamente a de que o comércio não precisava ser controlado nem domesticamente e nem internacionalmente. Consumidores e produtores, independentemente de em que país viviam, eram capazes de negociar seus próprios acordos, ao passo que tarifas e outras barreiras comerciais não apenas prejudicavam os produtivos e eficientes, como beneficiavam apenas os incompetentes. Por isso, os liberais clássicos defendiam a eliminação de todas as restrições sobre o comércio, e se opunham a todo e qualquer tipo de gerenciamento governamental do comércio.

Mas os governos não gostam desse sistema justamente porque ele os deixa de fora do esquema. É por isso que, desde o início do século XX, os governos se organizaram para criar uma estrutura internacional para gerenciar o comércio global.

Conclusão

A economia mundial está hoje mais integrada do que jamais esteve, e a isso devemos uma grande parte de nossa atual prosperidade. Ao mesmo tempo, o comércio mundial nunca esteve tão politizado.

Nunca antes na história do mundo os sindicatos, os ambientalistas e os reformistas sociais tiveram o poder que têm hoje para impor sua agenda sobre o comércio internacional. Nunca antes os governos protecionistas — e os EUA são um dos principais — tiveram tamanho acesso ao litígio e à intervenção. Nunca antes uma economia em desenvolvimento como a China teve de se rastejar perante um cartel de governos apenas para ser admitida no arranjo do comércio mundial.

A OMC, assim como qualquer organismo burocrático global, não é nenhuma aliada de uma ordem econômica internacional genuinamente liberal. Há uma inerente incompatibilidade entre livre comércio e um crescente controle governamental sobre o comércio. Quanto mais um país se envolve com organismos internacionais voltados para a “promoção” do livre comércio, mais ele se fecha ao comércio estrangeiro.

Apenas duas coisas são necessárias para que haja um genuíno livre comércio: um sistema monetário sólido e total liberdade de empreendedorismo.

Por isso, uma genuína política de livre comércio deve começar pela abolição da OMC.

Participaram deste artigo:

Lew Rockwell, chairman e CEO do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama, editor do website LewRockwell.com, e autor dos livros Speaking of Liberty e The Left, the Right, and the State

Carmen Dorobat, pós-doutoranda em economia na Universidade de Angers e professora na Bucharest Academy of Economic Studies

Manuel Ayau, (1925 — 2010), foi acadêmico, intelectual e empresário da Guatemala. Era engenheiro mecânico e foi o fundador do Centro de Estudios Económico-Sociales (CEES), da Universidad Francisco Marroquín e de outras instituições dedicadas à difusão do liberalismo clássico

Instituto Ludwig von Mises Brasil

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