Odebrecht financia fornecedor do Porto de Mariel

22/05/2014 06:23 Atualizado: 22/05/2014 12:48

Uma das maiores empreiteiras do país e de propriedade de uma das dez famílias mais ricas do Brasil, a Odebrecht financia fornecedor das obras do Porto de Mariel, em Cuba, um investimento orçado em US$ 957 milhões, dos quais US$ 692 milhões (R$ 1,52 bilhão) bancados com dinheiro público brasileiro por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Documentos e informações obtidas pelo Congresso em Foco mostram que, dois anos depois de iniciar a modernização do terminal portuário, a construtora fez um empréstimo de R$ 3 milhões à empresa de consultoria de projetos Noronha Engenharia. Em 2013, sem terminar de pagar a dívida, essa empresa assinou um contrato pelo qual receberia mais R$ 3,6 milhões da Odebrecht para certificar a qualidade das estruturas do porto.

De acordo com a construtora e com a própria Noronha, o empréstimo de dois anos atrás não foi quitado até hoje. As explicações das duas empresas foram prestadas ao Congresso em Foco depois de a reportagem questionar sobre mensagem de correio eletrônico (ver abaixo), obtida pelo site e supostamente enviada por funcionários da Odebrecht, para a Noronha Engenharia. Nela, um economista do setor financeiro da construtora lista os pagamentos feitos à Noronha motivados pela inspeção na obra e, ao lado de cada um, relaciona “pagamentos-espelho” que a consultoria deveria fazer à empreiteira responsável por modernizar o porto cubano.

Há duas semanas, a reportagem apresentou essa mensagem eletrônica à empreiteira – que, no primeiro momento, não explicou a natureza dos pagamentos – e narrou seu conteúdo ao diretor da Noronha, o engenheiro Bernardo Golebiowski. Uma assinatura semelhante à do engenheiro está anotada à caneta na reprodução do email, informando pagamentos que sua empresa fez à construtora do porto de Cuba.

Em nota ao site, Golebiowski disse que a referência à obra do porto na mensagem se deu porque sua empresa se comprometeu a pagar o empréstimo com “ingressos relativos a serviços prestados ao próprio grupo Odebrecht, o que inclui o contrato para (…) Cuba”. A reportagem também exibiu o documento ao secretário-executivo do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), Ricardo Liáo, que achou a situação estranha e merecedora de mais esclarecimentos, para ser afastada qualquer suspeita de “desvio de recursos públicos”.

Somente depois disso, na semana passada, a Odebrecht se manifestou novamente. Disse que “não reconhece a autenticidade do suposto email”. Confirmou a versão do empréstimo para justificar os pagamentos da Noronha, desassociando-os da obra em Cuba. Afirma que tudo foi legal, ou seja, que os serviços de consultoria foram efetivamente prestados. A assessoria da empreiteira forneceu cópia da transferência bancária de R$ 3 milhões para a conta da Noronha, em 2012, que seria o financiamento concedido à fornecedora de serviços. Sem dar cópias, a Odebrecht exibiu um contrato de empréstimo e um aditivo, com datas de 2012 e 2013, mas sem registros ou firmas em cartório.

Já de acordo com as mensagens de email, não reconhecidas pela Odebrecht, dos R$ 3,6 milhões pagos pela construtora à Noronha pela certificação das estruturas, R$ 2,5 milhões deveriam retornar à Odebrecht. O montante equivale a 70% do combinado, descontando-se apenas o imposto pago pela consultoria. De acordo com o email e as anotações feitas à mão, supostamente de Golebiowski, foram pagos à construtora entre R$ 1,26 milhão e R$ 1,46 milhão até dezembro do ano passado.

Empréstimo e sigilo

Procurados pelo Congresso em Foco, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), representantes do governo brasileiro no acordo com Cuba, não comentam a operação da empreiteira com a consultoria. O MDIC decretou sigilo por 25 anos de todos os financiamentos concedidos para projetos no exterior, a exemplo de Mariel.

A reportagem questionou ao BNDES se certificações de qualidade eram exigências do banco para a concessão de empréstimo, mas a assessoria disse que deveriam ser observadas apenas as regras ambientas, trabalhistas e “legais”. “Em todo e qualquer projeto de financiamento a exportações de bens e serviços brasileiros, quem cabe avaliar qualidade de projeto executado pela empresa exportadora é a empresa que contrata o serviço de execução das obras. Esse papel não é do BNDES.”

O banco afirma ter feito vistorias técnicas em Cuba para aferir os pagamentos feitos pela Odebrecht e, assim, garantir o repasse das parcelas do financiamento bilionário na conta da empreiteira brasileira. No final de janeiro, a presidente Dilma Rousseff inaugurou a primeira etapa da reforma do porto ao lado de Raúl Castro e do presidente da Odebrecht, Marcelo Odebrecht.

O sigilo nesse tipo de financiamento é contestado pela oposição, que reclama da destinação de dinheiro público brasileiro para outros países. A empreiteira brasileira foi escolhida pelo governo cubano, segundo o BNDES. As obras em Mariel começaram em 2010. Contratada para certificar as obras do porto de Mariel, a Noronha Engenharia é uma consultoria conhecida no mercado. Com 82 anos de atuação no Rio de Janeiro, fez o estudo de viabilidade da ponte Rio-Niterói, em 1968. Atualmente, porém, enfrenta dificuldades financeiras, segundo sua própria diretoria.

Vaivém de dinheiro

O contato entre as duas empresas previa que a Odebrecht-COI, subsidiária da empreiteira baiana, pagaria R$ 3,6 milhões à consultoria – divididos em 12 parcelas, de abril do ano passado até março de 2014. O serviço era conferir a qualidade de nove pontes que dão acesso ao terminal portuário e também do edifício administrativo de Mariel.

De acordo com o contrato COI-Cuba-Prodi 05.13 e seu aditivo, aos quais o Congresso em Foco teve acesso, “o pagamento dos serviços executados” seria feito “sob amparo do financiamento concedido pelo governo brasileiro”. O acordo entre as duas firmas prevê o repasse de três parcelas iniciais de R$ 466 mil, nove de R$ 233 mil, além de dois pagamentos de R$ 55 mil cada.

As propostas, os aditivos, o contrato, as notas fiscais e os recibos de pagamento vinculados a depósitos bancários obtidos mostram que o serviço feito pela Noronha em Cuba foi pago pela Odebrecht normalmente. Mas, em 18 de dezembro do ano passado, uma mensagem de correio eletrônico da área financeira da Odebrecht, revela que os valores estavam voltando para a empreiteira na mesma velocidade com que eram pagos à consultoria. A construtora nega a autenticidade desse email. A mensagem “Encontro de contas” revela um fluxo de pagamentos. Sua autoria é creditada a José Roberto dos Santos, economista que trabalha na área financeira da Odebrecht.

Pela versão à qual o Congresso em Foco teve acesso, a mensagem é endereçada a outro funcionário da construtora, Marcos Grillo, que trocaria correspondências com o diretor-técnico da Noronha, o engenheiro Bernardo Golebiowski.

Contrato vinculado ao Porto de Mariel (Reprodução)
Contrato vinculado ao Porto de Mariel (Reprodução)

No email, cuja veracidade é contestada pela Odebrecht, Roberto questiona Grillo por que a empreiteira só havia recebido seis parcelas de volta da Noronha. “Essa informação não fecha com os ingressos recebidos esse ano e registrados (…). Nós recebemos 6 parcelas de R$ 210.000,00 conforme o quadro a baixo [sic]”, pergunta o economista. Ou seja, a Noronha teria repassado R$ 1,2 milhão à empreiteira responsável pelas obras do porto de Mariel.

Abaixo do texto, a mensagem atribuída a José Roberto apresenta uma planilha que lista os pagamentos feitos pela Odebrecht à Noronha, exatamente nos valores previstos pelo contrato COI-Cuba-Prodi 05.13. Ao lado de cada cifra, inclui o desconto de 1,5% do Imposto de Renda que a consultoria deveria arcar. Assim, a cada pagamento à Noronha, correspondia um pagamento “líquido” de R$ 210 mil para a Odebrecht.

E-mail revela pagamentos da Odebrecht a Noronha Engenharia S.A. (Reprodução)
E-mail revela pagamentos da Odebrecht a Noronha Engenharia S.A. (Reprodução)

Coaf

O fluxo de pagamentos entre a Odebrecht e a Noronha desperta dúvidas no secretário-executivo do Coaf. Segundo Ricardo Liáo, as movimentações financeiras registradas entre a Odebrecht e a Noronha precisam ser esclarecidas. Em entrevista ao Congresso em Foco, Liáo disse ver “uma relação financeira com uma via, mas que, na verdade, sugere duas”. Para ele, é preciso saber, com absoluta segurança, por que a consultoria pagou à empreiteira. Seria necessário uma documentação farta e robusta para dizer, cabalmente, que tudo não passou de um empréstimo ou outra operação legal. Além disso, é preciso considerar que a origem de todos os negócios é um financiamento do BNDES, um banco estatal que concede crédito a juros subsidiados. “A título de quê? Tem bom contrato ou é por fora? Se for por fora, aí é propina ou suborno. Não deixa de ser uma forma de desvio de recursos públicos”, afirmou Liáo. Como fornecedora costumeira da Odebrecht, a Noronha vem recebendo diversos repasses financeiros da construtora em projetos pelo mundo nos últimos anos. Mas, segundo representantes da empreiteira, o comprovante de transferência de R$ 3 milhões se refere, sim, ao contrato de empréstimo de 2012. Um contrato sem aval de cartório.

Resumo da planilha (Epoch Times)
Resumo da planilha das transações (Epoch Times)

Conforme exigências

A planilha atribuída à Odebrecht mostra que, dos R$ 3,6 milhões pagos, nada menos que R$ 2,5 milhões deveriam ser pagos de volta, ou por outro motivo, à própria empreiteira responsável pelo porto. No momento, a construtora acusava ter recebido R$ 1,26 milhão. Ao receber a mensagem de Roberto, o engenheiro Bernardo Golebiowski, da Noronha, imprime o documento e assina anotações à mão, nas quais contabiliza ter pago sete, e não seis, parcelas à Odebrecht – R$ 1,46 milhão. Só restaria uma parcela pendente, a de novembro.

Em notas ao site, a Odebrecht destacou o bom relacionamento com a Noronha e disse que “todas as relações comerciais e financeiras entre as duas empresas são realizadas conforme as exigências legais”. Representantes da empresa que conversaram com o site afirmaram que o empréstimo é motivado por um histórico de parcerias entre as duas empresas.

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