A autoridade máxima de transplante de órgãos na China anunciou mais uma vez que o país pararia de usar os órgãos retirados de prisioneiros executados e que a partir de 1º de janeiro de 2015 usaria apenas os órgãos doados livremente por cidadãos comuns. Pelo menos, é isso o que as manchetes afirmam.
Se a promessa de fato foi feita, essa seria a segunda vez que Huang Jiefu, um cirurgião com assento na Conferência Consultiva Política Popular, um órgão consultivo do Partido Comunista, e diretor do Comitê de Doação de Órgãos da China, fez tal declaração.
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A primeira vez foi em 2012, embora nenhum prazo tenha sido definido. Essa alegação também foi relatada com entusiasmo pela grande mídia internacional na ocasião, embora não tenha havido acompanhamento quando, no início deste ano, Huang voltou atrás e disse que na verdade os órgãos de prisioneiros executados ainda seriam usados, contanto que a permissão fosse obtida adequadamente.
Parece que o velho engodo usado anteriormente está sendo empregado de novo no caso presente em questão.
Analisando as observações
As declarações de Huang Jiefu foram feitas num fórum médico numa conferência em Kunming, capital da província chinesa de Yunnan. Não há transcrição oficial ou gravação do que ele disse – somente relatos na imprensa chinesa, alguns deles vagos em questões-chave e todos requerem alguma análise.
Para começar, a maneira como foi anunciado continha alguma ambiguidade, e talvez espaço de manobra suficiente para renegar a promessa novamente se necessário. Por exemplo, o Diário Metropolitano do Sul, um jornal relativamente liberal sediado na cidade sulina de Guangzhou, escreveu que recebeu a notícia “de um canal de autoridade”, não deixando claro se um jornalista esteve presente quando Huang fez as declarações.
Além disso, Huang nunca foi realmente citado em qualquer relato da mídia dizendo que os órgãos de prisioneiros no corredor da morte não seriam utilizados após 1º de janeiro de 2015. O Diário Metropolitano do Sul cita-o dizendo: “Não se pode negar que atualmente na China, além das ideias tradicionais sem entusiasmo pela doação de órgãos, as pessoas estão preocupadas com a equidade, imparcialidade e transparência nas doações de órgãos.”
Ele acrescentou que essas preocupações têm sido uma parte significativa dos obstáculos para a China estabelecer um sistema legítimo de doação voluntária de membros do público, ao contrário da dependência de prisioneiros no corredor da morte (ou principalmente prisioneiros de consciência, como tem sido argumentado e documentado extensivamente por vários pesquisadores).
A parte sobre “cessar completamente o uso de órgãos de prisioneiros no corredor da morte como fonte de doação para transplante” foi parafraseada e atribuída ao “canal de autoridade”.
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Em todos os outros relatos chineses sobre o tema, a referência a prisioneiros no corredor da morte foi igualmente parafraseada – desta forma, o que precisamente Huang Jiefu disse não está claro.
Um artigo no Yunnan Online continha uma seção de contextualização, que analisava a questão do comércio de órgãos de uma forma que contraria a alegação de que a China pretende eliminar a dependência de órgãos de prisioneiros.
Numa seção chamada “Revendo o passado”, a publicação revisitou os comentários de Huang do início deste ano, que observavam que os prisioneiros no corredor da morte também são cidadãos chineses e que se quiserem doar seus órgãos após a morte, eles devem ser autorizados a fazê-lo.
O ponto-chave, segundo ele, é que essas operações não devem ser feitas em privado, mas processadas por meio do sistema de aquisição e distribuição de órgãos formalmente estabelecido, o qual Huang tem trabalhado para estabelecer. Este sistema supostamente alocaria órgãos segundo a demanda e o tempo de espera, em vez de quanto o receptor é capaz de pagar ou está disposto a subornar médicos e outros funcionários.
O jornal The Guardian fez uma concessão similar. Após uma manchete que dizia “China parará de usar prisioneiros executados como fonte de órgãos transplantados”, outra linha esclarecia que “prisioneiros no corredor da morte têm fornecido a esmagadora maioria dos órgãos transplantados por ano, devido à alta demanda e baixas taxas de doação. Mas, no futuro, seus órgãos serão utilizados apenas se eles se voluntariarem para doar e suas famílias aprovarem a decisão.”
Admissão implícita
Esta qualificação muda toda a história.
Já não se torna um anúncio de que a China pretende parar de usar órgãos de prisioneiros, mas um esclarecimento que, como o pesquisador Ethan Gutmann esclareceu numa entrevista no início deste ano, “eles estão basicamente dizendo que precisam colocar as coisas em ordem”.
O livro de Gutmann, The Slaughter, publicado em agosto, lida com o que ele chama de assassinato em massa de praticantes do Falun Gong e outros prisioneiros de consciência por seus órgãos. Gutmann estima que mais de 60 mil foram mortos desde 2000 devido a esta política do regime comunista chinês. As autoridades chinesas nunca responderam adequadamente a estas preocupações.
Se Huang Jiefu está simplesmente dizendo que agora as autoridades chinesas garantirão que órgãos de prisioneiros no corredor da morte serão obtidos apenas com a devida permissão, então este recente surto de notícias equivaleria a nada mais do que uma reiteração dos comentários que ele fez em março.
Além disso, seria uma admissão notável e implícita de graves violações dos direitos humanos e uma violação dos convênios médicos internacionais, porque se a China só agora está anunciando que utilizará órgãos de prisioneiros com permissão, Huang parece ter indicado que antes disso os órgãos foram retirados de prisioneiros executados sem a sua permissão.
“O consentimento é exigido pelas regras de transplante desde 1984 e pela lei de transplante desde 2007”, disse Arne Schwarz, um pesquisador suíço das práticas de transplante na China, que ganhou um prêmio por seu trabalho.
“Agora, Huang admitiu o que todos sabiam: que as normas e a legislação foram ignoradas no passado. Por que devemos acreditar que não serão ignoradas no futuro?”
Schwarz continuou: “Mas mesmo que o consentimento por escrito possa ser apresentado, isso não tem sentido porque as sociedades médicas internacionais como a Sociedade de Transplantes e da Associação Médica Mundial, e até mesmo a Associação Médica Chinesa, concordam que prisioneiros e pessoas sob custódia não estão em posição para dar seu consentimento livremente.”
Há o perigo adicional, disse Schwarz, que processar os órgãos de prisioneiros executados por meio do mesmo sistema de doação e alocação de órgãos que é usado pelos órgãos doados por cidadãos livres simplesmente ocultará e legitimará a extração ilegal de órgãos. E isso apenas dificultará ao invés de permitir transparência e rastreabilidade, como exige a Organização Mundial de Saúde.
Schwarz acrescentou: “Tudo isso mostra que este anúncio não é uma reforma, mas propaganda.”