O problema crônico da dívida da China explicado

15/08/2013 18:29 Atualizado: 15/08/2013 18:31
Uma séria de pergunta e resposta com Fraser Howie
Uma exibição no Museu da Ciência de Pequim identifica notas verdadeiras e falsas da moeda Yuan da China (China Photos/Getty Images)
Uma exibição no Museu da Ciência de Pequim identifica notas verdadeiras e falsas da moeda Yuan da China (China Photos/Getty Images)

O sistema bancário colateral, produtos de gestão de riqueza, especulação imobiliária, dívida do governo local – todos estes são alguns dos principais canais pelos quais a dívida está sendo acumulada na China na busca do crescimento econômico. O problema ganhou destaque após os gastos monumentais do governo chinês de estímulo ao crédito em 2009 em resposta à crise financeira global e tem continuado desde então, com alguma modulação.

Partindo do colapso em julho de um produto de gestão de riqueza (PGR) vendido pelo Banco Industrial e Comercial da China, o maior banco do mundo em capitalização de mercado, o Epoch Times conversou com Fraser Howie, coautor com Carl Walter de “Capitalismo Vermelho: A frágil fundação financeira da extraordinária ascensão da China”, sobre o problema da dívida da China e como a situação é susceptível de evoluir.

A transcrição foi editada para privilegiar a clareza e o comprimento.

Epoch Times: O que você acha da recente inadimplência de um pequeno PGR do Banco Industrial e Comercial da China?
Fraser Howie: Em si mesmo isto não é grande o suficiente, nem público o suficiente para afundar o navio. Este não é o catalisador, não é o colapso do Lehman Brothers que provocou a crise, mas é outro exemplo de um PGR que teve péssimo resultado.

Dentro de um quadro regular de empréstimo bancário, os empréstimos são geralmente de longo prazo e menos transparentes. Se a empresa não pode pagar, eles vão ao banco e dizem: “Olha, vamos prorrogar isso ou estender o prazo” e as únicas pessoas que sabem são o banco e a empresa. E os bancos são criativos em sua capacidade de definir maus empréstimos.

Quanto aos PGR, indivíduos investem nestas coisas, eles são oferecidos ao público, vendidos em agências bancárias e são normalmente de prazo muito mais curto. Por isso, é muito mais público quando eles vão a falência.

O que estamos vendo é um número crescente destas coisas se tornado inadimplentes, ou pagando somente os juros, ou tendo de apelar ao fiador. Basicamente, estamos vendo em tempo real dívidas ruins falharem. E veremos mais delas.

Em última análise, o problema maior por trás disso tudo é que o dinheiro está sendo emprestado a empresas que não podem pagá-lo. Esse negócio pode estar conectado com a infraestrutura e os governos locais ou algum tipo de investimento imobiliário. Você tem um ativo subjacente ao produto que não pode ser pago no prazo envolvido.

Mesmo que sua infraestrutura não seja desperdiçada – como construir casas no meio do deserto e, em última análise, as pessoas ainda as utilizarem – o problema é que o investimento não retornará no calendário do PGR. Então, ele se torna inadimplente.

Neste momento, o número de omissões é pequeno o suficiente para que possa ser gerenciado localmente, assim, alguém intervém. Poderia ser o banco ou um fiador.

Epoch Times: Quem são esses fiadores?
Sr. Howie: Sociedades fiduciárias, que são empresas com uma base de capital relativamente pequena que emitirão uma garantia por uma pequena taxa; um grupo de investimento ou qualquer pessoa que esteja preparada para fornecer garantia. Muitas vezes as pessoas fornecem garantia porque assumem que o pior nunca ocorrerá. Mesmo se o fiador entrar em cena para pagar o empréstimo ruim ou para pagar o PGR, isso é uma boa notícia para o investidor, que recebe seu dinheiro de volta ou pelo menos tem o princípio de volta. Mas ainda assim, tudo o que foi feito foi deslocar o risco para outro lugar do sistema.

Se o jogo subjacente era ter produtos de qualidade, gerando fluxo de caixa, gerando retorno produtivo, e isso não está ocorrendo, então, isso é um problema.

Epoch Times: Há questões sistêmicas que impedem o investimento produtivo?
Sr. Howie: Acho que no momento ainda estamos muito no início do ciclo. O que sabemos é que, por alguns anos, o crédito tem sido abundante e crescente e foram criadas formas cada vez mais criativas de injetar crédito na economia. Então, até agora, o crédito não é realmente o problema. Há sempre algum louco maior. Tem sido possível emprestar mais para pagar as dívidas. A maré não recuou.

O que acho que veremos é o seguinte e é aí que vem o risco real: se as autoridades são realmente sérias sobre apertar o crédito e se o pico recente da taxa de juros interbancário foi o primeiro sinal, então, eu acho que veremos mais e mais desses padrões. Porque o crédito não será mais abundante, empresas ou produtos terão problemas e sua capacidade de pagamento se tornará mais e mais comprimida.

Há o problema que tanto crescimento foi impulsionado pelo aumento do crédito que, se as torneiras forem desligadas, então, o crescimento desacelerará. É um golpe duplo com empréstimos inadimplentes cada vez mais numerosos e crescimento em queda, que se alimentam mutuamente. Portanto, sou um pouco cético sobre o quão agressivas as autoridades serão na retirada do crédito, pois as consequências podem ser muito graves. Acho que eles certamente tentarão retardar o crédito, mas o quão efetivamente eles poderão retardá-lo será muito mais difícil, porque não há nenhum outro motor de crescimento evidente ou disponível. Mesmo que se fale de reforma na China, não está claro para mim que isso vá realavancar a economia. Acho que o crescimento provavelmente continuará a cair a partir dos níveis atuais.

Epoch Times: O que os bancos podem fazer quando o ativo investido não está rendendo?
Sr. Howie: Ou estender o empréstimo ou retirá-lo e assumir uma perda com os lucros acumulados. Lembre-se, os bancos têm tido lucros substanciais, pelo menos no papel, por muitos anos. A questão é quanta perda os bancos terão.

Se a perda for grande o suficiente, é claro, em seguida, eles se voltarão para o governo para um resgate. Mas tudo o que é feito é socializar as perdas. O governo não tem dinheiro, as pessoas têm dinheiro. E assim, o governo finalmente, se ele tiver de salvar os bancos, no fim do dia redirecionará os gastos do governo de bem-estar social e de várias outras áreas para basicamente resgatar os bancos. Não há muita opção aqui. Se você empresta dinheiro, então há um custo em algum lugar do sistema e o custo virá porque a própria empresa ou o banco sofrerá a perda, investidores de PGR sofrerão a perda ou isso acabará sendo socializado pelo governo para resgatá-los.

O Sr. Fraser Howie
O Sr. Fraser Howie

Epoch Times: Então, onde é que os limites da dívida entram nisso?
Sr. Howie: Há apenas poupanças para contrabalancear os empréstimos e a disponibilidade de dinheiro é limitada. Se não fosse assim, teríamos hiperinflação. A disponibilidade pode crescer, mas tem de crescer em conformidade com a economia mais ampla. Se os empréstimos são feitos a empresas que não podem pagá-los, então, como é que novos negócios receberão empréstimos? A resposta é que eles não recebem. Novos negócios ou projetos não podem começar porque os empréstimos continuam indo para as mesmas empresas-zumbis. Isso pode durar um longo tempo (como no Japão) e porque as taxas são baixas, você pode pagar a dívida em longo prazo e achar que tudo está OK. Mas o que ocorre quando as taxas sobem? Ou se todos os empréstimos forem assim? Como os bancos ganhariam dinheiro? Eles não poderiam pagar juros sobre os depósitos e os poupadores retirariam seu dinheiro. Mas os bancos não teriam dinheiro restante, pois todo ele foi para empresas que não podem pagar os empréstimos. Não há qualquer relação ou número que possa dizer facilmente quando o ponto de inflexão surge, mas ele está lá. O desempenho econômico do Japão ao longo dos anos é um testemunho disso. O Japão é também evidência de que esses problemas podem ser prorrogados por um longo tempo.

Outro ponto: A China é a economia milagre, não é? A resposta é não, não é. Uma enorme parte do crescimento recente foi construída sobre dívida. Não há fórmula secreta: eles emprestaram excessivamente para obter valores de PIB em curto prazo.

Epoch Times: Por que os bancos têm de ser os únicos a emprestar dinheiro? Como é que essas sociedades fiduciárias ou de gestão de riqueza não estão interagindo com os investidores diretamente?
Sr. Howie: Como Willie Sutton disse: “Porque é onde o dinheiro está.” Os bancos, em primeiro lugar, têm grandes redes. Vá a qualquer cidade chinesa e você verá um monte de bancos. Eles têm o maior acesso aos fundos, eles têm os clientes chegando e são alguém com que você quer se associar.

Os bancos também têm procurado maneiras de expandir seus negócios e atrair as pessoas. Eles têm se articulado para vender fundos mútuos e PGR. O banco oferece um lugar para se realizar negócios e para receber uma taxa em troca.

Epoch Times: Os bancos cobram uma taxa mais elevada do que os empréstimos típicos por causa dos regulamentos sobre empréstimos e taxas de depósito?
Sr. Howie: Sim e não. O problema aqui é que há tantas permutações do que está ocorrendo. Há coisas chamadas empréstimos confiados e empréstimos de confiança. Empréstimos confiados são aqueles em que os clientes vão até o banco. Há também empresas estatais que em alguns casos retêm os lucros ou que emprestam do banco a 6% e, em seguida, voltam-se para o banco e dizem: “Posso coordenar um empréstimo por meio de vocês para outra empresa, como um desenvolvedor imobiliário que precisa do dinheiro?” E assim o banco fica no meio deste empréstimo de confiança.

O banco também pode se envolver no próprio produto e vender a uma taxa mais elevada. De fato, parece haver um número quase ilimitado de variações desse processo.

Epoch Times: Por que isso é problemático?
Sr. Howie: Não está totalmente claro para mim que o empréstimo seja mais perigoso do que o crédito regular, mas é perigoso no sentido de que não é regulamentado. Se as coisas dão errado, o direito do credor de apoderar-se dos bens pode ser muito mais fraco do que num empréstimo tradicional; ou seja, é menos transparente e não está claro quem são todos os participantes ou quais são exatamente as conexões envolvidas.

Acho que uma das coisas que surpreendeu muitas pessoas durante a crise financeira nos Estados Unidos foi a interconectividade entre o Lehman Brothers e todos os outros bancos. É o tipo de problema do elo mais fraco da cadeia: você tem algo falhando que tem implicações graves em todo o sistema. Essa é a preocupação real com o sistema bancário colateral na China. Da mesma forma que, se você quer perder peso, você pode ir para a academia, comer menos ou cortar uma perna: tudo isso reduz o seu peso, mas é evidente que nem todos têm o mesmo resultado.

Epoch Times: Quem estará no anzol quando ou se as coisas realmente ruírem?
Sr. Howie: Eu esperaria que os bancos estivessem no anzol até certo ponto, pois os bancos têm sido as grandes vacas leiteiras, eles são, em última análise, a maior fonte de fundos e depósitos no país. Em algum momento, alguém tem que assumir a dor.

Se inadimplências atingirem os bancos menores, não me surpreenderia se os bancos maiores fossem convidados a resgatá-los. Não estamos nessa fase ainda, mas não podemos considerar os bancos como órgãos sociais independentes: os bancos estão absolutamente atrelados ao Partido Comunista Chinês (PCC) em relação ao que farão. Sua gestão é escolhida pelo Departamento de Organização do PCC. É simples assim.

Não vejo como haveria uma crise financeira na China sem que os bancos fossem afetados direta ou indiretamente, porque é aí que está o dinheiro. Eles têm grandes redes de agências, eles são o veículo que pode ser usado para absorver essas perdas. Não acho que o governo queira que eles paguem um cheque diretamente, eles não querem emitir novos títulos do Tesouro ou fazer qualquer coisa diretamente. Eles seriam mais felizes vendo os bancos tentarem e absorverem esses problemas.

Epoch Times: E quanto à recapitalização da década de 1990, quando dívidas incobráveis foram deslocadas para sociedades gestoras de ativos (SGA)? Como aquilo funcionou e podemos ver isso se repetir?
Sr. Howie: Na verdade, não funcionou bem. As SGA assumiram cerca de 370 bilhões de dólares em dívidas bancárias treze anos atrás, elas nunca foram capazes de reembolsar os termos dos empréstimos que financiaram a compra e, por fim, as obrigações de reembolso da dívida foram assumidas pelo Ministério das Finanças. As SGA mantiveram uma série de empresas reais que efetivamente eram dívidas de permuta financeira (equity swaps). Por exemplo, a corretora local devia dinheiro ao banco, o empréstimo foi desastroso e foi comprado pela SGA; a corretora local nunca poderia pagar essa dívida e, por isso, a SGA concordou em assumir participação acionária em vez de direitos de credor. O resultado é que a SGA se tornou acionista de uma ampla gama de empresas. As contas das SGA ignoram os títulos originais de financiamento e as obrigações de dívida, que foram todos empurrados para o Ministério das Finanças, então, as SGA são a resultante de ativos financeiros desses vastos portfólios de empréstimos ruins. Claro que, em alguns casos, isso funcionou bem quando algum produto disparou em valor, mas as grandes SGA, avaliadas em cerca de 10-20 bilhões de dólares, estão muito longe dos 370 bilhões dólares de empréstimos que elas de fato assumiram.

Faça a si mesmo essa simples pergunta: se eu ignorar minha hipoteca, eu estou mais rico? Claro que não. Você não pode ignorar o lado da dívida da equação e apenas contar os ativos e simplesmente dizer que tem alguns milhões extras no banco. O que a China tem feito, porém, não é apenas ignorar a dívida, mas movê-la de entidade para entidade. Então, ela deixa de existir para o banco ou a SGA, mas isso apenas a deslocou para o Ministério das Finanças, ou seja, o balanço do Estado. O Estado paga a dívida emitindo títulos lastreados em receitas fiscais e os impostos vêm do homem na rua. O banco na verdade apenas socializou suas péssimas decisões de empréstimo.

Epoch Times: Como você vê todo esse desenvolvimento?
Sr. Howie: Esta bolha de crédito na China é um problema crônico em vez de agudo. Isso persistirá por alguns anos.

Há um custo e isso se manifestará, no melhor cenário, por meio de um crescimento substancialmente menor. No pior dos casos, isso levará a cenários mais graves motivados pela dívida. Nesse caso, a China tem tantas fraquezas e tantos pontos de fratura que só Deus sabe como isso pode acabar se realmente começar uma crise financeira sistêmica. É simplesmente muito difícil tentar mapear. Você pode ver fuga de capital e todo o tipo de preocupação sobre como isso se desenrolará. Novamente, é uma incógnita.

O governo apregoa a estabilidade social. Eles têm razão para se preocupar, porque criaram enorme confusão com tantos problemas sociais. Haveria preocupações reais sobre como as coisas desmoronariam.