Nem tudo é um mercado

08/04/2014 12:40 Atualizado: 08/04/2014 12:40

Com frequência, damos a impressão que os liberais (especialmente aqueles instruídos em economia) pensam que todo e qualquer fenômeno social pode ser entendido sob os mesmos termos usados para analisar os mercados. Falamos, por exemplo, sobre as nossas famílias, ambientes de trabalho e até nossas relações interpessoais em termos de incentivos, conhecimento, lucros, autointeresse versus altruísmo, assim por diante. E não há dúvida de que a “maneira econômica de pensar” pode ser valiosa para a compreensão de todos os tipos de comportamento humano, incluindo os listados acima. Como alguém que já escreveu sobre economia familiar, dificilmente posso negar esse ponto básico.

No entanto, tratar tudo como se fosse um mercado pode nos levar a cometer sérios erros também. O problema é que, assim, ignoramos uma distinção muito importante que encontramos em F.A. Hayek (e implicitamente em Mises) entre o que ele chamou de “organizações” e “ordens”. Muitas das instituições sociais nas quais agimos diariamente não são ordens não planejadas como o mercado. Ao invés disso, exibem um alto grau de intencionalidade e planejamento humano, e são frequentemente simples o suficiente para serem pensadas holisticamente, o que não podemos fazer com o mercado.

A distinção de Hayek entre ordens e organizações está em uma série de outras distinções, das quais a mais importante é se a entidade em questão tem um objetivo único, unificado, ou se é um processo através do qual muitos indivíduos buscam os seus próprios objetivos. Uma empresa, por exemplo, tende a ter apenas um objetivo: lucro. Um time de determinado esporte tem apenas um objetivo: vencer. Os mercados, como ordens espontâneas, não possuem objetivos individuais próprios; eles são processos estruturados por regras através das quais indivíduos e grupos podem buscar alcançar os seus próprios objetivos. Empresas podem tentar maximizar lucros, mas os mercados não “tentam fazer” nada.

Cara a cara

Muitas organizações são razoavelmente simples, e as interações entre as pessoas se dão cara a cara. Com um objetivo unificado, essa simplicidade torna fácil a decisão quanto à maneira como os recursos devem ser alocados para que o objetivo seja alcançado sem qualquer equivalente do mercado — ou até mesmo autointeresse. Na família, por exemplo, os pais conhecem seus filhos o suficiente para decidirem como os recursos devem ser divididos. Normalmente não fazemos com que as criançam façam as suas ofertas, nem é necessário um sistema interno de preços. A intimidade de organizações não apenas nos permitem agir altruisticamente, mas tais organizações, na verdade, parecem funcionar melhor quando o altruismo desempenha um papel significativo..

Diferente da visão de mundo de Ayn Rand, na qual toda interação humana é formulada baseada no comerciante autointeressado, uma perspectiva mais hayekiana pode reconhecer que o contexto é importante e autointeresse nem sempre é apropriado.

Pelo fato de as ordens sociais dependerem apenas de acordos a respeito de regras e não de objetivos, elas também são capazes de suportar um conjunto de participantes e preferências muito maior e mais complexo do que as organizações. Portanto, nunca podemos conhecer pessoalmente, como argumenta Adam Smith, mais do que uma pequena porção das pessoas de quem dependemos em uma sociedade comercial.

Esse anonimato significa que não podemos aprender diretamente o que beneficiará os outros. Deste modo, dependemos do autointeresse coordenado pelas regras das ordens para que resultados socialmente benéficos sejam gerados. Hayek disse que se pudéssemos saber diretamente o que os outros querem e se o sistema fosse simples o suficiente, o altruísmo funcionaria tão bem quanto – se não melhor que – o autointeresse.

Relacionamentos delicados

Essa diferença entre organizações e ordens é importante por duas razões. A primeira razão é que os hayekianos deveriam manter o ceticismo quanto à tentativa de organizar organizações íntimas como se fossem mercados. Como Hayek argumentou, isso pode “destruir” os delicados relacionamentos dos quais as organizações íntimas dependem. Tais organizações funcionam melhor quando invocam a cooperação e a colaboração – ou, algumas vezes, hierarquia – a serviço de um objetivo acordado. Elas não se saem tão bem quando o autointeresse individual é completamente liberado, a não ser que elas sejam tão grandes que se pareçam mais com uma ordem do que com uma organização.

A segunda razão é que a atenção à diferença pode fazer com que os liberais parem de tentar invocar o autointeresse tanto como “eficiente” quanto “moral” em todas as situações. O liberalismo não requer ação por puro autointeresse em uma família ou em uma empresa, e não há nada iliberal em se comportar altruisticamente e em se preocupar com o todo de uma organização. O comportamento autointeressado em ordens íntimas é rude e frequentemente imaturo, e tentar racionalizá-lo através de uma filosofia política faz com que o indivíduo pareça narcisista e bitolado. A compreensão da distinção hayekiana entre ordens e organizações pode ajudar os liberais a evitarem tanto as más teorias sociais quanto o mau comportamento social.

Steven G. Horwitz é economista da St. Lawrence University.

Publicado originalmente em The Freeman Online