Nem estatismo nem liberalismo

06/08/2014 07:00 Atualizado: 05/08/2014 21:44

O velho debate retornou agora, a propósito do Decreto 8.243/2014 do PT, que determina a implantação da Política Nacional de Participação Social (PNPS) e do Sistema Nacional de Participação Social (SNPS) e cria “conselhos populares” com integrantes de movimentos sociais para opinar sobre os rumos de órgãos e entidades do governo federal. Os reacionários (quer dizer, os que reagem às mudanças que estão acontecendo na sociedade-em-rede), em geral militantes do estatismo de esquerda, querem dizer que quem critica o decreto por avaliar que ele tenta institucionalizar o participacionismo assembleísta, o conselhismo, o liderancismo e, no fundo, o próprio estatismo (por meio dos quais os estatistas pretendem controlar e conduzir as massas segundo suas crenças), é liberal, de direita ou capitalista. Nada mais falso. Que os chamados liberais façam isso, por suas próprias razões, não significa que, para fazê-lo, devamos adotar seus pontos de vista. Eu, por exemplo, não adoto.

A velha disputa entre estadocentrismo e mercadocentrismo é um atraso na vida social. É uma variação da velha contraposição esquerda x direita.

Então, recuperando aqui dois posts de março de 2014, vou dizer por que não sou liberal e por que não sou estatista (como aqueles militantes de esquerda, que se autoproclamam, equivocadamente, de socialistas).

I – Por que não sou liberal

Em uma frase: porque eu acho que a sociedade existe, é um modo de agenciamento que subsiste por si mesmo (não é um epifenômeno) e porque esse modo de agenciamento (societário) é diferente do modo de agenciamento chamado mercado.

Ao contrário do que acreditaram von Mises e outros defensores do liberalismo econômico e do individualismo metodológico, dos objetivistas, como Ayn Rand e, ainda, dos incorretamente chamados de libertarianistas, os capitalistas realmente existentes não são bem seres de mercado, eles não gostam de mercado e sim de Estado (a seu favor).

Nas mãos de grandes empresas capitalistas predadoras – sem qualquer regulação – as pessoas só podem sucumbir. Então alguma regulação há de haver, porque em sociedades infestadas por estruturas hierárquicas, o mercado não pode – simplesmente não pode – se autorregular. Há uma confusão fatal aqui. O capitalismo dos livros é supostamente um regime de mercado. Mas o capitalismo realmente existente nasceu de um conúbio incestuoso entre empresa-monárquica e Estado-hobbesiano.

Sim, eu gosto de livre-mercado, assim como também gostam de mercado os empreendedores emergentes. Quem não gosta são os grandes capitalistas: eles odeiam competição, concorrência. Vivem atrás de concessional loans, políticas governamentais discricionárias (como essa balela chamada de política industrial) que os protejam do… mercado e de dinheiro barato (fornecido por entrepostos políticos disfarçados de bancos, como o BNDES). Grande parte das fortunas dos capitalistas, sobretudo no Brasil, só puderam se erigir a partir de concessões do Estado via apadrinhamento de governos. Querem os nomes?

Agora, essa regulação de atividades econômicas, que reclamo necessária em alguns casos, não pode ser governamental. A rigor não poderia nem mesmo ser estatal. Teria que ser social, mas – atenção aqui! – social mesmo, não mercantil. Sociedade e mercado são modos diferentes de agenciamento e – ao contrário do que imaginou o liberalismo econômico (e filosófico) – a sociedade existe, não é um epifenômeno, não é igual ao coletivo dos indivíduos (e sim ao que está entre eles, quer dizer, as configurações das redes que conformam quando interagem).

Então, ao contrário dos que apostam na abstração chamada indivíduo, a saída está adiante, não atrás. O problema é que os objetivistas e assemelhados imaginam que o contrário de indivíduo é o coletivo. Então o individualismo seria uma espécie de vacina contra o coletivismo, a coletivização massificante, uniformizante, como aquela que se manifestou nas experiências do socialismo real (que nada mais era do que um estatismo). Mas é um erro. O contrário do indivíduo é a pessoa, sempre um entroncamento de fluxos, mas sempre unique – de uma forma que o indivíduo, número em uma estatística, jamais poderia ser. Mesmo porque não existem indivíduos humanos, a não ser como indivíduos da espécie biológica Homo, mas, neste caso, tais unidades portadoras do genoma humano são apenas humanizáveis, não humanas. O humano não é o ser biológico mas o ser biológico que foi humanizado virando um ser biológico-cultural pelas relações com outros humanos.

Os individualistas não acreditam na sociedade, quer dizer, na rede social. Tendem a achar que a civilização teve o condão de domar a besta-fera humana. Tendem a achar que o homem é inerentemente (ou por natureza) competitivo (e que há, pelo menos parcialmente, um Homo Hostilis primordial embutido em cada um de nós, talvez na programação do cérebro límbico). Tendem a achar que as pessoas se movem tentando maximizar a realização de seus interesses (e que tais interesses são, ao fim e ao cabo, egotistas). Enfim… como não acreditam na sociedade e sim apenas na coleção dos indivíduos, postam-se lá em algum lugar do passado para resistir à intervenção estatal sobre o indivíduo rejeitando as regulações que imaginam serem reforços do poder do Estado sobre o indivíduo. Digo que eles ficaram lá em algum lugar do passado porquanto esse era o debate do século 17, quando os modernos reinventaram a democracia e era necessário proteger o cidadão do seu próprio Estado por meio de leis… estatais! Eles não viram que o problema era o Estado.

Acho que não se pode classificar tais adeptos do individualismo como libertarianistas (ou libertários em qualquer sentido) ou anarco-capitalistas (como às vezes se diz). É uma designação errada. Eles não são libertários nem como foram os anarquistas primordiais. Eles não são libertários porque não podem ser mesmo. Acabam assumindo a necessidade do Estado como um mal menor (daí essa besteira de “Estado mínimo”) porque não podem ver saída para a sua ausência: quem emitirá a moeda, quem protegerá as fronteiras, quem nos livrará dos bandidos (e bandidos haverá porque – segundo eles – um Homo Hostilis acabará, mais cedo ou mais tarde, na falta de um poder que o dome, revelando sua natureza)? Eles não dizem. E não dizem porque, no seu esquema interpretativo, não conta para nada a sociedade.

Aparece clara para mim a raiz do equívoco: indivíduos não podem ser os átomos sociais. Átomos não cabem aqui: só moléculas. A liberdade só pode ser alcançada quando pessoas formam redes, interagindo entre si para contender com um problema ou realizar um projeto nascido dos seus desejos. Aliás, sem isso nem se pode falar de esfera pública (um conceito que, a rigor, também inexiste para essa turma).

II – Por que não sou “socialista” (estatista de esquerda)

Minha principal diferença com os “socialistas” é que eles não são socialistas e sim estatistas. Porque eles têm uma visão estadocêntrica do mundo, não sociocêntrica.

Eu me considero socialista, stricto sensu, mas não estatista. Isso significa que imagino que a racionalidade da sociedade é fundante – e não derivada – das racionalidades do Estado e do mercado. Na verdade, minhas diferenças são maiores com os socialistas marxistas, como Marx, Engels, Lenin, Gramsci e seus seguidores. O problema para mim é o marxismo e não o ideal de uma sociedade onde reine a liberdade e a abundância. Quero dizer que sou, na verdade, um comunista, se interpretarmos o termo como uma designação genérica para todos os sistemas possíveis de convivência (no plural) onde a construção do commons seja a característica dos processos de autorregulação social.

É claro que isso é apenas uma provocação para dizer que o sentido em que tais palavras (socialismo e comunismo) são empregadas pela esquerda marxista nada tem a ver com suas origens literais. Consideradas, porém, as aderências históricas que esses termos adquiriram, hoje não posso me declarar socialista ou comunista sem induzir a erro os interlocutores.

No conjunto de correntes de pensamento e ação inspiradas no marxismo – não necessariamente em todas as contribuições marxianas, mas naquelas que possibilitaram a construção de ideologias baseadas na luta de classes como motor da história, que acreditam que exista uma história (antes das histórias – sempre no plural – serem feitas pelas pessoas concretas), que afirmam que essa história tem leis que podem ser conhecidas de antemão por quem detém um determinado esquema interpretativo, um método materialista-dialético ou qualquer bobagem semelhante – não há espaço para uma esfera pública social, nem para a autorregulação (social).

Sendo assim, o processo tem que ser conduzido, regulado, pelo Estado. Já que não se aceita (por julgada impossível) qualquer autorregulação, qualquer processo de transição que emerja da dinâmica social, ele deve ser conduzido por aqueles que têm a ideologia correta ou a teoria verdadeira ou a opinião certa (a orto-doxa). E se a opinião desses militantes já é “cientificamente” a correta e a única verdadeira, para que política, para que o diálogo, para que a polinização mútua de opiniões no espaço público segundo critérios de isegoria, isologia e isonomia (o fundamento da democracia), não é mesmo? Eles não podem aderir à democracia a não ser como tática, para ter espaço para lutar contra seus inimigos que estão no governo ou para, quando conquistaram por qualquer meio o governo, autocratizar as instituições da democracia com base no falso postulado de que a democracia é regime da maioria (e não o regime das múltiplas minorias).

Como os socialistas marxistas não aceitam o mercado (inclusive porque o mercado não pode ser conduzido top down, no máximo pode ser manietado ou controlado por forte intervenção estatal) e como eles não acreditam que exista alguma coisa como uma sociedade como modo de agenciamento capaz de subsistir por si mesmo (e nesse particular estão de acordo com os adeptos do liberalismo econômico), então os indivíduos organizados (em organizações hierárquicas) devem ser conduzidos pelo Estado (ocupado e aparelhado, por sua vez, também pelas organizações hierárquicas que compõem a vanguarda da classe que, por alguma imanência do processo histórico, tem o condão de ser redentora do conjunto dos grupos – ou classes – sociais).

O Estado passa a ser o grande agente da implantação do socialismo. Cabe ao Estado – quando nas mãos certas, quer dizer, nas mãos da esquerda socialista – educar as pessoas para produzir um homem novo. O Estado assim configurado, entretanto, só pode admitir como regime de administração política a ditadura, jamais a democracia. Assim, quando socialistas marxistas conquistam o poder pelas regras da democracia representativa, seu próximo passo é violar os princípios democráticos e usar a democracia (notadamente as eleições) contra a própria democracia, restringindo a liberdade, falsificando a rotatividade, diminuindo a transparência, manipulando a legalidade e degenerando a institucionalidade democráticas. Eles instrumentalizam as eleições não para aprofundar a democracia e sim para restringi-la: usam os votos que obtiveram como uma espécie de aval para não governar democraticamente.

Ora, essa ideologia (o marxismo) é uma perversão da política. Como a luta de classes é, para essa crença, uma guerra permanentemente presente (que durará até chegarmos no paraíso comunista da sociedade sem classes), então pode-se inverter a fórmula de Clausewitz (que foi exatamente o que fez Lenin: basta ler suas notas marginais ao “von Kriege”) afirmando que a política é uma continuação da guerra por outros meios. A nova sociedade (comunista) seria então parida pela guerra (não importa se pela guerra leninista de movimento ou se pela guerra gramscista de posição; e não importa se pela guerra quente, pela guerra fria ou pela política praticada como arte da guerra): sempre a guerra contra os inimigos de classe, contra o capitalismo, contra o liberalismo. O padrão mítico, recorrente, é o do combate universal ou da luta arquetípica do bem (os explorados) contra o mal (os exploradores), traduzido como uma luta da esquerda contra a direita. A paz, para eles, não é um modo de caminhar, não é uma atitude pazeante na mediação de conflitos e sim alguma coisa que se celebra após a vitória (em uma guerra) ou um conceito que se usa taticamente para fazer propaganda, confundir o inimigo e pegá-lo despreparado para o assalto decisivo.

Esse pessoal não percebeu que o Estado já é uma estrutura guerreira, que os partidos e as outras organizações hierárquicas privadas que erigem para tomar (violentamente ou pelo voto) o Estado e usá-lo como instrumento da transição – pela força e para conquistar hegemonia na sociedade – também são estruturas guerreiras, com padrão de organização centralizado e regidas por dinâmicas autocráticas. Mas eles não estão nem aí, desde o início não estão nem aí para isso. É no pau mesmo, pois é guerra. A ditadura do proletariado (o proletariado seria a tal classe redentora) é um construct marxiano (não de algum intérprete que tenha desvirtuado seu pensamento). O problema de Marx é que ele não foi apenas marxiano e sim marxista.

É claro que tudo isso está furado e o que me espanta é que pessoas inteligentes possam acreditar em dogmas desse tipo, como aquele que diz que existe uma classe social cujos particularismos, uma vez realizados, se universalizariam; ou como aquele outro que diz que para extinguir o Estado devemos primeiro fortalecê-lo (sim, porque de todas as tentativas de socialismo que surgiram, resultaram Estados pós-revolucionários mais centralizados, mais verticalizados e mais autocratizados do que os Estados anteriores que foram derrubados pela chamada revolução).

E aqui vem mais um ponto importantíssimo de minhas diferenças com essa religião laica. Os socialistas acreditaram que revolução era trocar os ocupantes do Estado, deixando porém intactas suas estruturas hierárquicas e seus (maus) modos de regulação autocráticos. Alguns anarquistas primordiais logo viram que tal era um absurdo e por isso mesmo foram maltratados e perseguidos pelos marxistas. Sim, gosto desses anarquistas – sobretudo dos originais – justamente porque eles não são marxistas e não imaginam que se possa fazer qualquer transição usando como instrumento o Estado e as organizações cujo padrão de interação é decalcado do Estado (como os partidos). Já essas contorções de Chomsky – que se diz anarquista de um novo modo – as interpreto como pura vigarice intelectual.

Fundamentalmente, porém, minhas diferenças com os socialistas (marxistas) coincidem num ponto com as que tenho em relação aos adeptos do liberalismo econômico baseado no indivíduo: eles não acreditam na sociedade, usam a palavra sociedade para designar populações, coletivos de indivíduos e não o que está entre eles e, assim, não fazem a menor ideia do que seja a rede social.

Feliz ou infelizmente, porém, os socialistas marxistas são mais encontrados hoje nas universidades, nas corporações, em alguns aparelhos partidários (onde são, por sinal, sempre minoria em meio aos carreiristas) ou em poucas organizações políticas (ditas revolucionárias) extremamente minoritárias. Os atores políticos de peso que disputam de fato o poder em diversos países e que se dizem socialistas, o fazem apenas para manter a coesão de uma mão-de-obra barata (a militância), que pode ser usada como muque de campanhas eleitorais ou para prestar outros serviços subordinados legais e ilegais. Os chefes mesmo – não me refiro, é claro, a todos os militantes – viraram bandidos comuns, ladrões e malfeitores. E isso em todo lugar: chavistas, sandinistas, castristas, guerrilheiros narco-traficantes (como os das FARC), pessoal que se associa para delinquir, para assaltar os cofres públicos, para corromper ou ser corrompido ou para executar latrocínios e sequestros com fins privados (individuais ou grupais), manipuladores de toda espécie, mensaleiros… Não constato nada disso com alegria, e sim com profunda tristeza. Mas devo demarcar que esta é também uma das minhas diferenças com esse pessoal.

III – E então o que?

Ora, e então… nada! A questão é que não vai surgir outra grande narrativa para colocar no lugar do liberalismo e do estatismo. A contraposição liberalismo x estatismo tende a ficar obsoleta com o estilhaçamento do mundo único em sociedades altamente conectadas. Serão muitas narrativas emergentes.

Não se trata mais de urdir uma nova ideologia para as pessoas seguirem. Não vai haver um sociocentrismo – um novo socialismo, verdadeiro porque sociocêntrico – para se contrapor ao mercadocentrismo (liberal) ou ao estadocentrismo (contraliberal, falso socialismo porquanto estatista). O problema é justamente esse: as contraposições reducionistas da complexidade dos infinitos mundos que podemos construir em nossa convivência.

Nesse emaranhado caótico de concepções e práticas que viveremos daqui para frente, permanecerá cada vez mais relevante, todavia, a questão da democracia como movimento de desconstituição de autocracia (seja de esquerda ou de direita, posto que isso é apenas um construct perverso: como se sabe a esquerda inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita). Mas a temática da democracia, ah!… esta continuará presente, não mais como uma fórmula, a narrativa ideológica de um caminho, mas como abertura para que as pessoas possam construir seus próprios caminhos, livres dessas prisões do pensamento que apenas reduzem a inesgotável e maravilhosa criatividade humana (quer dizer, social).

Augusto de Franco é escritor, palestrante e consultor

O conteúdo desta matéria não representa necessariamente a posição do Epoch Times