“Saudade é a presença da ausência.” O lema é usado, ao raiar do sol, para despertar e motivar a tripulação do Navio de Assistência Hospitalar Carlos Chagas, composta por uma equipe de mais de 50 militares que ficarão 19 dias longe da família e de suas casas para atender a populações ribeirinhas da Amazônia.
A duração das missões é, no máximo, 45 dias. Em um ano, o navio chega a atender até 14 mil ribeirinhos – número que fica ainda maior quando ocorrem situações de emergência na região. O Carlos Chagas é um dos quatro navios hospitalares da Marinha responsáveis pela cobertura da Região Norte.
Atracado próximo à comunidade de Santa Maria, na subida do Rio Negro, o navio já era notícia nas comunidades vizinhas. “Antes de irmos às comunidades, fazemos contato com lideranças e rádios locais ou comunitárias, postos de saúde, líderes religiosos. São peças muito importantes para informar a todos sobre a nossa chegada”, explica o comandante do navio e capitão de Corveta, Caetano Quinaia, 36 anos.
Cerca de 200 ribeirinhos moram em Santa Maria. “Essa região tem algumas doenças consideradas endêmicas, como a hipertensão arterial, o diabetes melitus [que não é tratado com insulina], as verminoses, micoses, infecções urinárias. Quando identificamos algumas práticas, como a queima de lixo, temos certeza de que encontraremos também doenças pulmonares”, explica o tenente Eduardo Martins, dentista, farmacêutico e chefe da equipe médica do navio, composta por seis enfermeiros, dois médicos e quatro dentistas.
Assim que o navio atraca, uma equipe desembarca para identificar emergências e prestar o primeiro atendimento. Em um desses desembarques, os médicos encontraram a grávida Lucila Costa Cavalcanti, 20 anos. Dias antes, ela tinha enfrentado uma infecção urinária e, no momento da chegada da equipe, estava com 39 graus de febre e sentindo dores na cabeça e no corpo. “Só usei analgésicos, mas costumo tomar remédios caseiros indicados pela minha mãe”, disse Lucila.
No caso dela, o que mais preocupou os médicos foi a dificuldade de conseguir confirmar o tempo de gravidez. Uns diziam que era cinco, outros, sete meses. Segundo os médicos, esse é um problema comum em populações ribeirinhas e representa risco porque pode resultar em dose ou medicação inadequada. “Até o primeiro trimestre, há muitas restrições medicamentosas. Daí a importância de se ter sempre em mãos o cartão da gestante”, disse a médica Beatriz Fraga.
“Estava preocupada com o bebê, mas fiquei aliviada depois de ter escutado o coração dele batendo e com a notícia, dada pela médica, de que tudo estava bem”, disse Lucila.
Outro ribeirinho que precisou de atendimento emergencial foi o agricultor Edson Coelho Nascimento, 43 anos. Com a barriga bastante inchada e sentindo dores há dois dias, ele estava se tratando apenas à base de chá de Salva de Marajó e buscopan, sem nenhuma consulta médica.
Apesar de saberem que o uso de ervas e chás ajuda em muitos casos, esse hábito ribeirinho é motivo de preocupação para os médicos. “A dificuldade maior é cultural porque muitos preferem usar casca de laranja em vez de medicação. Isso pode colocar a vida do paciente em risco”, disse o chefe da equipe médica.
“Em outra missão nos deparamos com um senhor de 76 anos que estava com enfisema pulmonar e insuficiência cardíaca. Para piorar, ele era extremamente teimoso, não queria parar de fumar e insistia em usar medicações caseiras. Estava tendo um ataque de bronquite asmática que evoluiu para insuficiência respiratória. Nós o levamos a bordo e vimos que a situação não estava boa. Ele não ficava estável e começou a apresentar problemas de pressão. Se não o tivéssemos levado ao hospital, certamente teria morrido”, relatou.
Outro problema que dificulta o atendimento médico é o medo que muitos ribeirinhos têm de dentistas – principalmente as crianças, após ouvirem os primeiros gritos dos amigos durante os atendimentos. A reportagem da Agência Brasil encontrou um grupo de oito crianças se escondendo dos pais. Assustados com os gritos, eles decidiram se afastar até que a equipe médica retornasse ao navio.
A cirurgiã dentista Cristina Jardelino, 28 anos, lamenta o fato de ter de fazer “tantas extrações” em dentes que já não apresentavam condições para restauração. “Vi poucas crianças com boa saúde bucal por aqui. Foi um absurdo. Tive de arrancar muitos dentes de crianças novinhas mas já com abscessos. Em um adolescente, de 17 anos, foram retirados sete dentes. Essa, infelizmente, é a realidade da odontologia em nosso país. Não há educação voltada para a prevenção, e o conceito de higiene é muito precário”, lamentou a tenente.
“Vimos muitas pessoas com doenças de pele causadas, principalmente, por fungos e bactérias. Isso mostra que eles não têm muitos cuidados com a limpeza. Identificamos também duas pessoas que, apesar de dizerem não ter problemas de pressão, estavam com ela a 16 por 10, o que é considerado caso de urgência. Teve ainda um senhor que estava com a barriga estufada e ficava dizendo que não precisávamos nos preocupar porque o que ele tinha na barriga era ‘apenas vento’. Na verdade, ele tinha vários problemas no rim. Possivelmente ascite [mais conhecida como barriga d’água, uma acumulação de líquidos na barriga devido à deficiência de absorção]”, disse Beatriz Fraga depois de fazer 40 atendimentos.
Também foram identificados muitos casos de dor muscular causada por esforço repetitivo em agricultores com idade mais avançada. Ao fim do dia, foram contabilizadas 117 atendimentos, sendo 59 médicos e 211 odontológicos. Ao longo de toda a missão, a estimativa é fazer 600 atendimentos médicos e até 2 mil procedimentos odontológicos.
Por 11 dias, no mês de fevereiro, a equipe de reportagem da Agência Brasil viajou pela Amazônia para conhecer o dia a dia dessas comunidades. A vida dos ribeirinhos também será destaque no programa Caminhos da Reportagem, que será exibido pela TV Brasil na próxima quinta-feira (17), às 22h.
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Edição: Lílian Beraldo
Essa matéria foi originalmente publicada pela EBC