Uma nação, dois sistemas: O modelo “rosquinha”

05/04/2014 10:00 Atualizado: 04/04/2014 18:44

A ideia de formar uma nova nação libertária é atraente por duas razões: primeiro, porque é uma alternativa a persuasão; segundo, como uma ferramenta de persuasão.

Comecemos por considerar a nova nação como uma alternativa a persuasão. Como libertários, temos tratado de persuadir os nossos vizinhos e co-cidadãos de que escolham a liberdade durante os últimos 350 anos. (Tomo como referência o início do movimento libertário os Levellers (Niveladores) ingleses na década de 1640). Contudo, parece que nossos vizinhos não gostam da ideia de liberdade que oferecemos. Defendemos a responsabilidade pessoal – apenas para que a direita nos chame de niilistas morais. Atacamos o privilégio corporativo – apenas para a esquerda nos chamar de apologistas do “Grande Capital”. Rechaçamos a iniciação da força – e ambas as partes nos chamam de extremistas.

Frustrados e tristes, muitos libertários se sentem predispostos a dizer: “Já chega. Nós nos rendemos. Vocês ganharam. Irmãos e irmãs, temos lutado por sua liberdade por muitos anos, e em troca só temos recebido insultos, incompreensão e indiferença. Está bem. Seja como vocês quiserem. Se não querem liberdade, se insistem afundar cada vez mais rápido nos pântanos do estatismo, os deixaremos em paz de uma vez por todas. São livres para caminhar alegremente para sua própria escravidão sem que os molestemos. Porém não nos arrastem com vocês. Só desejamos uma miserável porção de terra, no pântano ou no deserto, na selva ou na tundra, onde possamos viver na liberdade que nós, ao menos, valorizamos. Façam com suas vidas o que lhes dê na telha. Troquem seus direitos naturais por grilhões, se for esse o seu desejo. Beijem as botas dos militares e se ajoelhem perante as coroas de ouro. Mas deixem nosso povo ir.”

O atraente de uma “pátria libertária” é que ofereceria um lugar seguro e pacífico a quem se cansou de tratar de persuadir os seus co-cidadãos a aceitar o ideal libertário. Para muitos libertários, as probabilidades de convencer o governo de um país de terceiro mundo a arrendar uma porção de seu território a um consórcio de construtores da nação libertária, ainda que poucas, parecem ser maiores que as de convencer 51% do eleitorado de suas nações para que votem nos libertários (ou começar uma desobediência civil massiva, o que seja necessário para tornar realidade o novo regime libertário). Para aqueles libertários que tem perdido a esperança na persuasão, o movimento da nação livre oferece uma nova esperança.

Contudo, e os libertários que não perderam a esperança na persuasão? Tem alguma razão para participar do movimento por uma nação livre? Depois de tudo, poucos libertários estariam contentes em conseguir a liberdade só para eles, sabendo que o resto da humanidade está se condenando a penúria e servidão. Não é muito cedo para abandonar a esperança de vencer mediante a persuasão, de alcançar a liberdade, segurança e prosperidade, não só para os libertários, como para nossos co-cidadãos também?

Como libertários, todos temos sentido de vez em quando a frustração expressada no “Já chega” que mencionei anteriormente. Todavia insistimos na tarefa da persuasão. Por exemplo, os escritores e porta-vozes da Free Nation Foundation, apesar do compromisso com a ideia de um novo país, também se envolvem no ativismo libertário mais tradicional, através da educação, a política eleitoral ou ambas. A maioria não tem abandonado o sonho da liberdade para todos.

Contudo, se não abandonamos o projeto da liberdade em nossos próprios países, porque perseguir os que alguns chamam a ideia “zionista-libertaria” de uma nova nação?

Uma resposta, como afirmou Rich Hammer, é que não devemos por todos os ovos na cesta da persuasão:

“Parece-me que estamos empregando quase 80% de nossa energia tratando de convencer a maioria dos nosso vizinhos para que rechacem o estatismo. E me parece que estamos perdendo. Muitos libertários respondem a esta situação com uma estratégia óbvia: aumentar a energia investida nessa batalha até uns 90% ou 99%. Mas o que vai acontecer se inclusive este aumento não obter êxito em conter a avalanche estatista? […] É sábio empregar os últimos 20% de nossa energia nisso? […] Talvez devêssemos investir uma fração em construir um refúgio.” (Richard Hammer, “Let the Wookiee Win,” Formulations, Vol. I, No. 2, invierno 1993-94)

Em outras palavras, ainda que persistamos no esforço de libertar nossos vizinhos, temos que aceitar a possibilidade de fracasso. Precisamos de uma apólice de seguro. E temos a responsabilidade – para nós, nossas famílias e nossos companheiros libertários – de assegurar para com quem valoriza a liberdade possa vivê-la agora, durante nossas vidas, sem ter que esperar que os demais vejam a luz.

Essa é, pois, parte da resposta. Porém acredito que ainda há outra resposta. Não devemos ver o esforço de persuasão e o esforço de construir uma nova nação como metas que competem entre si e que nos levam em direções opostas, como se o tempo que se dedica a uma se deve restar para a outra. No lugar disso, devem se ver como metas complementares.

Toda contribuição ao esforço da persuasão também ajuda o movimento de construção de uma nação livre. Por quê? Porque a medida em que aumenta a quantidade de libertários, também cresce o número de participantes de potenciais no movimento de construção. O êxito da persuasão fará que mais pessoas invista dinheiro no esforço por uma nação livre, contribua com ideias para projetar uma constituição, estabeleça uma nova nação e, se necessário, segure em armas em sua defesa.

Contudo o contrário também é correto: toda contribuição para o movimento pró-nação livre também serve, a longo prazo, para o propósito da persuasão. Essa é a razão pela qual disse no começo que o esforço para uma nação livre é não só uma alternativa a persuasão, como também uma possível ferramenta de persuasão.

Como? Pense nisto: de forma geral, quando dizemos aos não-libertários como funcionaria uma sociedade libertária, eles não acreditam. Estão convencidos de que os ricos governariam, os pobres estariam famintos, o crime e as doenças estariam fora de controle. Em resposta, fazemos alusão a teorias econômicas, políticas e sociológicas que, em nosso juízo, sustentam a posição libertária. Porém nossos opositores tem suas próprias teorias estatistas, as quais, graças ao exitoso doutrinamento governamental, lhes parecem mais plausíveis.

Por isso que não é suficiente a teoria. Eles não acreditam nela. Precisamos demonstra-lhes que o libertarianismo funciona na vida real, não só na teoria. Para isso, geralmente mencionamos exemplos históricos de sociedades com políticas e instituições libertárias exitosas.

O problema deste enfoque é que nenhuma dessas sociedades é puramente libertária. Cada uma era uma mescla de características libertárias e não-libertárias. E isso abre a possibilidade de que os opositores do libertarianismo aleguem que os aspectos positivos dessas sociedades se deviam as características não libertárias no lugar das libertários; por outro lado, culpam as características libertárias pelos aspectos negativos. Se supõe que nós responderemos que estão vendo as coisas ao contrário: por exemplo, nas discussões sobre a situação dos EUA no século XIX, nossos opositores culpam o capitalismo sem restrições pelas depredações dos capitalistas sem escrúpulos, enquanto que dão a intervenção governamental em favor dos trabalhadores o crédito pelos aumentos dos salários – por sua vez, nós, armados com nossos livros poeirentos e nossas tabelas chatas, insistimos que os aumentos de salários foram graças ao capitalismo sem restrições, enquanto que as depredações dos capitalista sem escrúpulos se deverão as intervenções do governo em favor das grandes empresas. [1]

Sabemos que temos razão! Porém a única base que podemos lhes dar para que aceitem nossa interpretação da história e não a deles é, mais uma vez, uma teoria – a mesma teoria que eles rechaçam.

De novo, o que debilita nosso argumento empírico perante eles é o fato de que as sociedades que louvamos por suas características libertárias também tem características estatistas, o qual lhes dá a oportunidade de sustentar que estas últimas foram necessárias para o êxito da sociedade. E sua interpretação da história lhes parece plausível, porque encaixa muito bem em suas teorias econômicas, políticas e sociológicas – da mesma maneira que nosso fundo teórico nos faz ver nossas interpretações da historia como naturais e evidentes.

Contudo, se existisse um país libertário exitoso ao qual poderíamos assinalar, um em que as características estatistas tenham sido eliminadas por completo, os estatistas já não poderiam recorrer a essa tática. E por fim teríamos uma prova no mundo real para a teoria libertária em sua totalidade, e não só peças e partes espalhadas em distintas sociedades e épocas. Um país real, completamente libertário, que fosse social e ambientalmente responsável, seguro, próspero e humano, seria a melhor ferramenta possível que poderíamos ter.

E já funcionou no passado. Nos séculos 17 e 18 era comum sustentar que uma república constitucional, com sufrágio universal, eleições periódicas, um definido balanço entre poderes e nenhuma característica hereditária, era um sonho inalcançável. Quem dizia isso não pensava que essa república constitucional se tornaria, com o tempo, num estado burocrático, benfeitor e incentivador de guerras, como realmente ocorre, e sim tinham a ideia, bastante míope, de que colapsaria no decorrer de uma década e cairia numa oligarquia, na anarquia ou numa ditadura. Como disse antes, este argumento era frequente até 1776, já não se escuta, desde então. Os defensores da república constitucional ganharam a disputa – e criaram o sistema que pretendiam, demonstrando ao mundo sua viabilidade. As repúblicas constitucionais estão por toda Europa hoje em dia, em grande medida porque esses povos se inspiraram no modelo americano para fazer as mudanças em seus próprios países. Este é o tipo de precedente que uma nação libertária deveria tratar de copiar.

Duas nações livres em uma: persuadindo os libertários

Tenho falado do papel da persuasão na disputas entre libertários e estatistas. Porém o próprio campo libertário está dividido pela disputa entre anarquistas e minarquistas. Ainda que minha preferência esteja do lado anarquista, ao longo do meu trabalho para a Free Nation Foundation tenho defendido a ideia de que o movimento pró-nação livre não deve se focar em uma nação estritamente anarquista ou estritamente minarquista, e sim em algum tipo de compromisso entre os dois grupos.

Tenho duas razões para pensar assim. Primeiro, não é necessário adiar a fundação de uma nação livre até que os anarquistas tenham convencido os minarquistas ou vice-versa. Essa disputa gastaria muito tempo para se resolver. Para estabelecer uma nação livre, o trabalho deve ser feito pelo movimento libertário tal como é hoje, formado tanto por anarquistas como por minarquistas. Contudo, os anarquistas podem se mostrar hesitantes a sacrificar seu tempo e esforço para fundar uma nação minarquista, do mesmo modo em que os minarquistas podem se mostrar hesitantes em fundar uma nação anarquista. Depois de tudo, cada grupo acredita que o sistema político em que acredita o outro é instável e pouco factível. O jovem movimento libertário pró-nação livre não pode se dar ao luxo de dispensar os serviços de nenhum dos seus partidários, sejam anarquistas ou minarquistas; requer uma meta atraente para ambos os grupos – concretamente uma estrutura constitucional que combine características minarquistas e anarquistas.

Minha segunda razão favorável ao compromisso entre anarquistas e minarquistas é a seguinte. Como anarquista, acredito que é provável que as instituições anarquistas tenha mais êxito que as minarquistas; está aí o meu desejo de ver características anarquistas na estrutura política de uma nação livre. Contudo, sendo politicamente realista, vejo que é mais provável que as demais nações reconheçam antes a legitimidade de uma nação minarquista do que uma anarquista, e um país libertário que está apenas começando não pode se permitir dar ao resto do mundo nenhuma desculpa para invadi-lo a fim de “restabelecer a ordem” (e alias, se a nação livre for criada num território via contrato de arrendamento a longo prazo com outro país, deverá existir alguma agência que represente o país livre e que possa servir como arrendatário); daí a necessidade de ter também características minarquistas.

Assim, até recentemente vejo este compromisso entre o anarquismo e o minarquismo como se fosse uma questão de combinar “elementos” anarquistas com “elementos” minarquistas em uma só constituição. Está era a motivação por trás da minha Constituição de Cantões Virtuais (ver minha série “Imagineering Freedom: A Constitution of Liberty”, em Formulations I. 4, II. 2, II. 3, y II. 4), que combina um governo nacional centralizado, com território definido e divisão de poderes (a interface da política exterior de uma nação livre), com associações “locais”, não geográficas, e compitam entra si (os cantões virtuais).

Ainda acredito no meu sistema de cantões virtuais. Mas agora veja de uma maneira diferente, quiçá complementar, em que as aspirações anarquistas e minarquistas podem estar em harmonia. Os minarquistas desejam um lugar no qual possam colocar em prática suas ideias; e os anarquistas o mesmo. Por que então não dividir uma nação livre em duas, de maneira que os minarquistas fiquem com uma metade e os anarquistas com a outra?

modelo-rosquinha

O primeiro modelo que me veio a mente foi partir o território da nação livre justamente ao meio, como na Figura A. Contudo, isso deixaria a seção anarquista exposta ao mundo exterior, o qual como já vimos é extremamente arriscado, ao menos nos primeiros anos da nação, quando estaria lutando por seu reconhecimento internacionalmente. Minha sugestão, pois, é colocar a região anarquista completamente encravada no território da região minarquista, de maneira que se forme uma barreira, uma espécie de “rosquinha” (doughnut), como na Figura B – uma nação pronta para, digamos assim, apreciar com chocolate quente.

Nos termos da constituição da “Zimiamvia Exterior”, a “Zimiamvia Interior” seria considera uma anarquia independente que não estaria sobre a jurisdição da Zimiamvia Exterior. Contudo, para o resto do mundo, Zimiamvia Interior seria simplesmente uma província interna da Zimiamvia Exterior, e não uma região sem Estado pedindo aos gritos que a invada. Uma situação análoga poderia ser as das repúblicas internas enclavadas no território da África do Sul, as quais são consideradas por todos como parte do território sul-africano, exceto pela mesma África do Sul. O encrave dentro da Zimiamvia Exterior permitiria a Zimiamvia Interior ter uma defesa nacional que seria fornecida pela Zimiamvia Exterior, o qual liberaria a jovem anarquia do peso de ter que resolver o problema da defesa nacional de maneira imediata, antes mesmo do mercado prover alternativas para a defesa.

Assim, o modelo “rosquinha”, igual ao modelo dos cantões virtuais, permite que a nação livre tenha uma feição governamental face as outras nações. Aliás, o modelo “rosquinha” funciona melhor ao satisfazer tanto o grupo anarquista como o minarquista. O sistema de cantões virtuais poderia ser demasiadamente anarquista perante os olhos dos minarquistas, e, ao mesmo tempo, não suficientemente anarquista para satisfazer a todos os anarquistas; o modelo “rosquinha”, diferentemente, dá aos minarquistas e aos anarquistas tudo que ambos os grupos desejam. E mais, aqueles que temem que um dos sistemas poderia ser instável poderia animar-se pela proximidade de outros sistema em que confiasse mais, um sistema que em princípio, poderia intervir em caso de emergência para prevenir o deterioramento do “sistema irmão”.

Com uma minarquia e uma anarquia, uma do lado da outra, cada um poderia servir com um “salva-vidas” contra qualquer tendência não libertária que a outra pudesse ter.

É claro que o modelo “rosquinha” não é necessariamente uma alternativa ao meu modelo anterior dos cantões virtuais. Zimiamvia Exterior poderia facilmente ter uma constituição similar a que propus; é claro que é a que eu defenderia. Contudo alguns minarquistas se sentem incomodados com algumas das disposições anarquistas na minha Constituição de Cantões Virtuais – como minha vedação a um monopólio para o cumprimento de direitos – então poderiam retirar tais disposições sem incomodar os anarquistas, sempre e quando não afete a Zimiamvia Interior.

Contudo, o modelo “rosquinha” oferece um benefício a mais; e com isto retorno ao meu argumento original sobre a persuasão. Uma razão pela qual os minarquistas e os anarquistas não podem convencer uns aos outros, é porque acreditamos na teoria do outro. Os anarquistas temem que um estado minarquista evolua gradualmente ate converte-se num Leviatã. Os minarquistas temem que um regime anarcocapitalista degeneraria e se converteria em uma guerra de máfias privadas, até que os mais ricos e mais fortes dominem. Nem o minarquismo nem o anarcocapitalismo foram jamais postos a prova, em sua totalidade, no mundo real (ainda que tenha existido características anarquistas e minarquistas em diferentes momentos da História). O modelo “rosquinha” oferece a melhor possibilidade para coletar a evidência empírica que poderia resolver essa disputa.

Por todas estas razões, pois, acredito que há um argumento forte para projetar nossa nação livre (uma vez que a tenhamos) seguindo as diretrizes do modelo “rosquinha”, permitindo ao anarquismo de mercado dar seus primeiros passos dentro de um círculo protetor de um Estado minimo.
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Notas:

[1] Esta dialética tem existido desde sempre. Por anos, os estatistas usavam o Velho Oeste como evidência de que a ausência de controle de armas conduz ao caos social. Agora que as pesquisas históricas estabeleceram que o Velho Oeste era de fato relativamente pacífico, e que os tiroteios e linchamentos são só uma invenção de Hollywood, alguns estatista começam a adotar uma nova postura segundo a qual, se o Velho Oeste era pacífico, se deve a que, depois de tudo, exista um controle de armas – citam a campanha de desarmamento de Wyatt Earp (ainda não fizeram nenhuma tentativa de comparar as estatísticas de violência nas regiões em que existia controle de armas e as numerosas regiões nas quais os cidadãos armados eram a maneira de controlar o crime; aliás, ignoram a evidência de que o Earp real, diferente de suas personificações no cinema, era um valentão de instintos assassinos, presumivelmente mais perigoso que os mesmos criminosos dos quais eles supostamente defendia as pessoas).
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Roderick T. Long é um filósofo e professor de filosofia na Universidade de Auburn (Alabama, EUA). Autor dos livros “Reason and Value: Aristotle Versus Rand” e “Wittgenstein, Austrian Economics, and the Logic of Action”, é também editor do Journal of Ayn Rand Studies, membro sênior do Mises Institute (MI) e do Center for a Stateless Society (C4SS)

Tradução de Adriel Santana; revisão por Ivanildo Terceiro; original aqui