Nota do editor: A carta a seguir foi escrita por Albert Ho, um legislador de Hong Kong e ex-presidente do Partido Democrático, publicada pela Rádio Televisão de Hong Kong. Ela foi reproduzida aqui com permissão e aborda o Movimento Guarda-Chuva em Hong Kong, suas origens e implicações para a governança e democracia de Hong Kong no futuro.
A Ação Ocupar Central não ocorreu de acordo com o plano original de seus líderes e organizadores. Ela acabou por ser tornar o Movimento Guarda-Chuva que precipitou a ocupação de várias ruas principais em Kowloon e Hong Kong. Em essência, o Movimento Guarda-Chuva ainda é uma ação de desobediência civil por meio da ocupação ilegal de áreas públicas, tendo se fracionado e perseverado de tal forma e escala que foi totalmente imprevisível para qualquer um ou sequer imaginado.
Sem dúvida, o Movimento Guarda-Chuva chamou a atenção não só de todos em Hong Kong mas também da comunidade internacional. Este evento não afeta apenas as vidas diárias de muitos mas também a paixão e emoções de muitos que têm mantido uma estreita vigilância sobre a evolução da situação política em Hong Kong.
Enquanto ainda há milhares de manifestantes que participam diretamente na ocupação dos vários locais em Causeway Bay, Almirantado e Mongkok, há ainda mais apoiadores que acompanham de perto e estão prontos para sair e reforçar a ocupação continuada dos locais. Neste momento, a polícia está relutante em tomar medidas para limpar as barricadas e os ocupantes desses vários locais por duas razões. Primeiro, os manifestantes simplesmente não se assustam com os cassetetes e o gás lacrimogêneo da polícia e estão sempre preparados para se agrupar em grandes números para formar barricadas humanas para resistir a qualquer ato de limpeza da polícia. Isso foi exatamente o que ocorreu em Mongkok. Em segundo lugar, a administração e a polícia, por enquanto, não parecem estar dispostas a aumentar o uso da força física, incluindo usar balas de borracha para reprimir os manifestantes e a Ação Ocupar, porque o preço político é muito alto a pagar, pelo menos antes da realização da APEC em Pequim em 10 e 11 de novembro de 2014.
Nos últimos vários dias, tenho frequentemente permanecido nos locais ocupados, principalmente nas avenidas Harcourt e Tin Mei no Almirantado e compartilhado pontos de vista com diversos grupos de ocupantes. Acho que, apesar de muitos deles não serem ativistas políticos veteranos, a maioria (sejam estudantes, profissionais, trabalhadores e donas de casa) tem uma concepção clara de por que estão tomando parte nesse movimento e por que estão tão determinados a suster suas posições até que consigam algum progresso concreto na reforma política. O compromisso desses ocupantes tem me impressionado e comovido profundamente. Eu comecei a sentir que a ocupação pode durar por um período muito mais longo do que inicialmente esperado.
Recentemente, tem havido preocupação crescente, especialmente dos apoiadores de meia-idade, sobre se pode haver um encerramento planejado do movimento, o que permitiria aos ocupantes se retirarem pacífica e dignamente. Essa preocupação provavelmente surgiu por causa da perturbação da ordem pública causada ao público em geral e, particularmente, para aqueles que sofreram perdas econômicas devido à ocupação, como taxistas, operadores de micro-ônibus e lojistas nas proximidades. Os processos de injunção iniciados por estas partes lesadas têm gerado mais pressão do lado da opinião pública que é contra o movimento. Muitos partidários e ativistas pró-democracia estão preocupados que uma ocupação prolongada possa exacerbar o antagonismo público e causar danos colaterais ao movimento pela democracia no longo prazo. Embora o regime do chefe-executivo Leung Chun-ying (C.Y. Leung) já tenha perdido sua legitimidade para governar e, portanto, não tenha mais nada a perder, alguns críticos sugerem que, se a ocupação continuar sem um plano de retirada, a maré da opinião pública virará gradualmente e correrá contra os defensores da democracia.
Enquanto toda a comunidade se tornou mais intensamente dividida sobre o Movimento Ocupar, há uma diferença crescente no sentimento entre, por um lado, os estudantes e jovens ocupantes e, por outro lado, os ocupantes relativamente mais velhos ou simpatizantes do Movimento (de 40 anos ou mais). Aqueles raramente se preocupam em discutir qualquer plano para acabar o movimento, enquanto o último grupo, particularmente os três líderes do Ocupar Central, estão muito preocupados com a segurança dos ocupantes no caso de uma possível repressão. Qualquer decisão de elaborar um plano de retirada nesta conjuntura é certamente contra o forte sentimento dos ocupantes de permanecer resolutamente nas áreas ocupadas. Esta é a situação mesmo que aparentemente não haja perspectiva de retomada do diálogo entre o governo e os estudantes ou representantes dos ocupantes. Da mesma forma, a possibilidade de satisfazer as demandas dos ocupantes – ou seja, a renúncia de C.Y. Leung como chefe-executivo e a promessa do governo central de rever a decisão do Comitê Central do Congresso Popular Nacional em Pequim tomada em 31 de agosto de 2014 – é praticamente nula.
Na maioria dos outros países onde tem havido aglomerações de grandes multidões de manifestantes numa área de negócios, vimos cenas de caos e conflito que causaram ferimentos graves nas pessoas, danos a propriedades e até saques em lojas e propriedades privadas. Como participante fervoroso do Movimento, não obstante haja enormes dificuldades e incertezas a nossa frente, eu posso ver o lado positivo deste evento histórico. Eu acredito fortemente que o povo de Hong Kong tem escrito um capítulo surpreendente na história humana da luta não violenta pela democracia. Por mais de 30 dias de ocupação, deixando de lado alguns incidentes isolados de conflitos relativamente menores, o Movimento tem sido geralmente pacífico e não-violento; os ocupantes têm sido calmos, contidos e sempre conscientes da necessidade de prevenir a violência. Depois de 28 de setembro deste ano, após o Movimento Ocupar florescer em toda a Hong Kong, a cidade mudou e de alguma forma redescobriu seu espírito e identidade.
Acredito que os manifestantes e ocupantes no Movimento continuarão a respeitar o princípio de ouro da desobediência civil que é a não-violência. Nesse caso, mesmo que a polícia seja ordenada a limpar os locais ocupados, eles não podem de forma alguma ser induzidos ou movidos a usar força física excessiva ou desproporcional. Afinal, a maioria dos líderes e ocupantes percebem as consequências jurídicas de sua desobediência civil e estão dispostos a submeter-se a uma sentença do Tribunal. Como não há intenção ou plano de resistência a base da força, não consideramos que os locais sejam limpos por meio de uma repressão sangrenta.
No futuro, o Movimento Ocupar pode ressurgir a qualquer momento, em qualquer lugar e em qualquer escala, com ou sem líderes ou planejamento. Essa é a nova Hong Kong que o governo tem de enfrentar se continuar a negar a verdadeira democracia ao povo de Hong Kong.