O sofrimento de pais que perdem um filho pequeno é uma das situações emocionais que mais podem desestruturar uma família. Essa obvia constatação, no entanto, ganha um contorno ainda mais dramático quando a família tem outro filho de pouca idade, pois o luto dos pais pode influenciar no desenvolvimento emocional da criança. Analisar “a vivência da criança que perdeu um irmão e a repercussão dessa perda no seu desenvolvimento emocional, conforme relacionada ao luto dos pais” foi o objeto da pesquisa desenvolvida para o mestrado de Marcela Lança de Andrade, apresentada no final do ano passado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP.
Orientada pela professora Valéria Barbieri, Marcela estudou três famílias com filhos entre nove e 11 anos de idade e que passaram pela traumática situação de perda de um dos filhos. A autora conta que, quando foi escolher seu tema de mestrado, verificou que o tema era pouco estudado. “Existe um tabu social de se falar nesse assunto, no geral as pessoas que trabalham dentro dos hospitais têm mais facilidade porque vivem cotidianamente essa situação, mas é um assunto evitado, pois a maioria das pesquisas dessa área falam sobre a perda dos pais, do cônjuge, poucas falam da perda dos filhos, até pela dificuldade do tema”, afirma, resumindo que seu objetivo foi pensar como estava esse luto e se esse luto repercute no desenvolvimento emocional da criança.
Usando as teorias de Winnicott, uma psicanalista que foi discípulo de Freud e trabalhou com crianças vítimas de traumas causados pela Segunda Grande Guerra Mundial, na metade do século passado, Marcela observou não apenas as crianças, mas o contexto familiar. “É a família que vai passar os valores, a forma de lidar com o sentimento das questões que surgem durante toda a vida da criança. A forma como os pais decidem fazer esse luto influencia diretamente como a criança vai fazer também e, por sua vez, o luto dessa família influencia no desenvolvimento emocional infantil”.
A psicóloga lembra que para Winnicott o desenvolvimento precisa ser suficientemente bom, ou seja, não precisa ser perfeito. Pode ter falhas, mas precisa garantir estabilidade, garantir que a criança vai se sentir confiante para ser ela mesma, para agir de forma espontânea. É isso que vai garantir que ela aprenda, seja criativa. E a criatividade, para Winnicott, é a base para esse desenvolvimento emocional. A pesquisadora diz que, ao sofrer experiências difíceis, o ser humano pode usar sua capacidade criativa para encontrar caminhos, formas de lidar com as dificuldades, assegurando assim, que os acontecimentos não sejam negados ou evitados, o que dificultaria a elaboração dos sentimentos difíceis que são derivados dessas vivências.
Família sem estratégia
“Percebi que os pais tinham muita dificuldade de usar a própria criatividade porque a perda de um filho é uma experiência que abala toda a família, uma experiência muito difícil. Então eles não conseguem também auxiliar os filhos a agirem de forma criativa e ai a família fica sem estratégia, com dificuldade de lidar com o luto e com os sentimentos. O luto é um processo contínuo que leva anos, é difícil estimar sua durabilidade e o que vai acontecer nesse processo depende de uma família para outra”, conclui.
Mas o que seria agir de forma criativa diante de um luto? Marcela responde: “o luto é uma experiência muito subjetiva; normalmente negamos e evitamos nossos sentimentos, porque fica mais fácil banalizar e diminuir a importância que o sentimento tem em nossa vida. Eu diria que ser criativo nessas situações é conseguir agir de uma maneira tal que esses sentimentos possam ser vividos e elaborados, e que não paralisem a pessoa; que eles possam existir junto com a realidade, com o trabalho, com a vida social e permitam que a pessoa continue se desenvolvendo, indo bem”.
Embora não tenha sido o objeto de sua pesquisa, Marcela aponta como estratégias para vivenciar o luto o ato de contar histórias, usar livros que tratam sobre a morte, para preparar a criança, para ela compreender como funciona esse contexto.
“O importante é a comunicação, pois a criança, mesmo que ela não saiba diretamente o que aconteceu, não tenha escutado dos pais, ela entende de alguma maneira que algo aconteceu e ela vai ficar inferindo, fantasiando de que maneira ela pode explicar os acontecimentos que tiveram na família dela e que causam dificuldades. Então é melhor que os pais, ou outras pessoas próximas, que a criança confie, consigam comunicar à criança, de acordo com faixa etária, o que aconteceu. Estando disponíveis para conversar com ela sempre que precisar”, finaliza.
Fonte: Agência USP.