Os mitos do individualismo

21/02/2014 16:43 Atualizado: 21/02/2014 16:43

Costuma-se afirmar que os libertários, ou liberais, acreditam que “os agentes individuais são completamente formados e a prioridade de seus valores são anteriores e externos a de qualquer sociedade”. Eles “ignoram sólidas evidências fornecidas pelas ciências sociais sobre os males do isolamento”, e, o mais chocante, “se opõem ativamente à noção de ‘valores compartilhados’ ou à ideia do ‘bem comum’”. Eu estou citando diretamente do discurso presidencial, de 1995, do professor Amitai Etzioni, para a American Sociological Association (American Sociological Review, fevereiro de 1996). Seja como frequente convidado em talk shows, seja como editor da revista The Responsive Community, Etzioni ganhou algum reconhecimento público fazendo propaganda de um movimento político conhecido como comunitarismo.

Etzioni dificilmente está sozinho nessas acusações. Elas vêm tanto da esquerda, quanto da direita. Na esquerda, o colunista do Washington Post, E.J. Dionne Jr. argumentou em seu livro Why Americans Hate Politics [Por que os americanos odeiam política] que “a crescente popularidade da causa libertária sugere que muitos americanos desistiram da possibilidade de um ‘bem comum’”, e, num artigo recente na Washington Post Magazine, que “a ênfase libertária no indivíduo autônomo parece presumir que os indivíduos vêm ao mundo formados, adultos, que deveriam se responsabilizar por suas ações a partir de seu nascimento”. Na direita, o falecido Russell Kirk, num artigo virulento chamado “Libertários: Os Sectários Que Piam”, alegava que “o libertário permanente, como Satã, não porta autoridade alguma, seja espiritual ou leiga” e que “os libertários não veneram antigas crenças e costumes, ou o mundo natural, ou seu país, ou os princípios de seus compatriotas”.

De forma mais gentil, o senador Dan Coats (R-Ind.) e David Brooks da Weekly Standard condenaram os libertários por supostamente ignorarem os valores comunitários. Defendendo sua proposta por mais programas federais para “reconstruir” comunidades, Coats escreveu que seu projeto é “conscientemente conservador, não apenas libertário. Ele reconhece, não apenas direitos individuais, mas a contribuição de grupos na reconstrução da infraestrutura moral de sua vizinhança”. Coats deduz que direitos individuais são, de alguma maneira, incompatíveis com a participação em grupos ou comunidades.

Tais acusações, frequentemente usadas por aqueles que se opõem aos ideais liberais, nunca são fundamentadas em citações de autores verdadeiramente liberais. Nem se fornecem evidências que mostrem que aqueles que defendem a liberdade individual e o governo constitucionalmente limitado realmente pensam daquela forma, denunciada por Erzioni e seus ecos. Acusações absurdas feitas com frequência e não refutadas podem passar a ser aceitas como verdade. Dessa forma, é fundamental que Etzioni e outros críticos comunitaristas da liberdade individual prestem contas a respeito de suas deturpações.

O individualismo atomista

Vamos examinar o monstro do “individualismo atomista” que Etzioni, Dionne, Kirk e outros criaram. As raízes filosóficas da acusação têm sido apresentadas por críticos comunitaristas do individualismo liberal, como o filósofo Charles Taylor e o cientista político Michael Sandel. Por exemplo, Taylor argumenta que, por os libertários acreditarem em direitos individuais e em princípios abstratos de justiça, eles acreditariam na “autossuficiência do homem, ou se você preferir, do indivíduo”. Essa é uma versão atualizada de um velho ataque contra o individualismo liberal, segundo a qual os liberais apresentariam “indivíduos abstratos” como a base para suas visões sobre a justiça.

Essas alegações não fazem sentido. Ninguém acredita que haja realmente “indivíduos abstratos”, já que todos os indivíduos são necessariamente concretos. Também não existem indivíduos verdadeiramente “autossuficientes”, como qualquer leitor de A Riqueza das Nações perceberia. Pelo contrário, liberais e libertários argumentam que o sistema de justiça deveria se abstrair das características concretas dos indivíduos. Quando um indivíduo é julgado num tribunal, sua altura, cor, condição financeira, condição social e religião são, em geral, irrelevantes em relação à justiça. Isso é o que significa igualdade perante a lei. Não que ninguém tenha altura, cor da pele e crenças particulares. A abstração é um processo mental que usamos para tentar discernir o que é essencial ou relevante num problema, e não necessita de uma crença em entidades abstratas.

É exatamente porque indivíduos ou pequenos grupos não podem ser autossuficientes que a cooperação é necessária à sobrevivência e à prosperidade humana. E por essa cooperação acontecer entre incontáveis indivíduos que nem se conhecem, as regras que governam essa interação são abstratas por natureza. Regras abstratas, que estabeleçam antecipadamente o que podemos esperar uns dos outros, fazem a cooperação possível em larga escala.

Nenhuma pessoa racional poderia acreditar que indivíduos possam ser completamente formados fora da sociedade – isolados, se você preferir. Isso significaria que ninguém poderia ter tido pais, primos, amigos, heróis pessoais ou mesmo vizinhos. Obviamente, todos nós fomos influenciados por aqueles à nossa volta. O que os libertários reivindicam é simplesmente que as diferenças entre adultos normais, não impliquem em direitos fundamentais diferentes.

Os princípios e os limites das obrigações

O Liberalismo não é, fundamentalmente, uma teoria metafísica que prima o indivíduo sobre o abstrato, muito menos uma teoria absurda sobre “indivíduos abstratos”. Também não é uma rejeição anômica das tradições, como acusaram Kirk e outros conservadores. É uma teoria política que surgiu em resposta ao crescimento ilimitado do poder estatal; o liberalismo extrai sua forma da fusão poderosa de teoria normativa sobre princípios morais e políticos, limites das obrigações e uma teoria positiva que explica os princípios da ordem. Cada pessoa tem o direito de ser livre, e pessoas livres podem produzir ordem espontaneamente, sem uma força para comandá-las.

Mas o que se passa com a absurda caracterização do liberalismo feita por Dionne: “os indivíduos vêm ao mundo completamente formados, como adultos, e deveriam ser responsabilizados por suas ações a partir do momento de seu nascimento”? Os libertários reconhecem a diferença entre adultos e crianças, como também reconhecem as diferenças entre pessoas adultas normais e pessoas loucas, ou que possuam algum retardo mental. É necessário proteger crianças e adultos excepcionais porque não podem fazer escolhas responsáveis por si. Porém, não há nenhuma razão óbvia para acreditar que alguns adultos normais possuem o direito de impor escolhas sobre outros adultos normais, exceto em circunstâncias especiais, como quando uma pessoa encontra outra inconsciente e lhe fornece assistência médica ou chama uma ambulância.

O que distingue o liberalismo de outras visões da moral política é, principalmente, sua teoria das obrigações exequíveis. Algumas obrigações, como a de se escrever um bilhete de agradecimento ao anfitrião, após um jantar, não poderiam, normalmente, serem postas em prática pela força. Outras, como a obrigação de não socar o nariz de alguém que discorde de você ou de pagar o par de sapatos antes de sair da loja com eles, podem. Obrigações podem ser universais ou particulares. Indivíduos, quem quer que sejam e onde quer que estejam (ou seja, abstraídos de qualquer circunstância particular), têm obrigações em relação a todas as outras pessoas: a de não agredir suas vidas, sua liberdade, saúde ou propriedades. Segundo John Locke: “Sendo todos iguais e independentes, ninguém deveria prejudicar ninguém em sua vida, saúde, liberdade ou propriedade.” Todos os indivíduos têm o direito de não serem agredidos por outros enquanto gozarem desses bens. Os direitos e as obrigações são correlativos e, sendo ambos universais e “negativos” em sua natureza, são capazes de, em circunstâncias normais, serem apreciados por todos simultaneamente. É a universalidade do direito humano de não ser morto, ferido ou roubado que é a base da visão libertária e ninguém precisa postular um “indivíduo abstrato” para reivindicar a universalidade do direito. É a veneração, não o desprezo, pelos “princípios de seus compatriotas” que leva os libertários a defenderem os direitos individuais.

Essas são obrigações universais, mas e as “particulares”? Enquanto escrevo esse ensaio, estou sentado numa cafeteria e acabei de pedir outro café. Eu aceitei livremente a particular obrigação de pagar pelo café: eu transferi o direito de propriedade de uma determinada quantidade do meu dinheiro para a dona da cafeteria, e ela transferiu o direito de propriedade de uma xícara de café para mim. Os libertários argumentam que obrigações particulares, pelo menos em circunstâncias normais, devem ser criadas por meio do consentimento. Não se pode impor uma obrigação unilateralmente. Igualdade de direitos significa que algumas pessoas não podem simplesmente impor obrigações sobre outras pessoas, porque isso implicaria na violação de seus direitos e de sua agência moral. Os comunitaristas, por outro lado, argumentam que nós todos nascemos com várias obrigações particulares, como dar a certo corpo de pessoas – chamado Estado ou, mais nebulosamente, nação, comunidade ou povo – obediência, dinheiro ou mesmo a vida. E argumentam que aquelas obrigações particulares podem ser impostas coercitivamente. Na verdade, de acordo com comunitaristas como Taylor e Sandel, eu sou, na verdade, constituído como indivíduo, não apenas por minha criação e minhas experiências, mas por um conjunto bem particular de obrigações, as quais não escolhi.

Repetindo, os comunitaristas sustentam que nós somos constituídos, como indivíduos, por nossas obrigações particulares e que essas obrigações não são objeto de escolhas. Mas isso é apenas uma afirmação e não pode substituir um argumento que alguém tem obrigações para com os demais. Isso não justifica a coerção. Poderíamos até perguntar: Se um indivíduo nasce com a obrigação de obedecer, quem nasce com o direito de comandar? Se alguém deseja uma teoria das obrigações coerente, deverá existir alguém, seja um indivíduo ou um grupo, com o direito à satisfação dessas obrigações. Se eu sou constituído como um indivíduo por minha obrigação de obedecer, quem será constituído como indivíduo pelo direito a minha obediência? Tal teoria da obrigação pode ter sido coerente na era dos direitos divinos dos reis, mas ela parece um pouco fora de lugar no mundo moderno. Para terminar, nenhuma pessoa racional acredita na existência de indivíduos abstratos e a verdadeira disputa entre os libertários e os comunitaristas não é em relação ao individualismo, mas sobre a origem das obrigações particulares, sejam elas impostas ou assumidas livremente.

Grupos e bens comuns

Uma teoria da obrigação centrada em indivíduos não significa que não exista uma “coisa” chamada sociedade ou que não possamos falar, de forma significativa, sobre grupos. O fato de haver árvores não significa que não podemos falar sobre florestas. A sociedade não é somente um conjunto de indivíduos, nem é algo “maior ou melhor” separada deles. Da mesma forma que um edifício não é uma pilha de tijolos e sim os tijolos e as relações entre eles, a sociedade não é uma pessoa, com seus próprios direitos, mas sim vários indivíduos e o complexo conjunto de relações entre eles.

Um momento de reflexão deixa claro que as alegações, segundo as quais os libertários rejeitam os “valores compartilhados” e o “bem comum”, são incoerentes. Se os libertários dividem o valor da liberdade (no mínimo), então eles não podem “se opor ativamente à noção de ‘valores compartilhados’”, e se os libertários acreditam que estaríamos numa situação melhor se gozássemos de liberdade, então não podem ter “desistido da possibilidade de um ‘bem comum’”, já que o cerne de seus esforços é reafirmar o que é o bem comum! Em resposta à alegação de Kirk, que os libertários rejeitam a tradição, deixe-me apontar que os libertários defendem a tradição de liberdade, por exemplo, que é fruto de milhares de anos de história humana. Além disso, o tradicionalismo puro é incoerente, já que tradições podem entrar em conflito, e então não há como se guiar corretamente. Em geral, as afirmações de que os libertários “rejeitam as tradições” são absurdas e sem sentido. Os libertários seguem tradições religiosas, familiares, étnicas e sociais, como a cortesia e mesmo o respeito ao próximo, uma tradição que Kirk não achou que fosse necessário manter.

A tese libertária pela liberdade individual, tão distorcida pelos críticos comunitaristas, é simples e racional. É óbvio que indivíduos diferentes necessitam de coisas diferentes para viverem vidas saudáveis e honestas. Apesar de sua natureza comum, as pessoas são material e numericamente individualizadas e nós temos necessidades diferentes. Então, até onde vai o nosso bem comum?

Karl Marx, um antigo e especialmente brilhante crítico comunitarista do libertarianismo, afirmou que a sociedade civil é baseada na “decomposição do homem”, já que “a essência do homem não está mais na comunidade, mas na diferença”; sob o socialismo, em contrate, o homem realizaria sua natureza como “humanidade”. Dessa forma, os socialistas acreditam que a provisão coletiva de todas as coisas é apropriada. Num Estado verdadeiramente socializado, todos nós aproveitaríamos o mesmo bem comum e o conflito simplesmente não ocorreria. Comunitaristas são, em geral, mais cautelosos, mas, apesar de falarem bastante, eles raramente dizem o que seria o bem comum. O filósofo comunitarista Alasdair MacIntyre, por exemplo, em seu influente livro After Virtue, insiste por 219 páginas que existe uma “vida boa para o homem” que deve ser perseguida comumente, e acaba concluindo, de forma pouco convincente que “a vida boa para o homem é a vida gasta na busca da vida boa para o homem”.

Uma alegação familiar é que fornecer previdência social por meio do Estado é um elemento de bem comum, porque “coloca todos nós juntos”. Mas quem está incluído nesse “todos nós”? Dados estatísticos mostram que, apesar de negros e caucasianos pagarem a mesma quantidade de impostos ao sistema de Seguridade Social americano, um negro acaba recebendo metade dos benefícios de um branco. Além disso, mais negros que brancos irão morrer antes que recebam um único centavo, significando vantagem para os aposentados brancos. Seriam os negros parte do “todos nós” que estão aproveitando o bem comum ou seriam eles vítimas do “bem comum” dos outros? (Como os leitores dessa revista devem saber, tudo estaria bem melhor sob um sistema privatizado, o que leva os libertários a afirmar o bem comum da liberdade para escolher entre diferentes sistemas de aposentadoria). Quase sempre, alegações a respeito do “bem comum” servem para cobrir tentativas egoístas de assegurar bens privados. Como o romancista liberal Robert Musil apontou em seu grande trabalho O Homem sem Qualidades: “Hoje em dia, apenas os criminosos se atrevem a causar danos aos outros sem uma filosofia.”

Os libertários reconhecem o pluralismo inevitável do mundo moderno e por essa razão afirmam que a liberdade individual é, ao menos, parte do bem comum. Eles também entendem a absoluta necessidade da cooperação para a obtenção dos fins de alguém. Um indivíduo solitário nunca poderia ser realmente “autossuficiente”, o que é exatamente o motivo pelo qual precisamos ter regras – regendo a propriedade e os contratos, por exemplo – para possibilitar a cooperação pacífica e, para aplicá-las, institui-se um governo. O bem comum é um sistema de justiça que permite que todos vivam juntos, em harmonia e paz. Um bem comum mais extenso, tende a ser, não um bem comum para “todos nós”, mas um bem comum para alguns de nós, a custa de outros de nós. (Há outro sentido, compreendido por todos os pais, para o termo “autossuficiência”. Os pais geralmente desejam que seus filhos adquiram a virtude de cuidarem de si mesmos e não subsistirem como bicões, preguiçosos, vadios ou parasitas. Essa é uma condição necessária para o autorrespeito. Taylor e outros críticos do liberalismo geralmente confundem a virtude da autossuficiência com a impossível condição de nunca confiar ou cooperar com alguém).

A questão do bem comum está relacionada às crenças dos comunitaristas a respeito da personalidade ou da existência separada dos grupos. Ambos são partes integrantes de uma visão irracional e não científica da política, que tende a personalizar as instituições e os grupos, como o Estado, a nação ou a sociedade. Entretanto, ao invés de enriquecer a ciência política e evitar a suposta ingenuidade do individualismo libertário, como os comunitaristas alegam, a tese da personificação obscurece o tema e evita que levantemos perguntas interessantes, com as quais se inicia a investigação científica. Ninguém jamais colocou a questão tão bem quanto o historiador libertário Parker T. Moon, da Universidade de Columbia, em seu estudo sobre o imperialismo europeu do século XIX, Imperialism and World Politics:

“Muitas vezes, a linguagem obscurece a verdade. Com maior frequência do que percebemos, nossos olhos são cegados para os fatos… por truques da língua. Quando usamos a simples palavra ‘França’, pensamos na França como uma unidade, uma entidade. Quando, a fim de evitar uma desagradável repetição, usamos um pronome para designar um país, como em ‘a França enviou suas tropas para conquistar Túnis’, atribuímos não apenas unidade como também personalidade ao país. As palavras mesmas escondem os fatos que fazem das relações internacionais um drama glamoroso em que os atores são nações antropomorfizadas, e com grande facilidade esquecemos os homens e mulheres de carne e osso que são os atores de verdade. Como seria diferente se não existisse uma palavra como ‘França’, e tivéssemos de dizer que trinta e oito milhões de homens, mulheres e crianças de diversos interesses e crenças, que habitam 218 mil milhas quadradas! Assim, poderíamos descrever a expedição a Túnis de maneira mais precisa, como esta: alguns destes trinta e oito milhões mandaram outros trinta mil conquistar Túnis. Esta maneira de apresentar o fato imediatamente sugere uma questão, ou uma série de questões. Quem são os poucos? Por que mandaram os trinta mil a Túnis? E por que eles obedeceram?”

A personalização coletivista obscurece, ao invés de iluminar, questões políticas importantes. Essas questões, centradas principalmente em torno de explicações de fenômenos políticos complexos e da responsabilidade moral, não podem ser discutidas apenas dentro dos limites da personificação coletivista, a qual estende um manto de misticismo em torno das ações dos políticos, dessa forma, permitindo a alguns o uso da “filosofia” – e filosofia mística – para causar danos a terceiros.

Os libertários têm visões opostas às dos comunitaristas em questões importantes, principalmente quanto à coerção ser necessária para manter a comunidade, a solidariedade, a amizade, o amor e outras coisas que fazem a vida valer à pena e que podem ser aproveitadas apenas em conjunto com os outros. Essas diferenças não podem ser removidas a priori, nem se resolvem com distorções vergonhosas, caricaturizações absurdas ou pequenos xingamentos.

Tom Palmer é vice-presidente da Atlas Economic Research Foundation e diretor-geral da Atlas Global Initiative

Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ordem Livre