O Brasil tem hoje 39 ministérios. São 24 ministérios de fato, mais dez secretarias da Presidência e cinco órgãos com status de ministério.
Caso haja uma empresa química, produtora de combustíveis, poluindo um rio em uma grande cidade, que por ventura seja um rio que afete a produção agrícola de outra cidade, pode-se ficar um pouco confuso em saber a quem apelar: ministério das Cidades? Do Meio Ambiente? Da Agricultura, Pecuária e Abastecimento? Desenvolvimento Agrário (qual a diferença?)? Desenvolvimento Social e Combate à Fome? Minas e Energia? Saúde? Transportes? Ciência, Tecnologia e Inovação? E isto só entre os ministérios, sem apelar a nenhuma secretaria ou órgão.
As secretarias, então, são um show à parte. Chefiadas em apenas dois casos por autoridades sem filiação partidária, tratam de “Portos” (“Pesca” é assunto para ministério, “Portos” é assunto para Secretaria) a “Comunicação Social”, uma espécie de ministério das Comunicações do B, para tentar dar um brilho social (o grande eufemismo para “socialista”) que rodeia um dos partidos mais gramscistas do planeta, o PT.
Os tentáculos
Há um restolho de explicação possível analisando o modelo de, digamos, gestão do PT, desde que subiu ao poder. O PT não é um partido que busque jogar o jogo conforme as regras. Seu modo de encarar a democracia não é como um sistema de exercício de poder – para eles, a democracia é um meio para se obter o poder e dele não mais largar.
O poder, aqui, deve ser entendido em sua acepção mais factual – poder é a força que obrigue alguém a fazer alguma coisa que não faça de bom grado, ou que o proíba de algo que ele deseje fazer. Essa força pode ser obtida por direito dentro de um sistema de direitos sempre postos com contrapesos, como na democracia, ou à força bruta, ainda que disfarçada de burocracia.
Se governos autoritários usam dessa força para impedir a liberdade de ação e fazer com que todas as ações resultem em benesses para os governantes, seguindo um padrão de moralidade imposto por quem tem o tacape em mãos, um governo como o petista faz uso da burocracia, sobretudo para exercer uma das mais bem sucedidas funções que uma massa é capaz de obter: se multiplicar. Multiplicando seu próprio número às custas de outros direitos, e pensando nos seres humanos que financiam a máquina estatal apenas como votos possíveis, o petismo passa a ter controle numérico total sobre o Estado, não conseguindo ser retirado de seu posto de poder mesmo que, por algum milagre, perca as eleições. Todos os ministérios, secretarias, órgãos de administração de empresas públicas e demais tentáculos que sustentam o poder respondem apenas a um centralismo dirigente. É o PT como poder permanente.
O aparelhamento do Estado, uma vez que este é tomado, funciona de maneira espinhosa. Se o país é uma democracia, tudo deve ser convertido em votos, e o poder, aí, torna-se poder de gerar votos para perpetuar-se. Não se joga mais o jogo “de fora”. Não se está no mesmo patamar dos outros competidores. Por isso todos os ministérios atuam apenas para um objetivo: tornarem-se ministérios da reeleição.
Enquanto os oposicionistas precisam fazer coligações espúrias com figuras detestáveis (e que eles próprios detestam) da política para conseguir alguns segundos a mais em propagandas eleitorais não vistas por muito mais do que 1% da população, o partido no poder tem a seu dispor uma máquina de 39 ministérios que todo dia, inevitavelmente, produzirão uma notícia, a mais anódina que seja, para ser remartelada para a população.
O povo, incapaz de saber porque temos um “Ministério da Pesca” ou para que serve a “Secretaria Geral da Presidência”, apenas vê todo dia notícias sobre os ministros da presidente, sempre sorridente ao lado deles apresentando suas “obras”. Essa é a verdadeira propaganda eleitoral obrigatória, enquanto aos oposicionistas restam algumas migalhas a serem disputadas durante um mês e pouco, em um horário em que todos desligam a TV.
O poder para ter poder
De todas as instituições da democracia (o Congresso, o sistema de leis, os tribunais, as empresas públicas, as autarquias, as agências reguladoras, etc), o partido político é o único instrumento de obtenção de poder, sobretudo do poder para se ter mais poder. É impossível eleger um congressista, colocar algum gerente em uma grande empresa pública ou mesmo indicar os juízes das mais altas cortes jurídicas sem ter filiação partidária e vencer pleitos. É a idéia de que o poder Executivo, por emanar “diretamente” do povo, tem uma legitimidade maior do que os poderes técnicos. É por isso que cargos técnicos por definição, como ser ministro da Saúde ou da Fazenda, funcionam apenas sob indicação de um político com conhecimento técnico que pode ser nulo naquela seara.
Em Gramsci aprendemos que todas as ações políticas para o novo socialista convergem para o Partido, este novo Príncipe – com P maiúsculo. Tudo se torna voto, tudo deve convergir para o poder – até mesmo aquilo que aparece como apartidário, suprapartidário ou mesmo contra-partidário (vide como os protestos que tomaram as ruas, organizados inicialmente pela esquerda, não tinham uma única pauta que não fosse na direção que o PT defende: mais estado).
Os ministérios, então, podem parecer apenas um aparelhamento quase material – criar ministérios inúteis, da Pesca às “Relações Institucionais” (a quem isso pode favorecer, senão um ministério para o PT criar mais poder usando o próprio Estado?), parece apenas um meio de se criar mais “cabidões”, colocando companheiros em postos de trabalho hiper-remunerados e podendo ter um bom desvio e fazer “caixinha” para o partido.
Porém, o ministério, na acepção que tomou sob o aparelhamento petista, não é apenas um “cabidão” de empregos públicos. Secretarias como a “Secretaria de Políticas para as Mulheres”, por exemplo, foram defendidas como idéias de forte apelo simbólico e de baixo custo. É quase uma confissão disfarçada. De fato, uma secretaria dessas poderia ser quase de graça, ainda mais levando-se em conta o tamanho do Estado brasileiro.
O senador alagoano Guilherme Palmeira expôs isso numa frase famosa quando se cogitou seu nome para ocupar a pasta do “Ministério da Coordenação de Assuntos Políticos” (sic): “Isso não é um ministério, é uma mesa e um telefone”.
Acontecem duas coisas aí. A primeira é que tais ministérios são mecanismos para o Partido se tornar o próprio Estado. Os próprios nomes indicam que não são ministérios para defender o país, os pobres, atender às demandas da população, ou sequer favorecer diretamente os bolsos de alguns cupinchas. São órgãos criados para fazer o PT ter mais poder e até mesmo perseguir seus inimigos. O que dizer da Secretaria de Comunicação Social, do ministério da Integração Nacional, da Secretaria de Assuntos Estratégicos (mesmo que esta seja a única de cargo interino), da Secretaria-Geral da Presidência, do Gabinete de Segurança Institucional, da Casa Civil (de onde sempre surgiram os nomes mais fortes do núcleo duro do petismo, de onde, de fato, se manda no país), e mesmo de estarem ligados à presidência do Banco Central, a Controladoria-Geral da União e a própria Advocacia Geral da União, que parece ter sua razão de ser ligado à presidência, mas acaba funcionando como escritório de advocacia do PT (basta lembrar da indicação estranhíssima de Dias Toffoli para o STF)?
Não são nem de longe órgãos para o país, e sim para um Partido. O partido, que naturalmente seria parte de um todo, representando parte da população, imiscui-se tanto com o Estado que acaba por ser o próprio Estado. L’État c’est le PT. Não à toa, assim que de fato admitiram seu caráter hegemônico (e é esta palavra a grande inimiga da civilização desde os princípios do século XX), as próprias Constituições dos países dominados por uma revolução que surgiu de um Partido definiram que, por este ser o verdadeiro representante do povo, o poder emanaria (e de fato emanou) diretamente do “Partido” – Comunista ou Nazista, por exemplo.
Não à toa também – mesmo sendo dominados por pessoas que têm tanto contato com um chão de fábrica quanto o comum dos mortais tem com Urano – se auto definem sempre como “trabalhadores”, “proletários”, “pobres” ou por meio dos símbolos vazios do gênero. Assim, aparentemente, ser contra o partido seria ser contra “os pobres”, ou os elos mais fracos (e produtores) da nação. É ainda a mesma propaganda do PT e de toda a esquerda, mundialmente (por isso, sem alguma racionalidade e estratégia contrária, tornar-se-á hegemônica mundialmente em questão de poucas décadas)¹.
A outra coisa é que o PT soube se apropriar rapidamente do novo modelo de política de massas: como fazer revoluções para aumentar sua hegemonia na era das comunicações. Isto é estranho, visto que o partido foi tão teimoso em se adaptar às novas tecnologias (era contra a globalização, a industrialização, a urbanização, não parece ter um companheiro capaz de atualizar o iTunes sem pedir ajuda). Todavia, soube fazer oclocracia, o termo que melhor define o país: a política das massas, em que não importa o que um amontoado de gente reivindica, isto se torna lei para toda a população imediatamente.
E para isso precisou de identificação com uma sociedade de maiorias que se fazem de minorias. Para isto, nada melhor do que criar um ministério para mulheres, para cotas, para famintos (ao mesmo tempo em que propagandeia que acabou com a fome). É o PT trabalhando “pelo país”, fazendo propaganda, obrigando o irracional do povo se identificar com ele e se livrando dos inimigos. E até conseguindo uns carguinhos.
Não dá uma saudade do famoso “ministério da desburocratização” de Hélio Beltrão, com seus 7 funcionários, sendo 3 secretarias que tinham como trabalho ficar abrindo cartas de elogios o dia inteiro?²
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[1] Com um raciocínio que analisa a democracia como movimento de massas controladas, Erik von Kuehnelt-Leddihn define, portanto, que tanto o comunismo quanto o nazismo foram movimentos extremamente democráticos, sobretudo pela forma como ambos tomaram o poder e moveram as massas para suas revoluções. Apesar de a idéia soar chocante a uma primeira ouvida, é uma argumentação brilhante, que merece ser lida à parte. Um breve resumo encontra-se aqui: http://reaconaria.org/colunas/colunadoleitor/dia-d-69-anos-depois-whats-left/
[2] O Ministério da Desburocratização foi uma secretaria do poder executivo federal do Brasil que existiu de 1979 a 1986 com o objetivo de diminuir o impacto da estrutura burocrática na economia e vida social brasileiras.
Flavio Morgenstern é analista político, redator e tradutor. É graduando em Letras germânicas.
Esse artigo foi originalmente publicado pela revista Vila Nova