O mercado não é tudo

31/03/2014 12:39 Atualizado: 31/03/2014 12:39

Esclareço, desde já, que o mercado capitalista é uma realização formidável da humanidade. Não saiu do bestunto de nenhum intelectual ou filósofo, nem foi resultante de uma belíssima tese de doutorado. Derivou, naturalmente, da evolução dos meios de produção e troca. Aliado à livre competição, num sistema republicano democrático, é a melhor forma de produzir riquezas e aumentar as oportunidades para o povo. Todavia, condeno a expansão dos tentáculos do Estado invariavelmente calcadas em teses e não na experiência.

Mas, o mercado não é tudo. Negar que a vida em sociedade possui facetas mais densas e complexas do que o conceito de oferta e demanda é “tapar o sol com a peneira”. A tolerância, fundamental em qualquer sociedade, implica em certa redução de nossas liberdades individuais. Sem isso, a vida em sociedade não é viável. Não podemos, por exemplo, ligar nossos aparelhos de som em alto volume após as 22h e incomodar nossos vizinhos. Ora, isso é uma limitação de nossa liberdade!

Por isso, e.g., existem legislações civis e penais. Existem também regras não escritas de conduta moral, que, diga-se, vêm sendo relativizadas num ritmo alucinante. Não custa recordar que o próprio Adam Smith escreveu “A teoria dos sentimentos morais” antes de “A riqueza das nações”. Combinando as duas obras, pode-se chegar à conclusão de que, além dos demais elementos econômicos – dentre eles oferta e demanda –, a moral era um componente essencial para o funcionamento da “mão invisível”.

Nada é preto ou branco. A vida em sociedade é extremamente complicada. Muitas vezes, aparentes conquistas se revelam limitadoras de outras liberdades. A quem cabe decidir as prioridades? Aos presidentes? Aos juízes? Aos congressos?

Esses questionamentos foram profundamente debatidos por ocasião da Revolução Americana. Os “Federalist Papers” – e os “Anti-Federalist Papers” – dão uma excelente noção das divergências e seus respectivos fundamentos. Ao cabo, os “Fouding Fathers” redigiram a Declaração de Independência e a Constituição, que inicia com uma expressão importantíssima “We the people” (Nós o povo).

O presente texto é rápido e rasteiro, mas vale dizer que houve uma grande preocupação com o federalismo durante os debates que resultaram na Constituição americana. James Madison – em oposição a Thomas Jeferson – acreditava que a centralização do poder era nociva. Por isso, insistiu na tese de que os Estados cederiam apenas uma parcela de sua soberania para a criação da União. Concluiu-se também pela separação dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), num claro reconhecimento da tese de Montesquieu, e pelo princípio republicano. A democracia, todavia, foi – e ainda é – indireta. Os americanos votam num Colégio Eleitoral.

Pois bem. A Constituição americana é um documento fabuloso que existe há mais de 200 anos. No entanto, temos que considerar as diversas emendas e decisões da Suprema Corte que alteraram consideravelmente o teor do documento escrito pelos “Founding Fathers”. Há uma tensão interpretativa profunda entre os que defendem uma interpretação “progressista” e uma autêntica.

Essa tensão reflete os anseios da sociedade e o conflito entre conservadores e liberais (no sentido americano e não no europeu), que, a rigor, tem afastado o texto dos princípios norteadores de seus criadores. Nesse sentido, pode-se dizer que os Estados Unidos não possuem mais uma Constituição Liberal Clássica.

Recebi, hoje (5), o livro “The Classical Liberal Constitution” do professor Richard A. Epstein. São quase 600 páginas, mas estou curioso para verificar o resultado do estudo. No momento em que a esquerda e alguns libertários (o que é diferente de liberais clássicos) pugnam, em uníssono, por uma visão “progressista” dos textos constitucionais em geral – cada um defendendo o seu ponto –, é momento de avaliarmos o contraponto. A proposta do professor Epstein é resgatar o liberalismo clássico na Constituição americana. Vamos ver se isso pode de alguma forma nos ajudar por essas bandas.

Enfim, como disse no título desse texto, o mercado não é tudo. Há diversos outros fatores que envolvem a vida em sociedade e não podem ser desprezados. Dentre eles, a separação dos poderes, o federalismo, o republicanismo e a democracia. Aliás, sobre o último, Sir Winston Churchill afirmou: “It has been said that democracy is the worst form of government except all those other forms that have been tried from time to time.” (“Tem sido dito que a democracia é a pior forma de governo exceto todas as outras formas que foram tentadas de tempos em tempos.”)

Leonardo Correa é advogado e LLM pela Universidade da Pensilvânia, EUA

Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Liberal