Uma quadrilha de tráfico de órgãos que operava num hospital militar do Camboja foi desmantelada em agosto, quando a polícia do país fez nove prisões, incluindo pelo menos um médico e professor chinês que atuava como consultor e instrutor do grupo.
A extração forçada de órgãos sancionada pelo Estado é comum na República Popular da China (RPC), especialmente envolvendo hospitais militares, mas até agora permanecia confinada à RPC. “Esse não é exatamente o modelo chinês de extração ilegal de órgãos que se espalha para outros países – isso não vai tão longe”, disse o dr. Torsten Trey, o diretor-executivo dos ‘Médicos Contra a Extração Forçada de Órgãos’ (DAFOH), um grupo de ética médica baseado em Washington DC. “No entanto, parece haver uma abordagem sistemática para fomentar o tráfico de órgãos em áreas onde não havia tráfico de órgãos antes.”
O médico chinês que foi capturado no flagrante policial estava lá para treinar os médicos locais em transplantes de órgãos – uma prática que na China tem como alvo principalmente os prisioneiros no corredor da morte e os prisioneiros de consciência, afirmam pesquisadores. A maioria dos pacientes na instalação eram chineses e vietnamitas, enquanto os doadores eram cambojanos locais.
O jornal cambojano Deum Ampil informou que, no ano passado, entre três e cinco cambojanos foram submetidos a extrações de rins no Hospital Militar Preah Ket Mealea – num edifício que foi doado pela China. O artigo citou um médico dizendo que os rins eram vendidos para destinatários chineses por US$ 35-40 mil, enquanto os doadores cambojanos recebiam apenas US$ 5 mil por seu órgão.
Entre os presos estão o diretor e o vice-diretor do hospital, ambos oficiais militares do Camboja, assim como três “cidadãos chinês-vietnamitas”, segundo um comunicado da polícia, informou o Phnom Penh Post. “O chinês [capturado] é médico e professor, e foi convidado pelo hospital. Ele não está aqui para sempre, ele está presente quando necessário”, disse o tenente-coronel Keo Theo, chefe da força policial de combate ao tráfico em Phnom Penh, segundo o Cambodia Daily.
“O fato de que há um professor chinês, obviamente alguém com conhecimento e experiência, num hospital militar do Camboja é interessante. Por um lado, como é um hospital militar e não um ambiente médico privado, deve estar ocorrendo com a aprovação do governo ou de certos oficiais”, disse o dr. Trey. “Nesse aspecto, o sistema é semelhante à estrutura chinesa de suprimentos de órgãos, que também é centrada em torno dos hospitais militares.”
Na China, prisioneiros no corredor da morte e prisioneiros de consciência são mortos por seus órgãos, para o uso de órgãos vitais como coração e fígado. No Camboja, o sistema parece estar limitado a rins, doados por cidadãos locais em troca de pagamentos em dinheiro.
“O que está em jogo é que a China está prejudicando os padrões éticos em outros países”, disse Trey. Isso poderia ter o efeito de “desviar a atenção” do próprio histórico da China, que inclui a extração de órgãos em massa de prisioneiros de consciência, proeminentemente de praticantes da disciplina espiritual do Falun Gong. O livro recente “The Slaughter” relata detalhadamente as evidências relacionadas a esta política do regime, concluindo que mais de 60 mil praticantes do Falun Gong foram mortos por seus órgãos entre 2000-2008.
Há poucos detalhes sobre as operações internas dos traficantes no Camboja. Logo após a batida da polícia, que ocorreu após vários meses de investigação, os militares do Camboja assumiram o controle e bloquearam novas investigações, alegando que as doações eram voluntárias.
Tea Banh, o ministro da Defesa cambojano, criticou pessoalmente a polícia. “As acusações de tráfico de rins são gravemente prejudiciais. A mídia reportou que era tráfico de rim, mas a operação era voluntária, não [havia] tráfico”, disse Banh à mídia cambojana. Outros no Camboja não foram convencidos pelo argumento, que certamente seria uma raridade no mundo do turismo de transplante internacional.
“Toda vez que um oficial militar sênior está envolvido no crime no Camboja, há uma grande dúvida se ele será responsabilizado”, disse Phil Robertson, vice-diretor da divisão asiática da Human Rights Watch, ao Phnom Penh Post. O Camboja é uma monarquia constitucional, em que o sistema político é dominado pelo Partido Popular do Camboja, que chegou ao poder por meio de um violento golpe de Estado. A Transparency International classifica o país como um dos mais corruptos do Sudeste Asiático.
O Partido de Resgate Nacional do Camboja (PRNC), uma força política de oposição no país, disse suspeitar das reivindicações dos militares que a atividade de tráfico de órgãos era voluntária. Mu Sochua, um legislador do PRNC e chefe da comissão de saúde, disse ao Phnom Penh Post: “Se não houver provas suficientes, faremos uma investigação independente.” Sam Rainsy, o líder do PRNC, alegou que as acusações são “apenas a ponta do iceberg”, segundo os Post. “As negações não foram nada convincentes”, disse ele ao Post, acrescentando que o caso “deve estar entrincheirado em interesses”.