Há alguns anos criei uma pequena lista para discutir a liberdade e a privacidade na internet. Depois de algum tempo, apaguei a lista porque comecei a descrer fortemente da possibilidade de liberdade e privacidade na internet, que considero um espaço tão público – começando pelo meu HD – quanto à rua em frente ao prédio onde moro. Francamente, hoje em dia acho que se você deseja manter algo absolutamente privado então não devia nem mesmo digitalizar esse algo. Sei que isso é radical, mas veja que usei o adjetivo “absolutamente”.
Essa discussão precisa levar em conta duas coisas. Primeiro, é claro, o que se quer dizer por “liberdade”. Não parece necessário discutir o que significa a privacidade. Segundo, quais são os incentivos ou predisposições contidas naturalmente num computador conectado à internet por uma rede de banda larga.
Por “liberdade” normalmente refiro a ausência de coerção ou vigilância (que pode levar à coerção) por parte do governo, e nada mais. Não é incomum que as pessoas entendam liberdade como “não sofrer as consequências dos próprios atos”. Por isso, por exemplo, não acredito que eu tenha um direito a não ser cobrado por alguma coisa que eu tenha publicado na internet há muitos anos. Posso até achar, talvez com razão, que a pessoa que faz essa cobrança é mesquinha e mau-caráter, mas não posso controlar nem a opinião que ela tem de mim – a opinião dela é propriedade dela; é por isso que nós liberais não acreditamos num direito à reputação ou imagem – nem impedir seu acesso a algo que está fora da minha propriedade. Claro que eu posso tentar apagar o que achar indesejável, mas isso pode não ser possível.
Essa questão leva aos incentivos ou predisposições das tecnologias. Quando algo é publicado na internet, pode ser livremente reproduzido e mantido no ar indefinidamente por um custo muito baixo. Ao publicar algo, preciso me perguntar se, daqui a décadas, quero responder por aquilo. Assim, a maior facilidade de publicação convida à maior prudência. Mas existe outro aspecto, que me faz retornar ao ponto principal, já que entendo a liberdade sobretudo como ausência de coerção do governo. Se você considerar um livro uma tecnologia de mídia, vai ver que ele tem certas características, como poder ser destruído, poder ser comprado, lido, escondido e repassado em grande segredo. Trabalho cercado por centenas de livros e sei que para se ter uma boa ideia deles uma pessoa gastaria horas, quiçá dias: para classificá-los e avaliá-los seria preciso ao menos ler as contracapas e talvez dar uma folheada. Uma edição Arden de uma peça de Shakespeare, contendo um longo prefácio, notas sobre diversas produções, comentários filológicos, excertos de histórias que Shakespeare usou etc. é diferente de uma edição para estudantes que quase só tem notas sobre o vocabulário elisabetano. Uma pessoa que desconhecesse as edições gastaria alguns minutos para descobrir a diferença entre as duas. No entanto, veja a diferença, um software pode classificar e avaliar todo o conteúdo do meu computador, usando palavras-chave, em minutos ou segundos. Tudo só depende da velocidade de processamento e do HD. E, para expandir isso, pense que o Google classifica o conteúdo da web quase em tempo real. Sabemos que existem páginas que o Google não pega, mas também já nos acostumamos a pensar que, se algo não está no Google, não existe. Ninguém em sã consciência diria que se algo não consta da Biblioteca do Congresso Americano não deve existir. Observe ainda que uma ferramenta como o Google classifica tudo, não apenas a “alta cultura”. A internet é a Biblioteca de Alexandria e tudo o que está em volta.
Agora vou transformar um aspecto do exemplo que dei numa generalização. Por mais computadorizada que seja hoje a produção de um livro, ela ainda é fácil de entender. Como no verso de Fernando Pessoa, num poema aliás chamado “Liberdade”, “livros são papéis pintados com tinta”. A produção de papel também pode ser complicada, mas… Quantos daqueles que me leem julgam entender o mínimo daquilo que é necessário para que este texto em formato digital chegue até seus olhos? Você saberia montar seu computador se visse as peças? Eu saberia, mas nem me peça para explicar como é que os pixels acendem na minha tela, ou exatamente como funciona o software que me fez redigir isso. O computador é um milagre da especialização do trabalho. Porém, essa especialização também é uma espécie de poder. Meu computador pode ser invadido de mil maneiras sem que eu sequer venha a saber. Mesmo que eu use proteções, alguém pode ser mais inteligente do que elas. Ao entrar na internet, estou apostando que isso não vai acontecer, levando em conta até a minha relativa irrelevância.
Esse alguém, porém, pode estar a serviço do governo, e pode não ser uma pessoa, mas centenas ou milhares de pessoas munidas de máquinas cuja capacidade está além da minha imaginação. A pedofilia e o terrorismo são usados como pretextos para uma vigilância constante, mas qualquer coisa pode vir a ser um pretexto, como a defesa de ideias que questionam a extensão do governo brasileiro. Não estou insinuando que isso vá acontecer no futuro próximo. Estou afirmando que essa possibilidade está perfeitamente aberta. Se alguém que tem poder quiser vasculhar e monitorar sua vida digital, isso é muitíssimo mais fácil do que entrar em sua casa e olhar o que você tem.
A questão principal, em suma, é que o nível de especialização necessário para realmente dominar as tecnologias de informação tem um custo de aquisição muito mais alto do que a vasta maioria dos usuários está disposta a pagar, eu incluso. Por sua vez, essa ignorância leva à exposição e ao potencial fim da privacidade e da liberdade. Apenas duas coisas impedem a vigilância perpétua de grande parte da população: o custo e a crença de que isso é errado. Duas coisas que provavelmente tendem a diminuir.
Pedro Sette-Câmara é formado em grego clássico pela UFRJ. Manteve o site O Indivíduo entre 1997 e 2009, ajudando a divulgar ideias liberais. Em 2005, ajudou a fundar o Instituto Millenium. Entre 2007 e 2009, também colaborou com OrdemLivre.org. É tradutor de autores como René Girard e Roger Scruton, e também autor de teatro
Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ordem Livre