Nos períodos pós-eleitorais é bastante comum vermos e ouvirmos reclamações diversas sobre como as pessoas não sabem votar e sobre como a democracia é um regime imperfeito e cheio de problemas. Esses lamentos são fruto da sensação de ineficácia política que acomete a maioria da população brasileira.
O desencanto em relação à democracia geralmente está associado a expectativas exageradas sobre o que ela pode nos oferecer. O filósofo e economista alemão Hans-Hermann Hoppe chegou a escrever um livro chamado Democracia: o Deus que falhou. Mas quem disse que a democracia é um deus? Deificar a democracia é algo similar àquilo que fazem alguns economistas “neoclássicos” ao partirem de modelos baseados em situações hipotéticas de equilíbrio perfeito (de inegável importância didática, mas praticamente irrealizáveis): quando a realidade do dinâmico processo de mercado não reflete tais modelos, apontam-se falhas de mercado, que, por sua vez, servem de justificativa para intervenções governamentais de caráter corretivo.
O mercado não é perfeito, pois é um processo que decorre da interação impessoal de bilhões de indivíduos dotados de informações incompletas, custos de transação e preferências cambiantes e imprevisíveis. O mercado político também tem limitações, motivo pelo qual não faz sentido endeusarmos a democracia nem qualquer outra forma de organização política coordenada por homens. O que não quer dizer, como no caso do processo de mercado, que devamos jogar o bebê fora com a água do banho.
Como afirma Michael Munger em seu excelente artigo Democracy is a Means, Not an End, o problema não é estarmos demandando e participando muito pouco do processo democrático (como é comum ouvir daqueles que veem em “mais educação” a solução para todas as distorções do nosso sistema político), mas sim em estarmos esperando demais dele. Da mesma forma, ao endeusarmos a democracia, como fazem alguns ao justificarem leis e políticas públicas absurdas com base em argumentos rasos como “foi democrático” ou “foi a vontade do povo”, estaremos endeusando seres humanos, pois são eles que moldam as instituições políticas que determinam o funcionamento dos regimes democráticos. Democracia sem respeito a direitos e liberdades de minorias (sendo o indivíduo a menor minoria) e ao Estado de direito não é democracia, é “democratismo”.
Nesse ponto, a Declaração de Independência Americana traz uma lição importante, ao declarar, inicialmente, a existência de direitos inerentes a todos os homens – e que “para assegurar tais direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seu justo poder do consentimento dos governados”. A democracia não pode, portanto, ser vista como um fim em si mesmo, mas somente como uma maneira de se verificar o consentimento dos governados (ou “administrados”, conforme a nomenclatura do Direito brasileiro). Os fins de uma constituição política não devem ser a garantia da felicidade de grupo A ou B, mas sim a garantia dos direitos e liberdades individuais de seus cidadãos (ficando a critério de cada um a sua busca individual pela felicidade), estando eles acima de uma eventual vontade da maioria. Em outras palavras, a democracia não pode ser dois lobos e uma ovelha decidindo qual será o jantar.
Ademais, o valor da democracia não está em garantir que serão escolhidos os melhores e mais aptos para ocuparem cargos de decisões sobre a vida pública de uma região, mas sim na relativa facilidade de livrar-se dos maus ocupantes dessas posições. É claro que os critérios segundo os quais os políticos são julgados como “bons” ou “maus” no desempenho de suas funções depende dos valores socioculturais adotados (conscientemente ou não) pelo eleitorado.
A busca por alternativas é saudável e instigante. O problema é que por mais que optemos em virar as costas à política, esta insistirá em nos lembrar de sua incômoda, porém necessária, existência. O exemplo do Seasteading Institute, empreitada popularizada por Patri Friedman (neto de Milton Friedman) é emblemático nesse sentido. Partindo de elementos de análise da Teoria da Escolha Pública, Friedman concluiu que a democracia é inviável e que somente por meio da competição teremos algum tipo de inovação neste “mercado”. Sua ideia com a criação do Seasteading Institute é construir plataformas marítimas habitáveis em águas oceânicas internacionais para gerar uma multiplicidade de sistemas e regimes de governo que possam competir entre si e com aqueles existentes em Estados nacionais já estabelecidos.
A ideia é interessante, mas é assentada na premissa de que a atual relativa falta de regulações sobre o uso de águas internacionais permanecerá mesmo quando governos e organismos multilaterais perceberem-nas como um bem econômico, algo que hoje não ocorre. Desta maneira, por meio de uma simples canetada, um paraíso da liberdade pode passar a fazer parte da jurisdição de um Estado autoritário.
Se não podemos fugir da política, parece melhor então que esta seja regida por procedimentos democráticos. A democracia (em sua forma representativa/indireta) é, sem sombra de dúvidas, o melhor regime já posto em prática para a tomada de decisões em grandes grupos. Apesar de seus inúmeros defeitos, é nas modernas democracias liberais em que se desfruta o maior nível de liberdade e prosperidade da história da raça humana. Apesar da possibilidade de captura de agentes políticos por parte de interesses específicos (o que diminui inegavelmente sua eficiência), é o regime que mais se adequa ao dinamismo de uma economia de mercado, pois não concentra excessivos poderes de decisão num número reduzido de agentes (quanto mais descentralizadas as decisões políticas, melhor).
Isso não quer dizer, obviamente, que tenhamos exaurido as possibilidades de desenvolvimento institucional ou que estejamos diante do “fim da história”. Especialmente em países como o Brasil, onde a democracia ainda tem muito a se desenvolver, os avanços ainda são simultaneamente muitos e necessários. Não faz sentido afirmar que “a democracia não funcionou no Brasil”, assim como não faz sentido dizer que “o Capitalismo não funcionou no Brasil”: encontramo-nos num estágio incipiente de ambos. Como afirma Robert A. Dahl em seu “Sobre a Democracia” (uma excelente obra sobre a história e a atualidade das práticas democráticas), o desenvolvimento da democracia é, ainda, uma viagem inacabada.
O fato é que estamos diante de um legado com inegável superioridade em relação às alternativas até então encontradas, e que não deve ser descartado em nome de aventuras de duvidosa aplicação prática. Liberdade e democracia não são somente compatíveis, como parecem ser essenciais à garantia uma da outra. Todos os países substancialmente livres na história da humanidade eram democráticos – ter liberdade econômica sob uma ditadura não é ser livre, como ocorre em Hong Kong e Cingapura, por exemplo.
Por mais que seja empolgante e estimulante sonharmos com um mundo voluntarista, onde possamos prescindir por completo da presença do Estado, não podemos permitir que o ideal seja inimigo do bom – do contrário, arriscamos cair no mesmo poço sem fundo dos socialistas utópicos que, por sobre uma pilha de cadáveres deixada por seus pares realistas, seguem aguardando que o mundo se molde a rigidez de suas ideias. Ou perdermos raras oportunidades de afetarmos, ainda que marginalmente, o clima de ideias e as instituições políticas que nos cercam.
Fabio Ostermann é cientista político e diretor de relações institucionais do Instituto Liberal