Lembrar é resistir

15/03/2013 13:03 Atualizado: 15/03/2013 23:40
O advogado de direitos humanos Teng Biao numa conferência de imprensa na sede do capítulo alemão da Anistia Internacional em Berlim em 7 de dezembro de 2007. Ele foi preso duas vezes na China por sua defesa dos direitos humanos (Marcus Brandt/AFP/Getty Images)

É inconcebível numa sociedade moderna deter um cidadão por três ou quatro anos com base em meras decisões da polícia sem passar por qualquer procedimento judicial adequado. Mas na China atual, essa é uma realidade vívida e centenas de milhares de cidadãos chineses foram vítimas disso. Isto é, desde que o sistema chinês de reeducação pelo trabalho foi implementado em 1957.

Mais e mais estudiosos, advogados e cidadãos de todas as classes sociais têm exigido fortemente a abolição desse sistema, enquanto a comunidade internacional também tem pressionado a China a acabar com isso, honrando assim uma série de convenções internacionais sobre direitos humanos que a China aderiu. Mas até hoje, a reeducação pelo trabalho ainda é amplamente utilizada.

Os campos de reeducação pelo trabalho detêm não apenas pequenos criminosos, mas também viciados em drogas, prostitutas, clientes de prostitutas e pessoas com doenças mentais. Cada vez mais, ele tem sido usado para perseguir praticantes do Falun Gong, peticionários e dissidentes.

Tal como acontece com a maioria das coisas na vida, muitas vezes as pessoas estão satisfeitas com uma impressão geral ou descrição predominante sem dar-lhe uma chance ou a boa vontade para explorá-la e estudá-la em detalhes, especialmente o destino e os sentimentos das pessoas envolvidas.

Sobre temas como guerra, desastres, assassinatos em massa, prisão e tortura, temos a tendência de, intencionalmente ou não, evitar suas profundezas escuras e sangrentas. Mas é precisamente isso que faz a boa escrita, especialmente um documentário. É um complemento importante para nossas experiências rotineiras. Temos de encarar tudo isso, não devemos fingir que essas coisas nunca aconteceram.

O livro na minha frente, “Uma viagem valiosa – Uma documentação do Centro de Expedição de Pequim para a Reeducação pelo Trabalho”, é o relato de uma testemunha do sistema chinês de reeducação pelo trabalho. Ela revela o sistema para nós e, ao mesmo tempo, também levanta questões muito maiores sobre o sistema político da China, da sociedade e da natureza humana.

A autora da obra é Ye Jinghuan, vítima das fraudes de futuros de “Xin Guo Da” do final de 1990, que envolveu o filho de um ex-premiê. Durante 11 anos de petições, ela foi repetidamente espancada pela polícia, detida, presa e finalmente sentenciada à reeducação pelo trabalho.

No Centro de Expedição para Reeducação pelo Trabalho, ela sofreu várias torturas, às vezes a ponto de quase quebrar. Mas ela continuou dizendo a si mesma: “Eu não posso morrer, eu não posso perder minha mente, eu devo sair daqui viva! Devo dizer a todos sobre os males da reeducação pelo trabalho e devo relatar isso à posteridade!”

Por causa de sua recusa a ceder, o mundo hoje é capaz de ver a verdadeira face da reeducação pelo trabalho (RPT). Ao mesmo tempo, a escrita é catártica para a autora; por meio dela, ela é capaz de reexaminar a vida e participar na realidade de forma construtiva.

Segundo a investigação da autora, a maioria dos peticionários entre os detidos da RPL foi submetida ao bastão elétrico e ao confinamento no “pequeno quarto escuro”.

Mesmo que a China tenha adotado a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura em 1988, a tortura ainda é amplamente utilizada nos dias de hoje em centros de detenção, nas prisões e outros locais de encarceramento e um grande número de cidadãos morre ou fica debilitado como consequência.

A tortura perpetrada nos campos de RPT é extremamente cruel; brutalidades contra praticantes do Falun Gong vão além da imaginação e continuam a ser perpetradas. A perseguição ao Falun Gong há muito marcou o ponto mais baixo da civilização humana e constitui, sem dúvida, crimes contra a humanidade.

Mas internacional e internamente, apenas alguns estão dispostos ou ousariam condenar a perseguição. Para intelectuais e políticos, essa relutância é uma ironia e uma vergonha que só crescerá como o passar do tempo.

As “características” das prisões chinesas são que “agentes da lei humilham e abusam dos prisioneiros como parte do sistema”, disse Wang Lixiong ao comentar sobre o “Testemunho” de Liao Yiwu [um relato do poeta sobre seu período na RPT]. “Uma viagem valiosa” não é tanto sobre abusos físicos, mas sobre a rotina “educativa” do campo que abusa e tortura mentalmente os internos.

Muitas das regras da RPT e requisitos informais são projetados para humilhar as pessoas, de modo a destruir sua dignidade enquanto ser humano. Por exemplo, “Deve-se manter a cabeça abaixada ao caminhar nos corredores, fazer fila ou falar com policiais. O padrão é olhar para a ponta dos próprios dedos dos pés.”

Em outro exemplo, ir ao banheiro não é permitido, exceto em determinados momentos. “Sapatos, escova de dente e outros objetos devem ser arrumados em linha reta, sem tolerância para desvios.”