Lei protege Quilombo Sacopã, no Rio

23/08/2012 18:15 Atualizado: 02/09/2012 05:50
Família Pinto, remanescente de escravos, constitui o primeiro quilombo urbano do Rio de Janeiro

RIO DE JANEIRO – A Câmara Municipal do Rio de Janeiro publicou nesta segunda-feira (20) uma lei reconhecendo o Quilombo Sacopã como Área Especial de Interesse Cultural (AEIC). O projeto virou lei após a casa derrubar, por 28 votos contra cinco, o veto feito há três meses pelo prefeito Eduardo Paes. O quilombo fica no alto da ladeira Sacopã, próximo à rua Fonte da Saudade, na Lagoa Rodrigo de Freitas, zona sul da cidade, um dos bairros com o metro quadrado mais caro do país.

A comunidade quilombola é constituída por oito famílias remanescentes de escravos que há mais de 100 anos vivem num terreno de 2,4 hectares rodeado por mata nativa e cercada por edifícios de classe alta. No local, com vista panorâmica para parte da Lagoa e o Morro do Corcovado, costumava ocorrer, todo segundo sábado do mês, a tradicional roda de samba com feijoada, preparada à lenha, até ser proibida por uma liminar da Justiça movida pelos condomínios vizinhos.

A comunidade, localizada no Morro da Saudade, vizinha ao Morro dos Cabritos e entre aos bairros de Ipanema e Copacabana, ficou especialmente conhecida quando grandes nomes do samba carioca passaram a frequentar as rodas nos anos 60, atraindo desde então vários artistas e se tornando atração turística. Andavam por lá bambas como João Nogueira, Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, Dona Ivone Lara e Arlindo Cruz, além do escritor e jornalista Sérgio Cabral (pai do governador do Rio) e do designer mundialmente renomado Hans Donner, responsável pela identidade visual da Rede Globo. A atriz Regina Casé, comemorou seu aniversário no local no ano passado, com sua família e amigos.

No início do mês passado, oficiais lacraram a entrada da vila quilombola como desdobramento de uma ação movida em 1989 por um condomínio de luxo vizinho que reivindica o trecho da entrada. O terreno do quilombo também é alvo de uma ação de reintegração de posse movida pela construtora imobiliária Pronil com a justificativa de doá-lo à área de preservação ambiental do município, na qual é vedada habitação e comércio. No entanto, o líder quilombola Luiz Sacopã, presidente da União dos Remanescentes de Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro, afirma que uma das principais características do quilombo é a preservação ambiental, herdada de uma consciência ecológica de seus antepassados.

Segundo Sacopã, a ação da polícia de bloquear a entrada da comunidade feriu diretamente o direito constitucional de ir e vir. O líder lembra também que as sucessivas tentativas de remover a comunidade ferem o artigo 68 da Constituição Federal, estampado numa placa no acesso ao quilombo: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos definitivos.”

O Sacopã é reconhecido desde 2004 pela Fundação Cultural Palmares, órgão do Ministério da Cultura encarregado da preservação do patrimônio cultural afro-brasileiro. A nova lei que o reconhece como área de interesse cultural abre caminho para a regularização fundiária definitiva pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

História

Fazendo o mesmo que seus pais no fim do século XIX, final da escravidão no Brasil, o casal Maria Rosa da Conceição do Carmo e Manoel Pinto Júnior fugiu com seus cinco filhos de uma fazenda de café no município de Nova Friburgo para o Rio de Janeiro, no final da década de 1920, vindo a se instalar no que é hoje o número 250 da rua Sacopã e que na época era um matagal.

No início do século XX, devido a sua beleza natural, o então praticamente inabitado bairro da Lagoa sofreu um acelerado processo de urbanização, que avançava em direção à zona sul da cidade, atraindo o interesse de construtoras. Paralelamente ocorria também um processo de favelização, culminando nas remoções, nas décadas de 60 e 70, decorrentes de uma política do estado para remover a população pobre da região. Desde então o bairro se transformou em área nobre destinado à classe alta do Rio de Janeiro.

Em decorrência dessa expansão imobiliária, vinte e dois condomínios de luxo foram construídos na área da rua Fonte da Saudade, nos arredores do quilombo Sacopã. Entre eles estava o Chácara Sacopã, que invadiu parte do terreno quilombola.

O crescimento urbano engoliu o quilombo Sacopã, tornando-o o primeiro quilombo urbano do estado do Rio de Janeiro e único na zona sul, processo idêntico ao sofrido pelo quilombo Pedra do Sal, também no Rio. Apesar da urbanização, os quilombos urbanos não se descaracterizam com ela e mantêm vivas suas tradições e costumes ancestrais, inseparáveis de seu território e história.

A Família Pinto, como é chamada a quilombola, reside no local há 108 anos e já está hoje em sua sexta geração. Além da tradicional feijoada com samba, o quilombo Sacopã, atualmente constituído por 32 pessoas, também organiza um bloco carnavalesco, único do Rio criado e comandado por uma comunidade quilombola.

Os quilombos são propriedades coletivas diferenciadas asseguradas pelo artigo 68 da Constituição e regulamentados pelo decreto n° 4887/03 por serem compreendidos como territórios de resistência étnica e cultural, mantenedora de elementos da identidade nacional.