Há três anos, três ditadores árabes foram expulsos nos levantes em grande parte não-violentos do que se tornou conhecido como ‘Primavera Árabe’. Na Tunísia, com a adopção de um projeto progressivo de Constituição democrática, o futuro desse país parece positivo. No Iêmen, a evolução democrática permanece estagnada em meio a enormes desafios, mas ainda há sinais de esperança. No Egito, no entanto, o governo autocrático reafirmou-se com vingança.
Crescente repressão
Desde o golpe militar no Egito contra o governo impopular mas democraticamente eleito de Mohamed Morsi em julho do ano passado, mais de mil opositores do regime foram mortos, milhares foram levados perante tribunais militares sob acusações políticas, e uma lei antiprotesto repressiva foi promulgada, limitando severamente o direito de reunião pacífica. Os alvos desta repressão não têm sido apenas partidários do governo deposto da Irmandade Muçulmana, mas ativistas seculares liberais cujos apelos por democracia e justiça social colocaram-nos em conflito com os islâmicos e os líderes militares.
Uma nova Constituição escrita por nomeados militares apareceu diante dos eleitores em meados de janeiro quando a junta militar alegou 98% de votos a favor. No entanto, aqueles que fizeram campanha em apoio do voto negativo foram submetidos a espancamentos e prisão, e apenas artigos favoráveis sobre a Constituição foram autorizados na mídia egípcia. O comparecimento às urnas foi de apenas 37% da população total.
Um número crescente de proeminentes ativistas sindicais e defensores de direitos humanos foram presos, incluindo Ahmed Maher e Mohamed Adel, que cofundaram em 2008 o movimento secular esquerdista “6 de Abril” e estavam entre as figuras mais proeminentes da revolta não-violenta contra Hosni Mubarak três anos depois. Ambos foram condenados a três anos de prisão.
Além disso, 20 funcionários da Al Jazira, incluindo o chefe do escritório (um cidadão canadense) e o correspondente veterano Peter Greste (um australiano), foram presos sob a acusação de “apoiar um grupo terrorista” e “fabricação de notícias” em meio a alegações de que tinham “alterado e modificado cenas de vídeo” que mostravam a repressão do governo. Com efeito, o governo militar já criminalizou qualquer jornalismo que não se encaixe na linha do governo. Enquanto isso, um número crescente de outros repórteres foi agredido por bandidos pró-regime.
Crescente paranoia
A paranoia do regime apoiado pelos EUA é notável. Autoridades detiveram uma cegonha que carregava um dispositivo de rastreamento instalado por um ornitólogo, suspeitando que o animal fosse usado para espionagem. Eles investigaram um artista de fantoche de mão de um programa infantil popular da televisão sob suspeita de que ele estava enviando mensagens codificadas para oposicionistas. Ziad Akl, analista político do Centro Al-Ahram de Estudos Estratégicos e Políticos, observou que tal comportamento reflete “um sentimento de nacionalismo fascista com o qual você compactua ou enfrenta ser rotulado como um traidor”.
Na mesma linha, a junta está usando meios de comunicação controlados pelo governo para recircular teorias de conspiração a muito desacreditadas e originalmente apresentadas por LaRouchites, esquerdistas paranoicos e grupos libertários marginais, alegando que grupos de direitos humanos com sede nos EUA, estudiosos americanos e fundações educacionais independentes que pesquisam ações estratégicas não-violentas, veteranos da Sérvia da luta pró-democracia de 2000 contra Milosevic, entre outros, têm conspirado com o governo dos EUA e ativistas pró-democracia do Egito para enfraquecer a nação a serviço do imperialismo ocidental.
Os artigos e transmissões têm acusado falsamente uma ampla gama de indivíduos e organizações que lutaram contra o regime de Mubarak de trabalhar com Washington num “novo plano no Oriente Médio” de dominação dos EUA. Com manchetes como “6 de Abril por trás de um plano americano para dar poder a Irmandade Muçulmana no Egito”, o objetivo aparente do regime é desacreditar a resistência não-violenta utilizada pelos egípcios tão efetivamente três anos atrás – e que desafiou o regime militar posteriormente – insinuando que foi planejado, instigado e financiado pelos Estados Unidos.
Como parte deste esforço para culpar os Estados Unidos por movimentos internos, o escritor pró-militar e analista político Amro Amer afirma no Al-Dostoor que os protestos egípcios pró-democracia de 2011 foram parte de uma conspiração do governo dos EUA “para desmantelar os exércitos árabes mais fortes” que começou com a invasão do Iraque e mais tarde mudou para “guerras não-violentas”, mobilizando estudiosos da ação estratégica não-violenta como Gene Sharp como parte deste plano.
De fato, assim como o governo dos EUA durante a Guerra Fria alegou que várias revoltas populares de esquerda ao redor do mundo foram na verdade engenharia de Moscou como parte de uma “lista negra” soviética, o jornal semioficial Al-Ahram descarta a ideia de que “ditadores possam ser derrubados de dentro de seus países”, já que “a CIA e a mídia americana são os únicos que podem determinar se esse ditador vale a pena ser derrubado”. Ao efetivamente negar a iniciativa humana na luta pelos direitos humanos, democracia e justiça social, o regime apoiado pelos EUA pode, paradoxalmente, afirmar que os ativistas progressistas antiautoritarismo que derrubaram Mubarak e agora estão questionando suas próprias políticas repressivas são simplesmente agentes dos EUA.
História revisionista
Em suma, a junta militar, de alguma forma na esperança de que os egípcios esquecerão as décadas de apoio incondicional dos EUA à ditadura de Mubarak e sua repressão de dissidentes islâmicos, está agora tentando estabelecer o caso de que os Estados Unidos realmente conspiraram para derrubar Mubarak e levar a Irmandade Muçulmana ao poder. De fato, dispensando as origens populares dos movimentos islâmicos em toda a região, um artigo no jornal semioficial Al-Ahram chega tão longe como alegar que o conselheiro de segurança nacional do ex-presidente Jimmy Carter, Zbigniew Brzezinski, era “o cérebro por trás do estabelecimento da Al-Qaeda e do Hamas”.
Enquanto Brzezinski defendia armar combatentes mujahidin afegãos no Afeganistão, nunca houve indícios de qualquer contato com Osama bin Laden ou a Al-Qaeda, muito menos de ele ter qualquer relação com o estabelecimento do grupo terrorista. Da mesma forma, embora tenha havido algum contato limitado de alguns funcionários consulares dos EUA nesse período com alguns dos islamitas palestinos que mais tarde formaram o Hamas, não houve apoio dos EUA ao grupo nem qualquer papel dos EUA na sua criação, que tem raízes na Irmandade Muçulmana egípcia.
Além disso, embora seja verdade que houve algum apoio clandestino dos EUA à Irmandade nos anos 1950 e 1960 – décadas depois que o grupo foi originalmente criado – para combater o líder nacionalista egípcio Gamal Abdel Nasser, os Estados Unidos tem estado em firme oposição aos islamistas do país desde que o sucessor de Nasser, Anwar Sadat, mudou o país para um alinhamento pró-ocidental na década de 1970. De fato, os Estados Unidos apoiaram o regime de Mubarak até o momento da revolta de janeiro de 2011 e, para grande frustração de forças pró-democracia, só tardiamente e com relutância, incentivaram os militares a intervir e remover o ditador do mês seguinte.
A vitória apertada de Mohamed Morsi da Irmandade Muçulmana na eleição presidencial de 2012 sobre o candidato apoiado pelos militares foi uma grande decepção para a administração Obama, embora tenha aceitado o fato de que tinha que trabalhar com o Egito e – uma vez que a liderança da Irmandade era dominada por empresários proeminentes – reconheceu que Morsi não iria muito longe contra interesses econômicos e estratégicos dos EUA. Ainda assim, restavam as principais preocupações em relação à liderança de Morsi, e os Estados Unidos acolheram em grande parte o golpe de julho de 2013, apesar de criticar a escala da repressão que se seguiu.
Mubarak e seus aliados militares, mantidos no poder por décadas – em parte devido à assistência econômica e militar anual de US$ 1,7 bilhão dos EUA –, foram vistos por muitos dos principais ativistas seculares pró-democracia como sendo essencialmente fantoches americanos. Embora houvesse um esforço consciente por parte dos organizadores das manifestações de janeiro de 2011 para minimizar a retórica antiamericana nos protestos de modo a não reforçar o apoio dos EUA ao sitiado regime de Mubarak, as críticas estridentes do apoio dos EUA à ditadura que os reprimiu e às políticas econômicas neoliberais que os empobreceram foram evidentes na Praça Tahrir e em todo o país.
Um futuro frágil
Muitos desses ativistas estavam entre os líderes da revolta não-violenta no início do verão passado contra o governo cada vez mais autocrático liderado pela Irmandade Muçulmana, o que levou ao golpe. Como resultado, os esforços para vinculá-los aos islamitas são tão bizarros quanto os esforços para comprometer os Estados Unidos. Ao afirmar que a esquerda secular pró-democrática – que há muito se opõe às políticas de Washington e da Irmandade Muçulmana – está de alguma forma em conluio com os dois para minar a nação, os militares egípcios tentam conseguir duas coisas: apelar ao establishment de política externa em Washington suprimindo ambos os islâmicos e a esquerda, enquanto faz o papel de pseudonacionalista para as massas egípcias.
Ironicamente, assim como a repressão do regime aumentou em janeiro, o Congresso americano aprovou um adicional de US$ 1,5 bilhão em ajuda militar para o Egito. Embora a legislação dos EUA proíba auxílio a qualquer regime que derrube um governo eleito democraticamente por meio de golpe militar, os líderes do Congresso de ambos os partidos inseriram linguagem afirmando que a ajuda poderia fluir “não obstante qualquer disposição da lei que restrinja a assistência ao Egito“.
Os militares egípcios claramente estão em posição superior no momento, mas sua permanência no poder é em última instância frágil. A nova geração de egípcios provavelmente não estará satisfeita com o regime militar mais do que estava com Mubarak ou a Irmandade Muçulmana. Eles reconhecem que é o regime militar, e não eles, que está recebendo o apoio de Washington. E eles, mais do que a maioria das pessoas que vive sob o autoritarismo, conhecem o poder da ação estratégica não-violenta em derrubar um governo repressivo entrincheirado apoiado por estrangeiros.
Stephen Zunes é colunista da Foreign Policy In Focus, professor de Política e coordenador de Estudos do Oriente Médio na Universidade de São Francisco
Esta matéria foi originalmente publicada pela Foreign Policy In Focus