Jornal estatal retrata o colapso social na China

17/09/2014 13:44 Atualizado: 17/09/2014 13:44

Críticos encontrarão confirmação de algumas de suas avaliações mais mordazes sobre o regime chinês numa pesquisa recente feita por… uma mídia porta-voz do Partido Comunista? A pesquisa detalha a falta de confiança e fé do povo chinês na sociedade chinesa, além de vários “estados mentais anormais” que atormentam o povo chinês.

O mais impressionante entre esses foi o 13º ponto: “ódio-próprio”, que foi descrito como aqueles que “atacam o Partido Comunista e odeiam o sistema político, que atacam o sistema mais ferozmente quanto mais se beneficiam dele”.

Para as massas, que são mais propensas a estarem sujeitas ao poder arbitrário do que se beneficiar de privilégios, uma dúzia de outras patologias foi listada. Estas incluíram: “culto do hedonismo”, “mentalidade de espectador”, “desconfiança enraizada”, “mentalidade de avestruz”, “fobia de pensar/questionar”, “dependência da internet”, “ostentar riqueza”, etc.

Os participantes da pesquisa foram convidados a avaliar que questões mais os incomodavam. A “mentalidade de espectador”, que significa a propensão do povo chinês a apenas observar quando outros estão em dificuldades, em vez de ajudar, foi registrada por 48,7% dos entrevistados.

“Ansiedade social”, que significa se preocupar excessivamente com o próprio bem-estar futuro, foi identificada em 44,5% dos entrevistados. E pouco mais de 36% reconheceram gostar de coisas escandalosas mais do que coisas belas, o que foi chamado de “mentalidade de apreciar a feiura” (shenchou xinli).

Falta de fé

Mas entre os problemas mais comuns identificados na pesquisa estava a “falta de fé”, que 55,3% dos entrevistados relataram como o problema número um. “Todos reconhecem que há falta de fé na sociedade chinesa e que veem problemas morais por todos os lados”, disse Yang Fenggang, o diretor do Centro de Religião e Sociedade Chinesa na Universidade Purdue, em entrevista por telefone.

Os autores da pesquisa disseram num ponto que a “sociedade tradicional chinesa era baseada em torno de comunidades locais e que os grupos sociais se organizavam segundo a ênfase na virtude e fé”. Mas, na sociedade moderna, continuou o documento, mais de 88% das pessoas concorda que “a fé é deficiente e a moral está em declínio” e que esta é uma “doença social” comum.

O professor Yang disse que o povo chinês “entende que esta fé deve ser a fé verdadeira que tem o poder de transcendência. Ela não é para o lucro, não é para o interesse imediato e não se trata de idealismo – é simplesmente fé.” Ele atribuiu a falta de fé, como fonte dos fundamentos morais, à limitação da liberdade religiosa na China. “A religião, quando é escolhida livremente pelo povo, dá fé ao crente.”

Talvez o exemplo mais chocante do colapso social e moral da China nos últimos anos ocorreu em 2011, quando a menina Yue Yue de dois anos foi ignorada por 18 transeuntes após ser atropelada por uma van e em seguida por uma caminhonete nas ruas de Foshan, na província de Guangdong. As imagens de pessoas passando pela criança caída sangrando por sete minutos chocou o país.

Reminiscência?

A referência da pesquisa à sociedade tradicional, neste contexto, parece sugestiva. O líder chinês Xi Jinping declarou recentemente numa visita à Universidade Normal de Pequim: “Os textos clássicos deveriam estar gravados nas mentes dos alunos, tornando-se os genes do povo chinês”, segundo o Diário de Jieyang.

Xi Jinping também fez questão de incluir referências a Confúcio e a textos clássicos em seus discursos, e o Diário do Povo publicou páginas especiais explicando seu significado para as massas. “Talvez isso se desdobre numa maior ênfase de Xi Jinping nos valores tradicionais”, disse John Wagner Givens, associado do Centro de Estudos da Ásia e professor-adjunto de Direito da Universidade de Pittsburgh, numa entrevista.

“Mas eu tenho nítida a impressão de que isto seria um retorno aos valores tradicionais como fonte de legitimidade com uma pitada de sal”, acrescentou ele. “Eu fiquei animado com isso cerca de 10 anos atrás, quando eles falaram sobre o ‘xiaokang shehui’, e eu não acho que houve qualquer ganho significante com isso.”

“Xiaokang shehui” é um termo de Confúcio que foi usado pelo ex-líder chinês Hu Jintao para significar uma sociedade “moderadamente próspera”. Mas a disparidade de riqueza na China e suas inumeráveis pressões e problemas sociais continuaram a crescer ao longo do mandato de Hu (2002-2012).

A reversão à autêntica cultura tradicional chinesa, no entanto, pode não ter sido o antídoto que os autores da pesquisa tinham em mente em primeiro lugar, segundo Cheng Xiaonong, o ex-editor da publicação acadêmica Modern China Studies. “Eles querem dizer ‘regime comunista tradicional’, em que todos acreditam no que os líderes dizem e a propaganda pode ser usada para manipular e mobilizar as massas ingênuas”, disse Cheng. “Isso é o que eles querem. Isso é o que Xi Jinping gostaria de ver, mesmo que não seja mais aquela era ou tempo.”

Questões oficiais

Os autores do estudo não hesitaram em atribuir muitos dos problemas à burocracia, de uma forma ou de outra. O fenômeno social amplamente divulgado nos últimos anos, apontado como uma das causas da falta de uma bússola moral, diz respeito ao abuso de poder e impunidade dos funcionários do regime. Isso inclui funcionários que mantêm várias amantes, ostentação de riqueza, escândalos sexuais, corrupção e violência, que têm emergem incessantemente.

Em alguns pontos, o tom pareceu ser diretamente crítico ao próprio regime. “Que grupo tem a maior crise em suas crenças?”, questionava uma das perguntas. Pouco mais de 57% dos participantes online respondeu: funcionários do Partido Comunista.

Os resultados da pesquisa foram publicados no website Tribuna do Povo, que é parte do Diário do Povo, uma mídia porta-voz do Comitê Central do Partido Comunista Chinês. A pesquisa foi realizada pelo “Centro de Estatística e Opinião Pública da Tribuna do Povo”, publicada com uma extensa introdução em seu website, e posteriormente fracionada em versões mais populares que foram espalhadas pelos principais portais web da China.

A pesquisa foi realizada entre 22 de agosto e 2 de setembro deste ano; um total de 8.015 pessoas foram entrevistadas, 70% online e o restando selecionado aleatoriamente e preenchendo os questionários em pessoa. Se a publicação da pesquisa foi feita em conjunto com qualquer campanha política mais ampla ainda não está claro. O professor Yang acha improvável e disse: “Isto é um reflexo dos intelectuais chineses preocupados com os problemas sociais contemporâneos na China.”

Cheng Xiaonong sugeriu que, agora que o líder chinês Xi Jinping fez progressos com sua campanha anticorrupção, ele “recuperou a confiança para seguir em frente”. Ele acrescentou: “Quase todos na China sabem que a base moral do regime do Partido Comunista ruiu, então o regime quer reconstruir a moral, mesmo que seja impossível. Acho que é por isso que eles querem uma pesquisa, e depois disso eles podem tentar iniciar uma campanha de educação política, ideologia política, lealdade política e blá blá blá.”