O Brasil vive um período de transição bastante interessante. Se na década de 1990 surgiram no cenário público algumas vozes dissonantes da cartilha marxista e suas derivações, a partir do ano 2000 despontou uma nova geração livre dos grilhões ideológicos turbinados durante o governo militar (1964-1985).
A ditadura maculou três gerações nas esferas política e cultural: a que estava no auge na época do golpe, a que tentava abrir espaço e a que nascia sob os coturnos. Essas gerações foram atacadas de dois lados: por um regime ditatorial e pela dominação cultural e educacional da esquerda de vários matizes. Nas universidades, no meio artístico, no jornalismo etc., o sujeito que não fosse de esquerda (o que não quer dizer que fosse de direita) era mal visto e rechaçado. Era preciso se posicionar. Do lado deles.
E já que vivemos num período de transição é fundamental que determinadas ideias sejam apresentadas e estudadas. E aqui vai minha dica: Joaquim Nabuco e seu livro Minha formação (1900).
Nabuco teve a sorte de ter um pai que o influenciasse e estimulasse. Seu liberalismo, segundo revela logo no primeiro parágrafo da obra, tinha um fundo hereditário. A herança vinha por obra e graça do senador José Tomás Nabuco de Araújo, político conservador que fez sua passagem para o liberalismo entre 1857 e 1865.
Foi nesse período que José Nabuco arrastou consigo “um grande movimento em sentido contrário, do campo conservador para o liberal, da velha experiência para a nova experimentação, das regras hieráticas de governo para as aspirações ainda informes da democracia”. É a esse pai inspirador que Nabuco dedica outra obra notável, Um estadista no império: Nabuco de Araújo (1896).
Aspecto pouco ou superficialmente tratado nos ensaios sobre Minha formação é não só o liberalismo vigoroso, contundente e empolgado, mas sua transição de liberal mezzo republicano para entusiasta e, por fim, defensor ardoroso da monarquia constitucional liberal. Em ambos os casos, vê-se como o jovem forma o homem sem graves rupturas que levem ao extremismo, desencanto ou exasperação.
As chaves de sistemas e concepções políticas que modelaram a mente de Joaquim Nabuco, por ele chamado de “verdadeiros estados do espírito moderno”, foi-lhes dada pela obra The English Constitution, do economista e jornalista inglês Walter Bagehot (1826-1877), autor de outros ensaios importantes como Lombard Street: A Description of the Money Market, de 1873, e A New Standard of Value, de 1875.
The English Constitution forjou no espírito liberal de Nabuco a ideia de que era não só possível, mas democraticamente justo, a conjugação do liberalismo com o regime monarquista sob a égide do sistema parlamentarista:
“Devo a esse pequeno volume que hoje não será talvez lido por ninguém em nosso país, a minha fixação monárquica inalterável; tirei dele, transformando-a a meu modo, a ferramenta toda com que trabalhei em política, excluindo somente a obra da abolição, cujo stock de ideias teve para mim outra procedência.” (1)
Bagehot, um estilista e retórico sedutor, convenceu Nabuco de que o governo de gabinete, a alma da então moderna Constituição inglesa, era, de fato, superior ao sistema presidencialista por permitir um governo mais direto e mais próximo do povo do que os mecanismos aplicados pelos governos republicanos.
Cabia ao Poder Legislativo, no governo de gabinete descrito por Bagehot, a escolha do Poder Executivo, espécie de comissão, incumbido de pôr em prática as medidas necessárias ao país. E a harmonia entre os poderes era garantida pela possibilidade de o Poder Legislativo mudar a comissão executiva, caso esta não atendesse aos interesses na nação. E para que o Poder Executivo não ficasse à mercê da obediência servil ao legislativo, a comissão tinha o direito de levar os parlamentares até os eleitores, que, por sua vez, poderiam trocá-los.
A tese de Bagehot assimilada por Nabuco é a de que os Poderes Legislativo e Executivo eram unidos pelo governo de gabinete, a principal comissão da Câmara dos Comuns, a única instituição a deter, de fato, o poder. O governo de gabinete se caracterizava pela combinação e fusão dos poderes Executivo e Legislativo, não na absorção de um pelo outro.
Nabuco manteve-se fiel a esse modelo político contra o republicano sistema presidencial, que, segundo ele, enfraquecia o Poder Executivo e diminuía o valor intrínseco do Poder Legislativo. (2)
E a escolha desse sistema é, antes de tudo, a opção pelo liberalismo do tipo inglês, que guarda características importantes que o diferem do liberalismo continental. Uma delas é a tipificação normativa das condutas do indivíduo na sociedade:
“Freeman mostrava no seu pequeno livro O Crescimento da Constituição Inglesa que essa Constituição nunca foi feita; que nunca nas grandes lutas políticas da Inglaterra a voz da nação reclamou novas leis, mas só o melhor cumprimento das leis existentes; que a vida, a alma da lei inglesa foi sempre o procedente…” (3)
A segunda característica é a relação dos ingleses com a lei e com a Justiça:
“… só há um país no mundo em que o juiz é mais forte que os poderosos: é a Inglaterra. O juiz sobreleva à família real, à aristocracia, ao dinheiro, e, o que é mais do que tudo, aos partidos, à imprensa, à opinião; não tem o primeiro lugar no Estado, mas tem-no na sociedade. O cocheiro e o groom sabem que são criados de servir, mas não receiam abusos nem violência da parte de quem os emprega. Apesar de seus séculos de nobreza, das suas residências históricas, da sua riqueza e posição social, o marquês de Salisbury e o duque de Westminster estão certos de que diante do juiz são iguais ao mais humilde de sua criadagem. Esta é, a meu ver, a maior impressão de liberdade que fica da Inglaterra. O sentimento de igualdade de direitos, ou de pessoa, na mais extrema desigualdade de fortuna e condição, é o fundo da dignidade anglo-saxônica.” (4)
Antes um entusiasta do modelo político americano, Nabuco, nas suas memórias escritas aos 51 anos, pretendeu desmontar aquele sistema de forma comparativa: se num grave momento o gabinete inglês tinha o poder de dissolução, os americanos deveriam esperar pacientemente a resolução dos conflitos de opinião entre os poderes Executivo e Legislativo até o término dos mandatos dos representantes eleitos:
“A ideia principal que recebi de Bagehot foi essa da superioridade prática do governo de gabinete inglês sobre o sistema presidencial americano: por outra, que uma monarquia secular, de origens feudais, cercada de tradições e formas aristocráticas, como é a inglesa, podia ser um governo mais direta e imediatamente do povo do que a república.” (5)
A ideia parece sedutora pela aparente facilidade de mudança diante de problemas políticos sérios, mas não encerra o assunto. Nabuco era suficientemente inteligente para não cair numa esparrela dessas:
“Não podia deixar de inclinar-me interiormente à Monarquia a ideia de que o governo mais livre do mundo era um governo monárquico. Ainda assim um estrangeiro inteligente não seria no seu país inabalavelmente monarquista somente porque o governo chegou na Inglaterra a um grau maior de perfeição do que nos Estados Unidos, que tomaram a forma republicana. Desde que não tínhamos no Brasil os elementos históricos que a liberdade inglesa supõe, a não querer ou cometer o maior erro que se pode cometer em política – o de copiar de sociedades diferentes instituições que cresceram –, eu não podia repelir a República no Brasil somente por admirar a Monarquia inglesa de preferência à Constituição americana. Era preciso alguma coisa mais, no que respeita à forma de governo, para eu não me deixar arrastar.” (6)
O interessante é lê-lo aos 21 anos, num texto para o jornal Reforma, aconselhar o imperador brasileiro a visitar os Estados Unidos para lá ver o progresso industrial e moral de uma sociedade amplamente liberal e livre que prescindia da tutela do rei, “um luxo, uma superfetação”. (7)
Nabuco era um monarquista de ideal que julgava a República o melhor governo praticável num dado momento e dadas certas contingências. Independentemente do sistema político que adotara como o melhor, o que interessa em Nabuco é seu inabalável compromisso liberal. O sistema que regia as liberdades era menos importante do que a conquista, garantia e manutenção da liberdade.
A formação política teórica alicerçou o espírito do político eleito deputado em 1878. “Com efeito, quando entro para a Câmara, estou tão inteiramente sob a influência do liberalismo inglês, como se militasse às ordens de Gladstone; esse é em substância o resultado de minha educação política: sou um liberal inglês – com afinidades radicais, mas com aderências whigs – no Parlamento brasileiro; esse modo de definir-me será exato até o fim, porque o liberalismo inglês, gladstoniano, macaulayano, perdurará sempre, será a vassalagem irresgatável do meu temperamento ou sensibilidade política…” (8)
Nascido no Recife em 1849, Nabuco foi expoente de uma linhagem de intelectuais que, no início do século XIX, levada pelo espírito da geração anterior, “consolidou a ideia de que aos homens de letras cabia uma espécie de missão civilizatória”, segundo notou em ensaio introdutório, Leonardo Dantas Silva, da Fundação Joaquim Nabuco. Esses homens de letras eram, entre outros, José Veríssimo, Silvio Romero, Álvares de Azevedo, Machado de Assis.
Nabuco também é autor de O abolicionismo, “um dos textos fundadores da sociologia brasileira”, nas palavras do historiador Evaldo Cabral de Mello, livro que antecipou conceitos depois tornados célebres com Gilberto Freyre, como a existência de uma raça brasileira (embora célebre, o conceito de raça já foi derrubado).
Jornalista, deputado combativo, escritor, diplomata e membro fundador da Academia Brasileira de Letras, Nabuco trabalhava como embaixador em Washington quando morreu em 1910, ainda sorumbático pela queda do império em 1889. Já havia confessado em Minha formação que o espírito político que o moveu durante a vida tinha dado lugar a interesses religiosos e literários.
Perfeitamente explicável: tomou a queda do Império em 1889 como o fim de sua carreira. “A causa monárquica devia ser o meu último contato com a política… O meu espírito adquirira em tudo a aspiração da forma e do repouso definitivo.” (9)
Em vez do lamento improdutivo, Nabuco nos legou uma pequena joia autobiográfica (e a notável biografia do pai) na qual compartilha sua visão liberal da política, da relação do indivíduo com a sociedade e com o poder constituído. Este texto é um pequeno tributo ao intelectual empolgado, vigoroso, combativo e, acima de tudo, apaixonado pela civilização.
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Notas:
(1) NABUCO, Joaquim. Minha formação, Fundação Biblioteca Nacional, p. 3.
(2) Ibid. p. 5.
(3) Ibid. p. 6.
(4) Ibid. p. 28.
(5) Ibid. p. 7.
(6) Ibid. p. 28.
(7) Ibid. p. 8.
(8) Ibid. p. 47.
(9) Ibid. p. 67.
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Bruno Garschagen é colunista do OrdemLivre.org, podcaster do Instituto Mises Brasil e especialista do Instituto Millenium
Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ordem Livre