Huntington, ISIS e o choque de civilizações

16/07/2014 18:09 Atualizado: 16/07/2014 18:26

O avanço dos fundamentalistas do Estado Islâmico no Iraque e no Levante (EIIL) e a recente declaração de um califado em uma região que compreende territórios do Iraque e da Síria trouxeram de volta as preocupações do mundo ocidental com o fantasma do radicalismo islâmico. E de quebra ressuscitou as advertências do teórico das Relações Internacionais, Samuel Huntington, sobre o Choque de Civilizações.

Segundo a teoria proposta por Huntington, havia o iminente risco de um choque entre as oito civilizações, classificadas como Ocidental, Islâmica, Budista Confuciana, Africana, Xintoísta Nipônica, Eslavo-Ortodoxa, Hindu e Latino-Americana, e tal conflito se daria no período pós-Guerra Fria. O conflito entre essas culturas tão distintas seria inevitável por conta das diferenças entre essas civilizações, principalmente no que diz respeitos aos valores particulares de cada uma. Huntington aponta uma divergência particularmente profunda entre a Ocidental e a Islâmica. É nesse contexto que se insere o califado proposto pelo ISIS.

Fazendo a ressalva de que o conflito ideológico ainda persiste, como no caso da Coréia do Norte desafiando os Estados Unidos cabe a reflexão de que mesmo os conflitos ideológicos se dão na esteira de conflitos de ordem moral e cultural.

É claro que o choque de civilizações não se restringe ao mundo Islâmico, ele também acontece em outras esferas. A Ucrânia tenta se livrar das garras da Rússia Eurasiana de Vladimir Putin e se alinhar ao Continente Europeu, a Nigéria se curva cada vez mais as pretensões do jihaddistas do Boko Haram, os governos de esquerda da América Latina abrem mão da democracia em prol de uma união bolivariana comandada por Fidel e Maduro. O choque se dá em varias instâncias.

Quando escreveu o artigo que originou o livro, Huntington bateu de frene com os pressupostos idealistas que pregavam uma sociedade global que superaria todos os seus conflitos e deixaria para trás um passado de guerras e divergências politicas, religiosas e ideológicas por meio da cooperação entre as nações. Edward Said disse que a tese de Hutington era uma versão “reciclada da Guerra Fria”, e John Esposito tentou desacreditar o teórico afirmando que com o fim do conflito entre os dois blocos, haveria quem procurasse por novos demônios. Francis Fukuyama, por exemplo, chegou até a pregar “o fim da história”. Para o teórico nipo-americano, o avanço do comércio, da cooperação internacional e do capitalismo aliados ao fracasso das economias socialistas e dos regimes totalitários levaria o mundo a um período de paz e integração baseadas nas noções do neoliberalismo. A verdade é que embora seja acusado de proclamar a superioridade ocidental, Samuel Hutington soube como poucos, reconhecer e defender o legado dessa civilização para a humanidade. Se os idealistas e liberais levassem a sério a obra de gente como Aleksander Dugin e Eduardo Galeano, saberiam que sempre haverá quem despreze os valores culturais do Ocidente. Como diria certo músico brasileiro: “Sabe de nada inocente”!

É evidente que em um mundo tão plural existem profundas diferenças de civilização e de valores entre os povos. A Religião, a Politica e as Ideologias diversas são pensamentos universalistas e como tal se opõe ao que é diferente. No caso de minorias como os jihaddistas e eurasianos, a intolerância contra o pensamento divergente chega a níveis extremos como a tentativa de dominação e não aceitação da existência do outro.

As pretensões do ISIS reforçam a tese de Huntington. O califado desejado pelo grupo e exposto na mídia recentemente mostra um território que não se limita ao mundo árabe: ele vai até o Mediterrâneo, englobando Roma, o centro do cristianismo e provavelmente o resto do mundo. E não para por ai: Abu Bakr al-Bagdadi, o recém-aclamado “califa” apareceu pela primeira vez em publico no dia 5 conclamando os militantes a prestarem lealdade e total obediência na luta contra o lixo ocidental, seus pecados e as democracia. O líder disse “Se Deus quiser, vamos tomar Roma e o mundo inteiro”. A prova que alguns analistas liberais e idealistas queriam de que o choque envolve a diferença de valores das civilizações esta aí.

O que difere o califado do ISIS das outras agendas jihaddistas é justamente o alcance de suas pretensões e o fato de serem mais radicais do que todos os outros grupos. Começaram a agir como uma espécie de filial da Al-Qaeda e foram depois expulsos da organização. É isso mesmo: os rebeldes que hoje conquistam o Iraque desocupado pelos americanos são considerados extremistas pela Al-Qaeda. E não é só isso: a interpretação da sharia proposta pelo grupo consegue não só alarmar o Ocidente como desperta profundas divergências entre o mundo muçulmano.

Segundo a tradição, o califado é a única forma de governo legitimamente reconhecida pelo “Al Corão” e representa a unidade do mundo islâmico. O califa se trata por tanto de um sucessor da autoridade política e religiosa do profeta Maomé, de acordo com a Enciclopédia do Islã e Mundo Mulçumano.

Embora se diferenciem dos ocidentais pelo pouco apreço a democracia e ao Estado de Direito, e ainda que se julguem moralmente superiores; o povo árabe sofre das mesmas idiossincrasias comuns a todos os homens. Assim como o militante comunista que sempre se vê em uma posição de destaque em uma eventual vitória da Revolução e nunca como uma formiga operaria, cada vertente islâmica também reivindica para si o papel de legítima representante do Islã e sucessora da autoridade exercida por Maomé. Sendo assim os xiitas consideram que o califa deve ser proveniente da família Ahl al-Bayt, a família de Maomé. Os sunitas por outro lado entendem que deve ser eleito dentre os membros da tribo dos Quraysh.

O que está sendo levado a cabo no Iraque e na Síria pode ser tecnicamente inviável se considerarmos as diversas forças politicas envolvidas. É quase certo que tanto Irã, Síria e Turquia quanto os países ocidentais, mais a Rússia e a China vão frear o grupo. Ocorre que a dor de cabeça que darão ao mundo é simplesmente algo fora de controle. Sabe-se, por exemplo, que vários europeus convertidos ao islamismo estão colaborando com o ISIS. Esse contingente de homens pode facilmente ser utilizado como massa de manobra em eventuais ataques terroristas ao Ocidente, além de atuarem como agentes nos territórios reivindicados pelo califado.

Por outro lado é justamente esse evento que promove alianças improváveis, como uma possível ação militar conjunta entre Irã e Estados Unidos, ou a ação conjunta de países como Israel, Síria, Iraque, Arábia Saudita, Turquia e Síria contra os grupos rebeldes. Pelo visto a ocasião faz o ladrão e o aliado, e tudo isso é culpa da cegueira pacifista que acometeu os Estados Unidos por conta da Guerra do Iraque. Os republicanos de George Bush, sempre pessimistas e adeptos de uma visão realista das Relações Internacionais, entendiam que a ocupação no Iraque deveria durar até pelo menos, que a neutralização dos grupos fundamentalistas fosse concluída. Os democratas de Obama e da imprensa mainstream por outro lado, acreditavam piamente em “outro mundo possível”. Tanto que o presidente anunciou a desocupação do Iraque como uma das grandes realizações de seu governo.

Possivelmente, depois de entregar o comando militar do Iraque para as autoridades locais, os EUA serão obrigados a voltar para a região junto a um dos países que mais contesta: o Irã dos Aiatolás. Se os críticos liberais e da esquerda diziam que os Estados Unidos saíram humilhados do Iraque, é porque não imaginavam que as tropas americanas passariam pelo vexame de ter que voltar para corrigir um trabalho malfeito. Huntington tinha mesmo razão.

O Reacionário

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