Era uma tarde de quinta-feira quando conheci Luiz Claudio. Confesso que já havia o visto outras vezes na região, mas como sempre ocupada e na correria do dia-a-dia nunca parei para conhecê-lo de fato. Mas dessa vez, resolvi parar. A calçada onde costuma estar fica em frente a uma famosa rede varejista, em uma avenida da Zona Norte do Rio de Janeiro conhecida pelo grande fluxo de pessoas que caminham em busca do comércio local. Mas apesar da multidão que o circulava, na maioria das vezes o rapaz passava despercebido aos olhos desatentos.
Me aproximo dele com o intuito de olhar os belos desenhos espalhados ao seu redor. São pinturas de personalidades e desenhos em quadrinhos colocadas cuidadosamente na calçada, como em uma exposição ao ar livre. Se tivessem molduras, certamente, diria que foram feitas por algum artista treinado em uma escola de arte de referência, com os melhores materiais e professores a sua disposição. Mas não, esta não é a história do jovem rapaz que pude ter o prazer de conhecer.
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Luiz Claudio tem 26 anos e “mora” na Rua Dias da Cruz, no bairro do Méier. Começou a desenhar com 12 anos de idade. Saiu de casa aos oito e nunca mais voltou, e assim, já se vão 15 anos morando na rua. Pergunto o que fez ele abandonar a sua casa.
“Então, eu morava com meu pai e minha madrasta. Sabe, ele queria realmente me criar, mas minha madrasta era muito ruim. Ele saía pra trabalhar e ela me acorrentava e me batia. Um dia, meu pai descobriu e deu uma surra nela. Sabia que dali pra frente só ia piorar. Fui morar na casa da minha mãe, mas lá encontrei meu padrasto e ele disse: ‘Pode ir tirando o cavalinho da chuva, você não é filho meu’. Aí pensei: na casa do meu pai não dá, nem da minha mãe… Tive que ir pra rua.”
Apesar das revelações tristes, ele vai me contando a sua história sempre sorrindo e brincando com as situações que viveu. Percebo que a realidade dura em que vive ainda não conseguiu endurecer o espírito do rapaz descontraído e bem-humorado com quem converso.
Luiz passou por muitos lugares da cidade, mas foi na Zona Sul que viu o talento pela arte aflorar. Ele conta que, quando menino, circulava pela Feira Hippie de Ipanema e gostava de ficar observando os quadros expostos para venda. Na maioria das vezes, era expulso por algum transeunte, mas não desistia. Queria aprender a fazer aqueles quadros bonitos que contemplava diariamente.
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Apesar de não receber a mesma atenção dada aos turistas e moradores que frequentavam a feira, talvez fosse ele um dos maiores admiradores das obras. Talvez se falasse algum outro idioma seria menos invisível aos olhos das pessoas. Mas Luiz não teve a oportunidade de questionar os “talvez” que a vida poderia ter lhe proporcionado. Era apenas mais um menino morador de rua que circulava no Rio de janeiro. A Cidade Maravilhosa tem a vocação de acolher apenas os que a visitam dia sim e dia também. Um menino como Luiz, não. Passava desapercebido.
“Eu pedia muito na rua e não gostava disso. Um dia, eu coloquei na minha cabeça que ia aprender a fazer alguma coisa pra ganhar um trocado, porque não curto fazer essas paradas erradas. Peguei um desenho de uma revista velha, consegui uns papéis em branco e um lápis com um tiozão e fiquei desenhando. Uma hora ou outra eu ia aprender. De vez em quando aparecia um livro no lixo ensinando a desenhar. O pessoal foi comprando e eu fui melhorando. Mas tive que aprender sozinho.”
O rapaz conta que já enfrentou vários problemas, inclusive agressões e ofensas. Momentos em que foi acordado por chutes sendo acusado de delitos que não cometeu ainda povoam a sua memória. Mas faz questão de dizer, com um sorriso no rosto, que às vezes “passa batido”. Sorrindo como quem tenta minimizar algo que não pode ser minimizado. Pergunto sobre as agressões que sofrera.
“Pô, é tanta coisa. Acho que já superei tudo. Tudo não, a gente nunca pode dizer tudo. No começo, você tem medo de tudo, de dormir, de comer, de mijar… Hoje, tenho medo da covardia. Outro dia parou um carro e desceram quatro caras segurando pedaços de madeira. Eles estavam vindo pra cima de mim pra me bater. Aí um deles falou: ‘Esse não, ele já desenhou minha mãe!’”
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A resposta me causa um frio na barriga, talvez por eu nunca ter conhecido essa realidade tão de perto. Penso em tudo o que ele deve ter passado vivendo nessas condições. Frio, fome, solidão, dor. E pensando em tudo isto, pergunto o que é mais difícil de se enfrentar sendo um morador de rua. A resposta surpreende.
“A ignorância das pessoas. Algumas pessoas são muito ignorantes, te julgam pela sua aparência. Fogem só de te ver na rua. Isso me deixa triste. É muito ruim ser julgado assim.”
Os minutos vão passando e, apesar da conversa interessante que estávamos tento, percebo que preciso ir. Antes de me despedir, Luiz me mostra um texto que fez durante a virada do ano. Contou que a região, comumente movimentada, estava deserta.
“Tão vazia como o meu estômago nesse dia. Foi todo mundo para Copacabana”. Foram as palavras que ele usou. No entanto, Luiz Claudio, surpreendente do jeito que é, mais uma vez me mostrou que o essencial muitas vezes é invisível aos nossos olhos.
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Em seu texto, escrito em 31 de dezembro numa triste avenida vazia, na solidão da calçada, acompanhado apenas pela fome e pelo frio, Luiz Claudio escreveu sobre esperança. Esperança.
Quando estava de saída, uma senhora que ouvia a conversa, moradora da região, me parou e me pediu algo como quem pede socorro: “Ajuda ele, por favor! Ele é um bom garoto, só precisa de ajuda”.
O sentimento de impotência me paralisou por alguns instantes. Fui embora com a sensação de ter levado um pouco da história de vida desse rapaz e muito do que ele tem a ensinar. Se também somos constituídos por um conjunto de referências, hoje Luiz Claudio é uma das minhas. Referência de força, de esperança e de talento.
Enquanto estudante de jornalismo, já tento, através das palavras, contribuir de alguma forma para o mundo. E pensando assim, deixo o texto do Luiz aqui (vide fotogaleria acima), para, quem sabe, ajudá-lo a ser menos invisível.