Há regularidades nas sociedades humanas. Caso contrário, ninguém seria capaz de tratar da própria vida nem satisfazer suas mais elementares necessidades, e os esforços cooperativos se tornariam muito difíceis, talvez mesmo impossíveis. Essas regularidades formam uma ordem social. Mas qual é a natureza de tal ordem? Seriam elas naturais ou artificiais? Para Hayek, nem uma coisa, nem outra: as ordens sociais resultam da ação humana, mas não da intenção humana. As ordens sociais são, exatamente por isso, espontâneas.
Ordem e caos
O conceito de ordem espontânea é um ponto central da teoria política hayekiana. Nada obstante, é também um dos pontos menos compreendidos, e fonte de repetidos mal-entendidos sobre a contribuição de Hayek. Frequentemente se supõe, erroneamente, que uma ordem espontânea seja o império do caos, ou o estado de anarquia generalizada. Essas concepções são, contudo, equivocadas. Especificamente, Hayek considera ‘ordem’ “uma condição em que múltiplos elementos de vários tipos se encontram de tal maneira relacionados entre si que, a partir de nosso contato com uma parte espacial ou temporal do todo, podemos aprender a formar expectativas corretas com relação ao restante ou, pelo menos, expectativas que tenham probabilidade de se revelar corretas” (p. 36, grifo no original).
Convém enfatizar os termos “elementos” e “expectativas”. Embora a ordem social não seja fruto da intenção deliberada, nem de uma mente pensante, nem de uma autoridade política, ela se constitui de propriedades (ou elementos) que garantem ao homem os fundamentos para coordenar seus planos e ações na sociedade. A própria ideia de ordem, afirmará Hayek, pressupõe “coerência e constância” que permitem ao homem, por meio do uso de sua inteligência, agir no mundo.
A vida social se define pelos modos por meio dos quais o homem coopera com seus semelhantes. Essa cooperação é possível porque há “uma correspondência entre as intenções e as expectativas que determinam as ações de diferentes indivíduos” (p. 37) em sociedade. A correspondência entre as intenções e expectativas dos diferentes indivíduos é o que permite que a ordem se manifeste na vida social. Se a ordem não tivesse essa característica estruturante, a ação humana seria totalmente desordenada e a humanidade sucumbiria.
Taxis e Kosmos
Na sua investigação sobre a origem e as características das diversas ordens existentes no mundo, Hayek distingue dois tipos de ordem. O primeiro tipo são as ordens exógenas, isto é, que surgem por causa de um poder ordenador e externo. A estas, Hayek dá o nome de “ordens feitas”. Exemplos de ordens feitas incluem as firmas e partidos políticos, além de formas de organização tais como a disposição dos soldados de um exército durante uma batalha. Nessas ordens, a disposição dos elementos é dada a partir de uma decisão, ou de um desenho. Por isso, as ordens feitas também podem ser chamadas de dirigidas ou de artificiais.
O segundo tipo são as ordens endógenas. Estas se formam como acomodação (ou equilíbrio) das forças internas. O mercado e a formação dos preços em mercado seriam exemplos típicos desse tipo de ordem autogeradora. Embora surja da ação humana, essas ordens não surgem da intenção humana de demarcar especificamente o todo em que se põem as relações sociais. Ordens como o mercado são, assim, espontâneas, não no sentido de que independam da ação humana, mas sim no sentido de que evoluem a partir de ações humanas que, interagindo e influenciando-se reciprocamente, determinam a situação de equilíbrio de forças.
Hayek nota que os gregos tinham duas palavras distintas para designar esses dois tipos de ordens. A ordens feitas, davam o nome de taxis. A ordens que evoluem espontaneamente, davam o nome de kosmos. Taxis e kosmos distinguem-se, então, com relação a três aspectos. Quanto à complexidade, as ordens feitas são mais simples e as ordens espontâneas mais intrincadas. Quanto à natureza das relações envolvidas, nas ordens feitas predominam os elementos concretos que podem ser facilmente observados, enquanto nas ordens espontâneas predominam as relações puramente abstratas e que podem apenas ser reconstruídas mentalmente (mas não simplesmente observadas). Finalmente, quanto à sua teleologia, apenas as ordens feitas são finalísticas, enquanto as ordens espontâneas não surgem para atender a um propósito específico.
Ordens feitas e ordens espontâneas convivem; não se excluem. Dentro das ordens espontâneas, tais quais as sociedades humanas, existem ordens feitas. É que a colaboração humana possui dois canais principais: as relações diversas que surgem em meio à ordem espontânea (kosmos) e as que surgem em meio às organizações (taxis). As organizações são todas as instituições criadas pelo homem para atender um propósito específico. Indivíduos e organizações estão, então, integrados numa ordem espontânea abrangente.
Embora não sejam planejadas, as ordens espontâneas podem ser extremamente úteis para os indivíduos que se relacionam no seu âmbito e que empreendem ações propositadas. A própria economia de mercado, o grande exemplo de ordem espontânea, não foi criada e nem sequer existe para cumprir um determinado propósito; ainda assim, ela é de extrema utilidade para que os homens concretizem seus objetivos. É por isso que as ações desses indivíduos exercem determinadas funções cujo sentido último é justamente o de assegurar a preservação ou a restauração dessa ordem que lhes é benéfica.
Quando se reconhece que a complexidade das estruturas sociais resulta de um processo evolutivo complexo, se admite também que este processo e suas consequências se estendem para além da capacidade de compreensão pela mente humana. Nosso conhecimento se limita, por isso, a depreender o caráter geral da ordem espontaneamente constituída. E mesmo nas circunstâncias em que estamos em condições de alterar algumas das normas de conduta seguidas por alguns indivíduos, será possível apenas influenciar o caráter geral — mas não o detalhamento — da ordem resultante.
Seria então defeso aos homens controlarem a conformação da ordem social? Para lidar com esta questão, Hayek recorre a algumas analogias com o mundo físico. No mundo físico há ordens espontâneas complexas, isto é, ordens que jamais poderiam surgir por meio de uma criação deliberada que buscasse posicionar cada elemento em determinado lugar específico a fim de produzir uma determinada ordem final. Para ilustrar o ponto, Hayek utiliza o exemplo da limalha de ferro posta sobre uma folha de papel. Ao colocar um ímã sob a folha, a limalha de ferro se moverá segundo a relação da força física que o ímã atrai. Nesse caso, é possível prever o movimento geral da limalha após o movimento do ímã. Contudo, não se poderá determinar os aspectos particulares do movimento de cada partícula.
Isso sugere que seja permitido ao homem criar condições nas quais os componentes da ordem possam se relacionar e, respeitando alguma lei geral da física, produzir tal ordem complexa. Ainda assim, há limites muito claros nos quais essa atividade ordenadora pode ocorrer. O caráter final da relação da limalha com a atração do ímã dependerá de inúmeras circunstâncias inapreensíveis pela mente humana, dentre as quais estão a posição, direção, aspereza ou lisura de uma partícula de ferro e de todas as irregularidades da superfície do papel. Da mesma forma, nas ordens sociais, somente somos capazes de influenciar o caráter geral, mas não os detalhes da ordem resultante.
Por isso, uma ordem espontânea “será sempre uma adaptação a um grande número de fatos particulares que ninguém conhecerá em sua totalidade” (p. 42). Determinando alguns dos fatores que as conformam, podemos “fixar suas linhas abstratas, mas seremos obrigados a abandonar os pormenores a circunstâncias que desconhecemos” (p. 43).
Assim sendo, confiar na existência de uma ordem espontânea a um só tempo limita e amplia os poderes humanos de controlar a conformação da ordem social. Por um lado, o reconhecimento da finitude dos poderes da mente humana ante o caráter geral, abstrato e complexo da ordem social espontânea desde logo apresenta barreiras evidentes ao poder ordenador humano. Essas barreiras levam ao reconhecimento de que “qualquer desejo que possamos ter quanto à posição específica de elementos individuais, ou a relação entre indivíduos ou grupos específicos, não poderia ser satisfeito sem se perturbar a ordem social” (p. 44). Por outro lado, a compreensão de que a ordem social é um kosmos permite ao homem, em alguns casos (tais quais o da limalha de ferro que se atrai ao ímã) a realização de interferências pontuais que visem criar condições para o surgimento de conformações cujas características gerais são desejadas.
Ordem e normas
Numa ordem social há certas regularidades no comportamento dos agentes. Em boa parte, isso se dá porque os agentes se pautam por determinadas normas. Contudo, as normas que regem o comportamento dos agentes da ordem espontânea frequentemente não são conhecidas por esses agentes. Ao contrário, basta que os agentes se comportem de uma maneira que possa ser definida pelas normas. Isso é possível porque, para que surja a regularidade que é típica de uma ordem espontânea, as normas não precisam estar plenamente verbalizadas. É preciso apenas que seja possível descobrir quais normas constituem a regularidade da ação que possibilitou a emergência, preservação e desenvolvimento desta ordem social. [1]
Prossegue Hayek: se nem todas as normas são verbalizáveis, é claro que nem todos os indivíduos conhecerão todas as normas. De fato, cada indivíduo obedecerá às normas que conhece, e somente essas. O ponto de Hayek, então, é o de que a ordem espontânea será formada justamente porque todas essas normas obedecidas por todos de alguma forma criam um estado de equilíbrio. Esse equilíbrio, contudo, é mutante, porque responde constantemente ao aparecimento de novas circunstâncias, conhecidas em sua totalidade pelo conjunto dos membros da sociedade, mas por nenhum deles individualmente.
Dado esse quadro de relativa diversidade, surge então a questão do nível de coesão mínimo para o surgimento de uma ordem global. Para Hayek, “para a formação de uma ordem global é preciso que, sob alguns aspectos, todos os indivíduos sigam normas inequívocas, ou que suas ações se limitem a certo âmbito” (p. 46). Daí por que a ordem global necessite de uma semelhança mínima no nível abstrato das normas conhecidas por cada indivíduo. Essa semelhança mínima ora surge por causa da semelhança dos ambientes em que vivem os indivíduos, ora por causa da herança cultural comum, ora por causa da existência de mecanismos de coação mediante a utilização de normas jurídicas.
A menção a normas jurídicas remete ao papel da organização com papel mais destacado na sociedade: o governo. Para Hayek, cabe ao governo o exercício de duas importantes funções. A primeira função é justamente a de agir coercitivamente para fazer cumprir normas de conduta que preservem a ordem. Nesse sentido, Hayek compara o governo a uma equipe de manutenção numa fábrica, atuando apenas para garantir seu funcionamento e autonomia. A segunda função é a de administrar o orçamento e prestar os serviços que não seriam prestados na ordem espontânea. Nesse caso, em vez de preservar a ordem da sociedade, o governo atua como uma organização qualquer.
Neste ponto, como se vê, Hayek abre espaço para uma atuação do governo que vá para além da função de “vigia noturno”, o que, naturalmente, não passou sem uma boa dose de críticas de seus comentadores e adversários, inclusive entre os liberais. Por exemplo, o germano-americano Hans-Hermann Hoppe criticou esta posição de Hayek porque ela permitiria que se desse um “cheque em branco” ao governo, já que “em todas as épocas há um infinito número de bens e serviços que o mercado não fornece” (1994, p. 68). [2] O contra-argumento hayekiano é o de que o princípio da liberdade individual e da ordem espontânea fornecem sólidos impedimentos para a justificação da intervenção ilimitada do governo. A autorização à atuação do governo na provisão de bens e serviços seria, por isso, bem menos do que um cheque em branco.
Limites à criação de organizações
Vimos que há dois tipos de ordem, e que em cada uma delas os elementos seguem normas. Há, contudo, diferenças entre as normas organizacionais e as normas das ordens espontâneas. A primeira categoria — normas organizacionais — compreende normas que visam à execução de tarefas específicas. Tais são as normas que regem empresas, sindicatos, universidades etc. e, por isso, também têm um caráter particularista, já que voltadas à consecução de um propósito específico, concreto e intencional. Já a segunda categoria — normas das ordens espontâneas — compreende principalmente normas abstratas e gerais. São abstratas porque não servem a propósitos específicos. São gerais porque se aplicam para todos, no sentido de que todos os indivíduos e organizações que compõem a ordem espontânea devem obedecê-las. A lei de uma sociedade livre deve ser baseada em normas desse segundo tipo. Conforme Hayek, “as normas gerais de direito sobre as quais a ordem espontânea se funda visam a uma ordem abstrata, cujo conteúdo particular ou concreto não é conhecido ou previsto por ninguém; ao passo que as determinações, bem como as normas que regem uma organização, servem a resultados particulares visados por seus dirigentes” (p. 52). A identificação de dois tipos relativamente estanques de normas é importante para ressaltar um ponto contraintuitivo: embora a ordem espontânea e a organização devam coexistir, não é possível combiná-las a nosso bel-prazer. Por isso, o peso relativo da organização governamental na sociedade não é um mero ato de vontade, já que há outros fatores limitando a possibilidade de escolha e combinação num kosmos que se forma espontaneamente.
Hayek salienta que a estrutura da sociedade moderna jamais dependeu da organização propositada ou intencional, mas se desenvolveu como uma ordem espontânea. Sugerir que ante a complexidade da sociedade moderna o homem deva recorrer ao planejamento e à regulação deliberada desta ordem é, portanto, paradoxal, porque a intenção de combinar os dois tipos de ordem ou de substituir a ordem espontânea pela ordem feita é irracional e contraproducente. Como já visto, é impossível conhecer todos os dados particulares da realidade a fim de atingir determinado resultado por meio da criação ou manipulação de leis e instituições.
Tal sugestão revela incompreensão das verdadeiras fontes do surgimento e preservação desta estrutura social. É pela impossibilidade prática de atingir resultados específicos que a intervenção do Estado na economia torna-se frequentemente um contrassenso. Aqui reside, como se vê, um dos principais argumentos de Hayek contra a intervenção do Estado na ordem de mercado.
Uma ressalva: diante do quadro acima apresentado, poder-se-ia concluir que Hayek nega a existência de espaço prescritivo para o homem indicar mudanças ou aperfeiçoamento da sociedade. Mas essa conclusão, embora comum entre seus críticos, não é verdadeira. Contrariamente, Hayek (p. 53) afirma haver dois planos eficazes para o homem fazer indicações de mudança social. Primeiro, por meio do aprimoramento das normas abstratas sobre as quais a ordem espontânea se fundamenta; e, segundo, por meio do esforço das organizações que constituem uma ordem espontânea. Aqui emerge um Hayek poucas vezes reconhecido: um autor liberal que evidencia a relevância da ordem espontânea, mas nem por isso rejeita a possibilidade de aperfeiçoamento da ordem por meio de certos mecanismos de desenho institucional.
Direito e liberdade e a confusão entre os modernos
O uso arbitrário do conceito de normas — sem levar em conta a distinção entre normas de ordem espontânea e normas organizacionais — conduziu alguns pensadores a cometerem um grave erro na compreensão das relações entre direito e liberdade. Tem-se, por um lado, o grupo de pensadores que vai dos gregos antigos até os pais fundadores (founding fathers) americanos. Esses reconheciam que direito e liberdade são conceitos inseparáveis, pois compreendiam que as normas abstratas constituíam a fonte do direito. Por outro lado, um grupo de influentes pensadores modernos, dentre os quais Hobbes, Bentham e os positivistas jurídicos, tomavam as normas organizacionais como fonte do direito. Desse pressuposto, concluíram que o direito implicava necessariamente alguma forma de violação ou redução da liberdade. Discutiremos esse ponto em mais detalhes numa resenha futura, mas convém adiantar que esses dois grupos usaram a palavra direito em sentidos diferentes.
Considerações finais
Hayek acredita que a estrutura da sociedade moderna e seu elevado grau de complexidade só foram possíveis graças à observação de normas abstratas que geraram a grande ordem espontânea da civilização. Pretender planejar os resultados dessa ordem não apenas é humanamente impossível, mas leva a humanidade a incorrer em restrições sistemáticas da liberdade e a limitar o seu próprio potencial de desenvolvimento. Essa é a mensagem essencial da teoria política de Hayek, e o cerne da sua crítica ao que lhe parecem ser tanto o socialismo radical — comunismo — quanto o nacional-socialismo — fascismo.
Em última instância, seu entendimento da ordem social ressalta a existência de sérios limites a possibilidades de sucesso do intervencionismo estatal. Alerta também para os perigos da pretensão racionalista de querer moldar a ordem social de acordo com a vontade do planejador iluminado. Para Hayek, a ordem espontânea não consiste num mero padrão normativo para guiar a consecução de políticas públicas; ela é a própria realidade da ordem social. Respeitar os elementos e propriedades dessa realidade é a primeira advertência de Hayek a todos aqueles que estejam engajados no estudo da sociedade, ou que objetivam interferir nela visando o seu desenvolvimento.
Resenha do “Capítulo 2”. In: HAYEK, Friedrich A. Direito, Legislação e Liberdade, vol. 1. São Paulo: Visão, 1985.
____________________
Notas:
[1] As normas sociais, por este motivo, não são necessariamente cognoscíveis no sentido dado ao conhecimento pelo racionalismo construtivista. Sobre o tema, vide o texto intitulado “Razão e evolução: a epistemologia da ordem liberal”.
[2] Hoppe, Hans-Hermann. F. A. Hayek on Government and Social Evolution: a critique. The Review of Austrian Economics. Vol. 7, n. 1. 1994; pp. 67-93.
____________________
Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ordem Livre