Hamas e Hezbollah concordam em discordar sobre a Síria

13/02/2014 16:19 Atualizado: 13/02/2014 16:19

Nascidos de uma luta comum contra Israel e financiados por benfeitores comuns na Síria e no Irã, o Hamas sunita e o Hezbollah xiita têm sido aliados naturais, apesar de suas diferenças sectárias. Desde o início de 1990, quando Israel exilou a liderança do Hamas no Líbano, os dois grupos têm cultivado uma aliança que tem moldado o equilíbrio do poder no Oriente Médio por décadas.

Mas a crise na Síria rompeu o velho “eixo de resistência”, com forças regionais dando as duas organizações participações opostas no conflito e gerando tensão sem precedentes no relacionamento. Enquanto combatentes do Hezbollah lutaram e morreram por Bashar al-Assad em algumas das mais ferozes batalhas da guerra civil, o Hamas posicionou-se com os rebeldes e recuou mais profundamente nos abraços dos poderes islâmicos sunitas da região.

Por um tempo, parecia que a parceria poderia estar acabada, com o Hamas convocando o Hezbollah a se desvincular da Síria e o Hezbollah acusando o Hamas de canalizar armas e tecnologia para os jihadistas sunitas. No entanto, os dois grupos parecem ter olhado além da guerra civil da Síria e calculado que mais será perdido do que ganho num divórcio total. Apesar de explosões de retórica inflamada, o Hamas e o Hezbollah aparentemente concordaram em discordar sobre a Síria, mantendo uma parceria estratégica contra Israel.

Pés no fogo

Cautelosos para não se alienarem de seus patronos ou das ruas árabes, o Hamas e o Hezbollah cautelosamente evitaram tomar qualquer posição forte nos primeiros estágios do conflito sírio em 2011. Mas, mesmo assim, havia indícios de que sua neutralidade estudada não poderia durar. Por exemplo, como o Hamas, o Hezbollah pediu ao regime de Damasco que dialogasse com a oposição. Mas, ao contrário do Hamas, o Hezbollah logo rescindiu esta sugestão, provavelmente sob a pressão de Teerã.

Enquanto potências internacionais cada vez mais se alinhavam atrás de seus intermediários na Síria, o Hamas e o Hezbollah também foram pressionados a definir suas atitudes em relação ao conflito.

Em dezembro de 2011, o Hamas fez um movimento ousado para transferir seu escritório político da Síria – onde ele se baseou desde 1999 – para o Qatar, um patrocinador principal dos rebeldes sírios, e para o Egito pós-Mubarak, onde a Irmandade Muçulmana parecia ascendente. “Apoiamos o regime sírio enquanto ele lutava contra o inimigo israelense”, disse Ghazi Hamad, o vice-ministro das Relações Exteriores do Hamas, “mas quando ele oprimiu o seu povo nós decidimos nos separar dele, apesar do fato disso ser considerado uma grande perda para o Hamas.” Embora o grupo tenha tentado projetar um verniz de neutralidade depois de deixar Damasco, os líderes de alto escalão pareciam vacilantes. Em fevereiro de 2012, o primeiro-ministro do Hamas, Ismail Haniyeh, proferiu um discurso emocionado na Mesquita al-Azhar, no Cairo, onde elogiou “o heroico povo da Síria que luta pela liberdade, democracia e reforma” e que brada devotamente: “Nem Hezbollah nem Irã.”

O Hezbollah, procurando evitar uma ruptura pública com o Hamas, recusou-se a condenar a decisão do grupo de deixar a Síria e emitiu uma ordem interna impedindo os porta-vozes do Hezbollah de criticarem seus homólogos palestinos. Mas o Hezbollah caracterizou cada vez mais o levante sírio como uma conspiração estrangeira orquestrada para enfraquecer a resistência a Israel.

Hassan Nasrallah, o secretário-geral do Hezbollah, foi rápido em lembrar os palestinos que na guerra Israel-Hezbollah de 2006 e na Operação Chumbo Fundido em Gaza (2008-2009), a Síria forneceu armas a ambas as organizações como nenhum outro Estado árabe. Ele passou então a zombar os Estados do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), conclamando-os a enviar armas para Gaza. O objetivo final de Nasrallah era destacar a neutralidade de facto das monarquias do Golfo no conflito árabe-israelense, desafiando as credenciais pan-arabistas de Doha e Riad.

Apesar destes apelos à solidariedade, a tensão Hamas-Hezbollah sobre a Síria se agravou ao longo de 2012 e 2013. Na primavera de 2013, o Hezbollah enviou seus caças para a Síria para desalojar os rebeldes de Qusayr, uma cidade estrategicamente vital ao longo da fronteira sírio-libanesa, que estava sob o controle dos rebeldes desde julho de 2012. Após 17 dias de combates violentos, os rebeldes foram finalmente expulsos da cidade, uma vitória em grande parte atribuída à intervenção direta do Hezbollah. Em resposta, um líder do Hamas baseado no Egito pediu publicamente ao Hezbollah “para retirar suas forças da Síria e manter suas armas dirigidas contra o inimigo sionista”.

Por sua vez, fontes do Hezbollah afirmaram que agentes do Hamas haviam auxiliado jihadistas sunitas em Qusayr depois de descobrir túneis cavados com dispositivos iranianos que o Hezbollah havia transferido para o Hamas para uso em Gaza. Esta foi uma acusação particularmente severa, já que o Hezbollah informou a perda de muitos soldados nos túneis cheios de armadilhas durante o cerco. Autoridades do Hamas negaram continuamente estas reivindicações, mas outros rumores persistiram, incluindo que membros do Hamas lutaram contra o regime sírio no campo de refugiados palestinos de Yarmouk em Damasco.

Reaproximação?

Com as tensões vindo à tona, as autoridades do Hamas e do Hezbollah se reuniram em Beirute no verão passado na tentativa de restaurar o relacionamento. Desde então, os porta-vozes de cada grupo têm tido o cuidado de insistir em seu acordo que discorda sobre a Síria, mas que visa a continuar sua cooperação em outras frentes.

De Beirute, alguns representantes do Hamas teriam seguido para o Irã, que teria cortado seu apoio ao Hamas após o grupo ter fugido da Síria. Este desenvolvimento alarmou particularmente os membros da ala militar do Hamas, que é fortemente dependente das armas que recebe de Teerã. Refletindo divisões no Hamas sobre como abordar o conflito sírio, o comandante militar do Hamas, Marwan Issa, teria pedido ao líder político Khaled Mashal que conservasse uma linha aberta para o Irã, um apelo que foi apoiado pelo cofundador do Hamas, Mahmoud al-Zahar.

Enquanto negociadores trabalharam para reconstruir os laços, eventos regionais reformulam o campo. Enquanto a guerra na Síria se arrasta e facções rebeldes rivais se voltam umas contra as outras, um golpe militar abalou o Egito, expulsando o governo eleito da Irmandade Muçulmana, restaurando os militares seculares ao poder e lacrando novamente a fronteira entre Gaza e Egito. Foi-se o sonho do Hamas de um novo equilíbrio de poder regional com franquias da Irmandade Muçulmana retendo o poder no Egito, Gaza e Síria. Enquanto isso, o Qatar continuou a oferecer ao Hamas asilo político em Doha e projetos de desenvolvimento generosamente apoiados em Gaza, mas o pequeno Estado do Golfo se mostrou indisposto a prestar a assistência militar que o Hamas recebia do Irã.

Estes desenvolvimentos abriram o caminho para a aproximação do Hamas com o Irã após dois anos de laços deteriorados, o que por sua vez facilitou o caminho para a normalização de suas relações com o Hezbollah. Em setembro de 2013, após várias semanas de reuniões, o Hamas e o Hezbollah anunciaram que haviam formado um pacto forte com o Irã para fortalecer o cambaleante “eixo de resistência”.

Relembrando o que está em jogo

Mesmo que o Hamas gradualmente restaure sua relação com o Irã e o Hezbollah, alguns de seus oficiais ainda agitam a bandeira do Exército Livre da Síria (ELS). “O Hamas não flerta nem implora a ninguém”, disse Haniyeh, num discurso desafiador em outubro passado. “Ele não se arrepende nem se desculpa por posições honrosas apenas para aplacar os outros. Ele não sente que está em apuros ou encurralado para que outros sejam pagos para salvá-lo.” Mas, à luz do fortalecimento da mão de Assad na Síria, da proliferação de forças hostis ligadas a Al-Qaeda na oposição síria e de um acervo regional de aliados úteis que se estreita, o realismo pode obrigar o Hamas a concordar em discordar com seus aliados no Líbano e Irã.

É improvável que o Hezbollah abandone Assad em breve. Suas preocupações com jihadistas antixiitas, ou Takfiris, que ganham influência no Líbano, Iraque e Síria, naturalmente cavam as trincheiras do Partido de Deus contra a revolução síria dominada por sunitas – uma dinâmica que pode ser estimulada por uma onda contínua de carros-bomba e outros ataques jihadistas contra redutos do Hezbollah no Líbano. Mesmo que o Hezbollah calmamente comece a reconsiderar o seu papel na Síria, seus patronos no Irã – com os quais o Hezbollah é muito mais intrinsecamente ligado do que o Hamas – se inclinarão pesadamente sobre a força libanesa para manter a linha.

Neste contexto, a tensão entre os grupos palestinos e libaneses provavelmente continuará enquanto o impasse sírio perdurar. Mas, do mesmo modo, na ausência de um tratado de paz israelense-palestino e o fim das tensões ao longo da fronteira entre Israel e Líbano, o Hamas e o Hezbollah continuarão a ver suas respectivas lutas contra Israel como um denominador comum que justifique uma forte aliança, apesar de suas posturas opostas na Síria.

Giorgio Cafiero é um analista de política internacional baseado em Washington DC, seu contato no Twitter é: @GiorgioCafiero. Peter Certo é editor da Foreign Policy In Focus

Esta matéria foi originalmente publicada pelo Atlantic Council