De tempos em tempos – em particular nos momentos de crises – nos deparamos com queixas a respeito da falta de líderes, tanto no mundo dos negócios quanto na esfera política. Neste texto argumentarei que a presença maior ou menor da tal “liderança” tem tanto poder explanatório quanto a potência dormitiva de Molière. Mostrarei que essa escassez de líderes é ilusória, fruto da má compreensão do funcionamento do sistema econômico intervencionista. O que é escasso, na verdade, são leis que garantam a liberdade individual e nos protejam da “inspiração” e ação funesta dos ditos líderes.
Tome como exemplo o atual presidente americano, depositário do desejo de mudanças por parte de seus eleitores e admirado pelos intelectuais do mundo todo. Por mais óbvia que seja a proposição que afirma que ele, de fato, não faria nada significativamente diferente daquilo realizado por seus antecessores, ainda podemos observar a frustração de seus admiradores com a ausência de mel jorrando nas fontes públicas. A essas pessoas resta inicialmente elaborar teorias conspiratórias para explicar o imobilismo do referido político e, mais tarde, depositar suas esperanças na chegada de um próximo líder.
Essa demanda por caciques se manifesta com certa periodicidade na imprensa. Um articulista do New York Times recentemente escreveu um artigo [1] lamentando a falta de líderes políticos em escala global. Para o autor do artigo, os governantes eleitos dos Estados Unidos e Europa não seriam líderes devido ao seu imobilismo, sua incapacidade de tomar iniciativas que tirem as mencionadas economias da crise. Os políticos, ao abdicarem de sua liderança, fazem com que os tecnocratas (não eleitos da Itália e Grécia) ou supercomissões, os mercados e a ‘mãe natureza’ decidam no lugar. Assim, “em todo o globo e em todos os sistemas políticos, os líderes são perigosamente escassos”, afirma o jornalista.
Na Índia, por exemplo, existiria a mesma falta de capacidade de decisão por parte dos líderes políticos. Notando que existe apenas um semáforo nas ruas de uma cidade com mais de um milhão de habitantes, o autor conclui que a mão do governo seria muito pouco notada na Índia! Desse modo, embora reconheça que bilhões de dólares são desviados pela corrupção, o autor fala em falta da “mão do governo” e sugere excessiva liberdade da “mão invisível” dos mercados sem contudo relacionar tais coisas de forma significativa com a “mão surrupiadora” [2] do Estado.
Mas, poderíamos perguntar: será que o imobilismo dos políticos pode ser explicado pela escassez de verdadeiros líderes, seja a “liderança” um traço de personalidade ou algo adquirido por treinamento? No primeiro caso, deveríamos rezar pelo advento de uma nova leva de líderes? E, no segundo, subsidiar aqueles cursos de administração que tanto falam de liderança? Obviamente, em nenhum dos casos temos uma explicação minimamente satisfatória para nosso problema. Mas a sensação de falta de liderança pode, no entanto, ser explicada como um sintoma derivado da lógica do funcionamento de um sistema econômico intervencionista (ou mercantilista), como argumentarei em seguida.
Os políticos reconhecidos como líderes genuínos tendem a surgir não nos momentos de crise, como quer a literatura romântica sobre o assunto, mas sim nas fases do processo intervencionista nas quais ainda existe algum espaço de manobra para os políticos, ou seja, quando as consequências das políticas intervencionistas ainda não se fazem sentir de forma plena.
Para entender essa afirmação, precisamos invocar a crítica ao intervencionismo feita por Ludwig von Mises. [3] Esse autor mostrou que um sistema intervencionista é inerentemente instável, na medida em que cada intervenção governamental gera consequências não intencionais contrárias ao pretendido, o que requer novas intervenções para corrigir os problemas causados pela intervenção anterior, gerando uma espécie de reação em cadeia que resulta em crises derivadas do acúmulo de erros inerentes ao processo intervencionista. Essas crises diminuem a margem de manobra do político, até que medidas liberalizantes tenham que ser tomadas (nesse ponto os políticos intervencionistas ou socialistas são classificados como ‘neoliberais’). Como o processo de intervenção gera grupos beneficiados por privilégios legais, assim que as medidas liberalizantes surtam algum efeito, o processo interventor é retomado.
A margem de manobra do político, durante esse processo, depende fundamentalmente daquilo que Mises denomina “fundo de reservas” de riqueza previamente acumulada no sistema, que pode ser utilizado para sustentar o processo intervencionista por algum tempo. Isso pode ser utilizado para estendermos a nossa análise para a relação entre grau de intervencionismo e crescimento econômico: embora o crescimento em médio prazo dependa do grau de liberdade econômica existente num país, a manutenção de um Estado interventor ou um Estado de ‘bem-estar’ depende crucialmente de se tal Estado foi implementado quando o país era rico ou pobre, ou, em última análise, depende do tamanho do fundo de reservas existente. Mas, com o esgotamento relativo do fundo, em qualquer patamar inicial de riqueza, tem-se a diminuição da eficácia dos instrumentos a disposição dos governantes.
Com isso, podemos agora voltar ao nosso problema e especificar em quais fases desse processo os gestores do sistema político intervencionista são identificados com a figura de líderes. De acordo com essa teoria, podemos prever que a existência ou escassez de líderes depende do estágio do processo intervencionista no qual as economias se encontram. Mais precisamente, poderíamos esperar abundância de líderes nas seguintes situações: (a) no início de uma fase de expansão do tamanho do Estado ou expansão de seu grau de ativismo na economia; (b) logo após as reformas liberalizantes posteriores a uma crise do intervencionismo surtam algum efeito, o que gera um reabastecimento do fundo de reservas, e (c) quando surge alguma fonte exógena de financiamento do Estado, como uma grande abundância de crédito no mercado internacional ou valorização de alguma mercadoria exportada pelo país, como o petróleo ou algum outro recurso natural.
As ilustrações são inúmeras. Na história brasileira, foi possível construir nova capital, fazer obras faraônicas sem retorno econômico, engessar a legislação trabalhista, estatizar a economia, gerar um cipoal de regras burocráticas para as empresas, promover o protecionismo e construir-se a imagem de líder. Afinal, pode-se utilizar recursos de previdência social no seu início, que recebe contribuições, mas ainda não tem que realizar pagamentos substanciais aos beneficiários. É possível se endividar com juros menores. É possível criar novos impostos. Mas, quando chega o longo prazo, quando esses “líderes” (e Keynes) estão já todos mortos e a conta das farras passadas recai sobre o ombro de uma nova geração, os próximos políticos não têm alternativas: a carga tributária toma quase metade do que é produzido, consome-se parcela significativa dos recursos para pagar dívidas passadas e a população desenvolve maneiras de se proteger de financiamento inflacionário; ou seja, qualquer nova fonte de financiamento recebe resistências substanciais da sociedade. Mas, ironicamente, a população lamenta a falta de líderes presentes e exalta os líderes do passado, mesmo sendo esses últimos em boa medida responsáveis pelo imobilismo dos políticos do presente!
Nas crises econômicas em diversos países nas últimas décadas, a falta de opção dos políticos também não é difícil de notar: seja no Japão ou nos países asiáticos algumas décadas atrás, seja nos Estados Unidos, as políticas fiscais e monetárias deixaram de funcionar. Enormes pacotes de gastos públicos acompanhados de dilúvios de nova moeda têm efeito desprezível sobre a capacidade de recuperação das economias. As bolhas americanas são “curadas” por novas injeções de crédito, responsáveis pela bolha seguinte, ilustrando simultaneamente as teorias austríacas dos ciclos e do intervencionismo. Novamente, as populações criticam o imobilismo de seus governantes e lamentam a não existência de líderes como Roosevelt, na verdade o grande responsável pelo prolongamento da Grande Depressão. [4]
Na esfera municipal, o fenômeno é o mesmo. Inicialmente, os prefeitos deixaram sua marca por meio de grandes obras, como viadutos, avenidas e estações de metrô que custaram cada uma delas o bastante para construir outras dez. Com o esgotamento das finanças municipais derivadas disso e do excesso de funcionários contratados, os novos prefeitos não têm recursos para novas realizações. Seja qual for o partido de origem desses novos prefeitos, sua estratégia é a mesma: tentar criar novas taxas ou sofisticar a indústria das multas, na esperança de realizar alguma obra com os recursos assim obtidos. Na falta de recursos, esperam deixar sua marca a partir da proposta de leis que proíbam alguma coisa; os custos disso sempre recaem sobre outros. Seja como for, a decepção com o desempenho medíocre dos políticos novamente nos traz a sensação de escassez de líderes.
Ao mesmo tempo, países com economias debilitadas em seus fundamentos, mas cujos respectivos governos enriquecem com receitas de petróleo ou matérias-primas demandadas atualmente pela China ou ainda pela recente abundância de crédito do mercado internacional, reabastecem seus fundos de reserva. Com isso, temos o renascimento de políticos da pior espécie, mas que são reconhecidos como líderes, seja na Rússia ou nas democracias em deterioração da América Latina. Mais uma vez, dificilmente o estrago causado por esses líderes será atribuído a seus autores, mas aos próximos políticos que herdarão os problemas.
Mas, alguém poderia argumentar, o verdadeiro líder seria aquele que nos tiraria do círculo vicioso da lógica do intervencionismo. Mas, devemos perguntar, como as reformas necessárias poderiam ser tomadas por iniciativa de um líder político, que teria que contrariar grupos de interesse, a ideologia intervencionista dominante e seus próprios interesses como político? Tal reforma, na verdade, só terá chances quando o ensino das ideias liberais for divulgado a ponto de quebrar a barreira gerada pelos vários anos de doutrinação estatizante efetuada nas escolas; ideias liberais que revelariam para a população quais são os verdadeiros exploradores e explorados numa sociedade de rent-seeking. Só assim – e não pela inspiração de líderes – haveria demanda por reformas que substituam o governo dos líderes pelo governo das leis. Parafraseando Brecht, infeliz do povo que necessita de líderes!
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Notas:
[1] FRIEDMAN, Thomas. L. Faltam líderes que decidam. OESP, 18.11.2011.
[2] SHLEIFER, Andrei e VISHNY, Robert W. The Grabbing Hand: government pathologies and their cures. Harvard University Press, 2002.
[3] Mises, Ludwig. Uma Crítica ao Intervencionismo, Rio de Janeiro: Nórdica, Instituto Liberal, sem data. A partir dessa crítica desenvolveu-se uma teoria austríaca sobre o intervencionismo. Para os fundamentos dessa teoria, ver Ikeda, Sanford. Dymamics of the Mixed Economy. Londres: Routledge, 1997 e também vários dos meus artigos anteriores publicados neste espaço.
[4] Ver, por exemplo: REED, Lawrence. W. Great Myths of the Great Depression. New York: Foundation of Economic Education e Mackinac Center, 2008; e FLYNN, John T. The Roosevelt Myth. Nova York: Devin Adair Co., 1948.
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Fabio Barbieri, mestre e doutor pela Universidade de São Paulo, é atualmente professor da USP na FEA de Ribeirão Preto
Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ordem Livre