Gosto amargo da Copa Mundo no Brasil

16/06/2012 18:54 Atualizado: 16/06/2012 18:54

Oficiais do BOPE avançam através Morro da Mangueira no Rio de Janeiro, em 19 de junho de 2011. A ''limpeza'' de uma favela dominada pelo crime era uma parte de um plano de pacificação antes da Copa do Mundo de Futebol em 2014. (Vanderlei Almeida/AFP/Getty Images)“As pessoas acreditam que vão prosperar com a chegada da Copa do Mundo, mas a verdade é que serão brutalmente reprimidos”, alerta Roberto Morales.

“A Copa do Mundo será um grande negócio, mas apenas para as grandes empresas de produtos esportivos e aqueles autorizados a venderem alimentos e bebidas”, lamenta Morales.

Morales faz parte do Comitê Popular da Copa do Mundo que foi criado quando as pessoas decidiram resistir a ser despejadas de suas casas para dar lugar a novas instalações para os Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro em 2007.

“Começamos a ver que as expulsões não são o único problema com a hospedagem grande eventos, vimos também outros problemas, como a corrupção. As novas instalações para os Jogos Pan-Americanos deveriam custar 300 milhões de reais, mas acabaram custando 3,5 bilhões.” Isso é equivalente a quase 2 bilhões de dólares.

Esta situação é especialmente visível no Rio de Janeiro, um dos principais locais para a Copa do Mundo de 2014 e a sede dos Jogos Olímpicos de Verão de 2016. Comitês populares foram formados em todas as 12 cidades que sediarão jogos da Copa do Mundo e eles estão se mobilizando sob a bandeira que exige, “A Copa do Mundo e as Olimpíadas devem respeitar os direitos humanos.”

Em 12 de dezembro, as comissões apresentaram os oficiais das 12 cidades com um dossiê intitulado ‘Mega-eventos e Violações dos Direitos Humanos no Brasil’. Os documentos analisam questões que vão desde o direito à habitação até os direitos trabalhistas para os que constroem as novas instalações e a falta de estudos de impacto ambiental em projetos que estão correndo contra o relógio.

O direito à moradia

O Brasil tem um déficit habitacional de 5 milhões de unidades. Os projetos de construção para a Copa do Mundo, desde novos estádios até as renovações de aeroportos e rodovias, custarão 20 bilhões de dólares, tudo para um torneio que durará menos de um mês. Para colocar este valor num contexto, isso é quase metade do PIB anual do Uruguai. Este investimento colossal será extraído de todos os brasileiros pagadores de impostos para o benefício de algumas empresas selecionadas.

Mesmo que o governo não tenha dado qualquer informação sobre quantas famílias serão despejadas pelos novos projetos, estima-se que elas afetarão 170 mil pessoas.

Quase todos os que serão afetados vivem em bairros pobres e muitas vezes em habitações precárias e arranjos informais. Na região metropolitana de Curitiba, 1.173 propriedades serão afetadas pela construção do novo Corredor Metropolitano de 52 quilômetros, de novos pontos de acesso ferroviário e pela reconstrução e ampliação de várias avenidas e rodovias.

A expansão do aeroporto e seus estacionamentos implica a remoção de 320 casas, mas nem um único dos habitantes foi informado sobre a compensação que receberá ou onde serão realocados.

Na cidade de Fortaleza, 15 mil famílias serão afetadas; 10 mil terão de ser reassentadas, mas eles ainda não foram informados do local onde viverão.

A maioria dos afetados será deslocado como resultado da expansão de estradas já existentes ou da construção de novas. A Via Expressa Fortaleza atravessará 22 bairros para conectar hotéis ao Estádio Castelão.

Centenas de casas previstas para serem demolidas este ano em torno da periferia de Fortaleza foram marcadas com tinta verde, mas os habitantes dessas casas não ouviram uma única palavra das autoridades sobre quando as demolições acontecerão.

Os Comitês Populares da Copa do Mundo afirmam que o governo está aplicando “estratégias de guerra e perseguição” em 21 vilas e favelas de sete cidades-sede, “como a marcação de casas para demolição sem explicação, invasões de casas sem mandado e a apropriação indevida e destruição de propriedade.” Isto se acrescenta a ameaças, serviços cortados e outros atos de intimidação.

O trabalho que está sendo feito para a Copa do Mundo permite uma espécie de “limpeza social” motivada pela especulação imobiliária e o despejo de famílias que viveram em suas casas durante quatro ou cinco décadas.

Dada a experiência de anteriores mega-eventos esportivos em ambos os países desenvolvidos e em desenvolvimento, o custo de vida subirá e especulação imobiliária decolará enquanto o desenvolvimento desloca alguns e atrai aqueles que podem pagar por propriedades mais caras. Os milhares de desabrigados são simplesmente empurrados para a periferia.

Estado de exceção

O Congresso brasileiro está sendo forçado a aprovar a Lei Geral da Copa, que estabelece as regras que regerão a forma como a Copa das Confederações de Junho de 2013 e da Copa do Mundo do ano seguinte serão realizadas.

O projeto foi apresentado no Congresso brasileiro pelo Poder Executivo, através de critérios estabelecidos pela FIFA. Em 6 de dezembro de 2011, ele foi levado para uma votação geral dos representantes, mas a votação foi adiada porque um número de representantes considerou o projeto de lei em contradição com a legislação brasileira existente. Por exemplo, a venda de álcool é proibida em estádios, mas a FIFA exige o levantamento da restrição, o que, de acordo com alguns legisladores brasileiros, pode gerar consequências violentas.

Outro ponto de discórdia gira em torno da recusa da FIFA de permitir o tratamento especial concedido aos estudantes, aposentados, beneficiários da assistência do estado e às pessoas com deficiência pela metade do preço de entrada.

Uma grande parte da legislação nacional do país deve ser suspensa para atender às exigências da FIFA.

O relatório dos Comitês Populares da Copa do Mundo também denuncia a violação dos direitos dos trabalhadores no setor informal (quase dois terços dos brasileiros). O artigo 11 da Lei da Copa proíbe a venda de qualquer tipo de mercadoria em “locais de competição oficial, em suas imediações e suas principais vias de acesso”, sem a expressa autorização da FIFA.

Os perímetros exatos dessas zonas restritivas ainda não foram definidos, mas com base na experiência anterior, pode-se estimar que a “zona de exclusão” será de dois quilômetros.

O artigo 23 penaliza os bares que tentam transmitir jogos da Copa do Mundo sem a devida autorização ou que promovem certas marcas não autorizadas pela FIFA.

Finalmente, o artigo 38 determina que a FIFA, seus representantes legais, consultores e funcionários “continuará a ser livre de custos, emolumentos, taxas e outras despesas pelas instituições da Justiça Federal, Justiça do Trabalho, Justiça Militar” e outros ramos do governo brasileiro.

O Comitê Olímpico Internacional tem exigências semelhantes. Em 2009, a Lei 12.035 foi aprovada, que estabelece a transferência de fundos públicos imobiliários para os Jogos Olímpicos, a transferência de espaços exclusivos de propriedade pública e “a designação de recursos para cobrir os eventuais déficits operacionais do Comitê Organizador dos Jogos do Rio de 2016”.

A lei declara que, entre 5 de julho e 26 de setembro, “contratos de publicidade em espaços públicos, em aeroportos ou em áreas federais que são de interesse para os Jogos do Rio de 2016” são nulos.

O poder acumulado pelas federações desportivas nas últimas décadas é capaz de impor sua vontade sobre milhões de cidadãos em todo o mundo, de fato as mesmas pessoas que os sustentam, e nos países mais poderosos de todos os continentes, sem estar sujeito a debates públicos que poderiam trazer à luz o quadro de interesses por trás dos muitos abusos.

Expansão dos estádios

Cerca de 203 mil pessoas assistiram à final da Copa do Mundo de 1950 no Maracanã. As seções de assentos gerais e populares, onde a classe média e trabalhadora assistiram ao jogo, representou 80% dos assentos totais. Os espectadores assistiram ao jogo inteiro de pé, abrindo espaço entre si num estádio que tinha capacidade máxima de 199 mil.

Os estádios onde diversos setores da sociedade costumavam se misturar começaram a mudar na década de 1990. A justificativa para este tipo de “europeização” dos estádios era a segurança e o conforto e era parte de uma campanha global que a FIFA, as federações de futebol locais e os clubes (estimulados por patrocinadores privados) participaram.

O lendário Maracanã viu sua capacidade reduzida quase pela metade, para apenas 103.022 pessoas, depois de um projeto de remodelação em 1999. Entre abril de 2005 e janeiro de 2006, o estádio foi fechado para reformas reduzindo ainda mais a capacidade, para apenas 82.238.

O Maracanã está sofrendo com uma nova remodelação desde meados de 2010 e foi fechado para mudanças que cumpram os ditames da “mestre FIFA”, que exige que todos os estádios tenham tetos fechados.

Mais do que um estádio de futebol, será um teatro. Um teatro com cadeiras numeradas onde você não pode acompanhar o jogo de pé. Como resultado, a oportunidade para manifestações criativas e divertidas dos tocedores amorosos, alegres, apaixonados e barulhentos como eles são, foram abolidas.

Uma vez o maior do mundo, o Maracanã caiu para um modesto 14º lugar. Mas o mais revelador de tudo, o Maracanã deixou de ser um local de lazer público e se tornou uma ferramenta para o negócio e espetáculo de aspectos que têm muito pouco a ver com espírito original do futebol popular.

Raul Zibechi é analista de política internacional do semanário Brecha de Montevideo, professor e pesquisador de movimentos populares na Multiversidade Franciscana da América Latina. Originalmente publicado no Programa das Américas. Cortesia da Foreign Policy in Focus (fpif.org).