A decadência, quando não levada ao extremo, tem lá seu charme arquitetônico. Ruínas são coisas românticas. Tão românticas, aliás, que os cavalheiros ingleses do século XVIII construíam ruínas em seus jardins para servirem de lembranças agradavelmente melancólicas da efemeridade da existência terrena.
Fidel Castro, no entanto, não é nenhum cavalheiro inglês do século XVIII, e Havana não deveria ser seu imóvel privado para ser usado como um memento mori pessoal. As ruínas que ele produziu em Havana são, na realidade, a moradia de mais de 1 milhão de pessoas, cujo desejo coletivo não tem, como atestam essas ruínas, o mesmo poder que o desejo de apenas um homem. “Comandante en jefe“, diz um dos vários outdoors políticos que substituíram todos os cartazes publicitários, “o senhor dá as ordens”. Desnecessário dizer que a obrigação de todo o resto da população é obedecer.
Havana não mudou quase nada desde a última vez em que estive lá em 1990. Os vastos subsídios soviéticos acabaram; a economia hoje depende do turismo europeu. Para melhor receber os turistas, a maioria em busca de férias baratas nos trópicos e gostosamente indiferente à política de Cuba, o governo vem permitindo um pequeno grau de flexibilidade. Pequenos restaurantes privados que funcionam dentro de casas de família, chamados de paladares, com não mais do que 12 cadeiras, já são tolerados — muito embora a contratação de mão-de-obra que não seja da família, algo considerado explorador pelo regime, não é permitida.
Nestes locais, apenas determinados pratos são permitidos. Peixe e lagosta são proibidos, pois são exclusivos dos restaurantes estatais. Os poucos paladares que se arriscam a driblar essas regras funcionam como aqueles locais clandestinos que vendiam bebida alcoólica nos EUA durante a Lei Seca: seus proprietários que servem peixe ou lagosta estão constantemente nervosos, sempre preocupados com a possibilidade da presença de informantes (os Comitês de Defesa da Revolução ainda estão ativos e operantes em todos os cantos). O dono de um destes paladares que visitei — o qual não possuía nenhum sinal na rua avisando de sua existência — preocupadamente olhava através do olho mágico da porta antes de deixar qualquer pessoa entrar. Comer uma simples refeição numa das três mesas parecia uma cena de filme de espionagem.
Pequenos mercados de pulgas também já são permitidos em Cuba. Neles é possível observar pequenas trocas envolvendo roupas usadas e itens domésticos. Em 1990, era inimaginável uma pessoa poder comprar ou vender alguma coisa ao ar livre, pois comprar e vender era um ato visto como sintoma de ‘individualismo burguês’, algo contrário à visão socialista de Fidel, para quem tudo deve ser racionado — e de maneira racional, por assim dizer — de acordo com as necessidades de cada um. (Na prática, é claro, isso significava racionar de acordo com o que havia, o que nunca era muito.)
Períodos de abertura permitindo um comércio de pequena escala já haviam ocorrido em outros momentos do reinado de mais de quatro décadas dos irmãos Castro. No entanto, tais aberturas rapidamente eram revogadas e voltava-se ao período de “retificação”, pois ficava muito aparente que os cubanos respondiam com muito mais vigor aos incentivos econômicos do que aos ditames “morais” louvados nas teorias adolescentes de Che Guevara.
Agora, no entanto, a atividade comercial está mais liberada, pois ela é essencial para a sobrevivência econômica do regime. Na última vez em que estive em Havana, mesmo um estrangeiro carregado de dólares não conseguia encontrar comida fora do seu hotel — um arranjo que dificilmente estimula o turismo em massa. Agora, por pura necessidade, já há um número satisfatório de cafés e bares para atender os visitantes.
A economia cubana está hoje amplamente dolarizada, um curioso e irônico desfecho para décadas de ardente nacionalismo. Quando perguntei em meu hotel como fazia para trocar dólares por pesos, disseram-me que eu não precisaria de pesos. E estavam corretos. As poucas e empoeiradas lojas que aceitavam vender seus bens em troca de pesos — a moneda nacional — anunciavam este fato extraordinário em suas janelas, como se estivessem efetuando um milagre, muito embora os bens à venda fossem poucos e da mais baixa qualidade imaginável.
Na última vez em que estive em Cuba, a posse de um dólar por um cubano comum era crime, uma prova de deslealdade e de desafeição. Dependendo do humor de Fidel, o “criminoso” podia até ser acusado de estar planejando uma sabotagem econômica da revolução. Dólares eram manuseados como se fossem nitroglicerina, prestes a explodir na sua cara ao mais mínimo solavanco. Agora, no entanto, eles são meramente unidades monetárias, as quais qualquer pessoa pode manusear.
Embora os lobbies dos hotéis ainda sejam patrulhados por seguranças com walkie-talkies, que têm a função de garantir que nenhum cubano não-autorizado adentre o recinto, o crescente número de turistas em Cuba significa que as relações entre cubanos e estrangeiros estão mais relaxadas e abertas do que antes. Hoje, um cubano falar com um estrangeiro não é mais visto como um sinal de infidelidade política; conversas não mais têm de ser feitas às escondidas, em becos escuros ou atrás de paredes, sempre com um olho nervoso à procura de espiões e bisbilhoteiros pró-regime. Eu cheguei até mesmo a receber pedidos para que enviasse remédios da Inglaterra, dado que não havia nenhum disponível nas farmácias locais — uma confissão, impensável há apenas alguns anos, de que o tão propalado sistema de saúde cubano não é aquela oitava maravilha.
As pessoas frequentemente falam sobre lo bueno e lo malo da revolução — quase sempre acrescentando que lo malo foi muito, muito ruim. Um cidadão, criado na década de 1970, disse-me que, em sua adolescência, havia sido contagiado pelo fervor do romantismo revolucionário, tendo Che Guevara e John Lennon como seus heróis (ele me contou orgulhosamente que Havana era uma das três cidades com memoriais para John Lennon, sendo as outras Liverpool e Nova York). Segundo ele, naquela época ele imaginava que um novo mundo estava sendo construído; mas agora sabia que não mais havia perspectivas de progresso.
Um fato curioso em Havana é que as pessoas mais idosas tendem a murmurar jabón (sabão) quando você passa por elas, na esperança de que você possa ter um pouco desta rara e preciosa mercadoria para doar. Quando a primeira senhora se aproximou de mim e murmurou jabón, pensei que ela fosse louca. Só depois é que constatei que ela havia sido apenas a primeira de várias.
Por outro lado, já há sinais de uma pequena abertura intelectual. Em La Moderna Poesía, uma livraria que fica numa construção de estilo art déco na Calle Obispo, encontrei uma tradução em espanhol de A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, de Karl Popper. O preço em dólares, no entanto, dificilmente atrairia compradores cubanos. Talvez o livro estivesse ali apenas para enganar turistas quanto à tolerância intelectual do regime; ou talvez fosse uma armadilha para flagrar insurgentes, de modo que qualquer cubano que tentasse comprá-lo seria delatado às autoridades. Mas mesmo assim, a simples presença de uma obra tão contrária à filosofia do regime seria algo inimaginável há doze anos.
Em contraste, os jornais Granma e Rebelde não mudaram absolutamente nada: lê-los hoje é o mesmo que tê-los lido há 40 anos e será o mesmo que lê-los daqui a 10 anos, caso o regime continue de pé. A incessante repetição de que está havendo um amplo progresso social em Cuba mesmo em face das adversidades e das horrendas desintegrações sociais ocorrendo em todos os outros países do mundo (especialmente, é claro, nos EUA) é algo que certamente deve entediar até mesmo o mais ardoroso crente do regime. Logo, não foi surpresa nenhuma eu não ter visto absolutamente nenhum cubano lendo um jornal ou sequer dando confiança para os já idosos vendedores itinerantes, cada um com aproximadamente 5 cópias para vender. Quando me aproximei de um deles e demonstrei interesse em comprar um jornal, o velho aproveitou a oportunidade para abertamente me pedir dinheiro. Vender jornal era apenas um pretexto para se aproximar de alguém e mendigar. A pergunta “quanto custa o jornal?” sempre era respondida com “o valor que o senhor quiser pagar”.
Quase meio século de ditadura totalitária deixou a cidade de Havana — uma das mais belas do mundo — suspensa em uma situação peculiar, indecisa entre a preservação e a destruição. Para mim, que considero a ausência de determinados aspectos esteticamente feios do comercialismo algo agradável, a cidade tem seu charme: logotipos do McDonald’s (e semelhantes) teriam arruinado o cenário de Havana de forma tão intensa quanto os Castros o fizeram. E a relativa ausência de trânsito em Havana tem seu lado positivo: caso Havana tivesse se desenvolvido “normalmente”, suas ruas estreitas estariam hoje entupidas de tráfego e poluição, um inferno sufocante como a cidade da Guatemala ou de San José, Costa Rica, locais onde respirar é ficar sem ar, onde o nível de poluição sonora faz seus ouvidos cintilarem e os pensamentos saírem correndo.
Por causa dessas características quase bucólicas, as ruas de Havana são agradáveis para uma caminhada. Não há fumaça de veículos e não há barulho de buzinas. Dos poucos carros que trafegam, a maioria são relíquias americanas da era Batista, surrados mas, na medida do possível, restaurados. Eles trepidam e sacodem ruidosamente como burros de carga que se impulsionam sob um esforço tremendo. Alguns parecem andar como caranguejos, não para a frente mas de lado. E com toda a ferrugem acumulada, estes veículos — que em outros cenários pareceriam produtos banais descartados por uma sociedade industrializada — adquiriram uma aura romântica, quase uma personalidade própria. Eles são adorados e estimados como velhos amigos insubstituíveis; e, quando você olha para eles, é impossível não pensar em como todos os objetos que hoje tomamos como corriqueiros podem um dia vir a se tornar relíquias inestimáveis. Isso ajuda você a encarar o mundo de outra forma.
Em 1958, Cuba tinha uma renda per capita maior do que a de metade dos países da Europa, a menor taxa de inflação do Ocidente e uma classe média maior do que a da Suíça, e isso é perfeitamente observável no esplendor de Havana e em como sua beleza é ampla, um testemunho de quão rica (e sofisticada) a sociedade que produziu deve ter sido. O esplendor de Havana, longe de estar confinado a apenas um pequeno bloco da cidade, se estende por quilômetros.
Não há palavras que possam fazer justiça à genialidade arquitetônica de Havana, uma genialidade que se estende desde o classicismo da Renascença do século XVI — com casas sérias e perfeitamente proporcionadas contendo quintais com colunatas refrescados e suavizados por arbustos e árvores tropicais — à exuberante art déco das décadas de 1930 e 1940. Os cubanos, ao longo de sucessivos séculos, criaram uma harmoniosa arquitetura praticamente sem par no mundo. Dificilmente se encontra em Havana uma construção que seja errônea ou que tenha um detalhe que seja supérfluo ou de mau gosto. A multicoloração ladrilhada do prédio Bacardi, por exemplo, que poderia ser considerada extravagante em outros locais, é perfeitamente adaptada — de maneira natural — à luz, ao clima e ao temperamento de Cuba. Os arquitetos cubanos certamente entendiam a necessidade de ar e sombra num clima como o de Cuba, e eles proporcionaram suas construções e seus espaços de acordo. Eles criaram um ambiente urbano que, com suas arcadas, colunas, varandas e sacadas, era elegante, sofisticado, conveniente, jovial e prazeroso.
Atualmente, todo esse esplendor praticamente já se foi. A cidade parece hoje um grande arranjo de variações de Bach sobre o tema da decadência urbana. O estuque e o reboco deram lugar ao mofo. Os telhados elegantes já não existem mais, tendo sido substituídos por chapas de ferro corrugadas. Venezianas se esfacelaram e viraram serragem. As pinturas são um mero fenômeno do passado. Escadarias desembocam em precipícios. Não há vidros nas janelas. As portas se soltaram de suas dobradiças. As paredes nos interiores das casas desabaram. Estacas de madeira sustentam, sem nenhum grau de segurança, todos os tipos de estruturas. Fios elétricos antigos são visíveis nas paredes, como vermes num queijo. As sacadas de ferro forjado estão severamente oxidadas. O gesso e o reboco se descascam como uma doença de pele maligna. As pedras de pavimentação das calçadas são arrancadas para outros propósitos.
Todos os grandes e belamente proporcionados aposentos das casas — visíveis através das janelas ou dos buracos nas paredes — foram subdivididos com madeira compensada em espaços menores, nos quais famílias inteiras hoje moram. Roupas estão penduradas em janelas de casas que antes eram palácios. À noite, todas as vias são escuras e as luzes elétricas emitem apenas um brilho fraco e mortiço. Nenhum escombro ou ruínas são considerados severos demais a ponto de impossibilitar seu uso como moradia.
Havana é como uma cidade que foi destruída por um terremoto e cuja população foi forçada a sobreviver em meio aos escombros enquanto a ajuda não chega.
Após a revolução, poucos prédios foram construídos em Havana, o que é ótimo dado que estes poucos foram construídos naquele estilo de modernismo totalitário, arruinando toda a vizinhança. Na Plaza Vieja, um grande e antigo prédio colonial foi transformado em apartamentos de luxo para serem alugados por turistas, e há um excelente restaurante, só para turistas, no térreo (a própria ideia de um excelente restaurante em Cuba era impensável há 12 anos). A burguesia é um pouco como a natureza: por mais que você tente dizimá-la com uma revolução, no final ela sempre acaba voltando.
Embora esteja havendo alguns esforços de restauração no centro da cidade — que foi declarado pela UNESCO como patrimônio da humanidade —, tais esforços em nada se comparam ao tamanho da degradação da cidade. Uma das mais magníficas das várias magníficas ruas de Havana é conhecida como Prado, uma larga avenida que leva até o mar. Algumas das belas e bem proporcionadas mansões ao longo do Prado praticamente se desmoronaram em ruínas; outras estão com suas fachadas — tudo o que restou delas — sustentadas por escoras de madeira. Havana é como Beirute, mas sem ter passado por uma guerra civil para ser destruída.
No entanto, não se pode dizer que os habitantes de Havana pareçam infelizes. Crianças animadas jogam beisebol nas ruas com bolas de trapos comprimidos e tacos de canos de metal (curiosamente, o país da América Latina com a mais robusta tradição política anti-ianque tem no beisebol o seu esporte favorito); há muita interação nas ruas, muitos sorrisos e conversas. E não é raro se deparar com alguma pequena festa com música e dança.
Quando você olha para dentro dos lares que as pessoas fizeram em meio às ruínas, é possível notar aqueles pequenos e comoventes sinais de orgulho próprio e de dignidade que também vemos nas choupanas da África: flores de plástico cuidadosamente arrumadas e outros ornamentos baratos. Uma predileção pelo cafona entre os ricos é um sinal de empobrecimento espiritual; porém, entre os pobres, representa um esforço pela beleza, uma aspiração sem chances de ser realizada. São os mais velhos que demonstram maior abatimento: seus pensamentos naturalmente se voltam para o passado, e o contraste entre a Havana de sua juventude e a Havana de sua senilidade deve ser um espetáculo difícil de ser contemplado.
Esse contentamento de alguns e essa resignação de outros em meio às ruínas não reduzem a profunda tristeza de ver a destruição de uma obra de arte gerada pelo esforço humano ao longo dos anos. Como deve ser viver em meio às ruínas de sua própria cidade, ruínas estas que não foram causadas por nenhuma guerra ou desastre natural, mas sim pela mera adesão a uma ideologia? Não é difícil algum cubano querer mostrar voluntariamente para você as ruínas decrépitas onde ele mora, algo aliás que eles fazem com um sorriso; o fato é que viver nestas condições simplesmente se tornou algo natural para eles. O colapso das paredes e das escadas lhes parece tão natural quanto o tempo.
Nas publicações oficiais (e todas as publicações em Cuba são oficiais), os únicos personagens positivos do passado são os rebeldes e os revolucionários, representando uma contínua tradição nacionalista da qual Fidel é a apoteose. Não há nenhum deus, mas apenas a revolução. E Castro é o profeta. O período entre a independência cubana e o advento de Castro é chamado de “a pseudo-república”, e a ditadura de Batista, sua brutalidade e a “pobreza extremada” da época são as únicas coisas que se deve (ou que se permite) saber sobre a vida imediatamente antes de Castro.
Mas quem criou Havana e de onde veio toda a sua magnificência se, antes de Fidel, só havia pobreza, corrupção e brutalidade? Essa é a pergunta que os cubanos atuais não podem fazer.
Os terríveis estragos feitos por Fidel serão duradouros e irão sobreviver por muito tempo após o fim do seu regime. Vários bilhões em capital serão necessários para restaurar a bela Havana. Problemas legais envolvendo direitos de propriedade e moradias serão custosos, amargos e intermináveis. E a necessidade de se saber equilibrar considerações comerciais, sociais e estéticas na reconstrução de Cuba irá requerer enorme sabedoria e bom senso.
Mas, enquanto o regime não cai, Havana serve como um pavoroso alerta ao mundo — se algum ainda fosse necessário — contra os perigos de ideologias erradas e de monomaníacos que genuinamente acreditam conhecer uma teoria capaz de corrigir o futuro e o mundo.
Theodore Dalrymple é médico psiquiatra e escritor. Aproveitando a experiência de anos de trabalho em países como o Zimbábue e a Tanzânia, bem como na cidade de Birmingham, na Inglaterra, onde trabalhou como médico numa prisão, Dalrymple escreve sobre cultura, arte, política, educação e medicina. Além de seu trabalho em medicina nos países já citados, ele já viajou extensivamente pela África, Leste Europeu, América Latina e outras regiões
Artigo originalmente escrito em agosto de 2002 e publicado pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil