O gigante foi dormir na democracia. Sonhou bem e sonhou muito. Sonhou radicalmente com a igualdade. Não “achava-se” – afinal, era um gigante: sabia-se tolerante. Sabia-se sem preconceitos. Todos são iguais. Todos deveriam ser iguais. Seu sonho foi ficando tão radicalmente perfeito que, mesmo que houvesse leis e costumes no caminho, tudo foi se esfacelando para dar lugar ao ideal de igualdade absoluta que vislumbrava.
Preguiçosos foram sendo igualados aos esforçados; bandidos e criminosos, igualados às pessoas honestas e de bem. Prostitutas a donas de casa, vagabundos a virtuosos. Até políticos corruptos passaram a ser igualados aos poucos políticos dignos que restavam – claro, desde que os corruptos tivessem sido apenas “mensaleiros” e roubado pela Causa Maior. Houve inclusive um que não foi nem investigado: o Grande Líder da Causa Maior precisou apenas afirmar que, da corrupção que todos viram, nada sabia – e assim se safou.
Aproximavam-se as primeiras horas da manhã. O doce sonho do gigante foi ficando amargo. Preguiçosos exigiam mais dinheiro para não precisarem trabalhar. Bandidos exigiam mais direitos (humanos) para poderem atuar no crime sem maiores dificuldades. E os políticos extorquiam mais impostos e acumulavam mais poder para continuar governando. Cada vez mais e mais poder.
Não demorou e os corruptos pela Causa Maior começaram a ser declarados inocentes e o Grande Líder passava a afirmar que a corrupção nem havia existido. O sonho foi virando pesadelo sem que o gigante compreendesse bem a transição (mas, se tivesse estudado história ao invés de alimentar perigosas utopias, ele poderia ter previsto a catástrofe). O sonho virou pesadelo, aquele tipo de pesadelo cuja lembrança mais marcante é o gosto ruim que fica na boca quando acordamos.
O gigante dormiu na democracia. Sonhou igualdade radical, até mesmo entre o que não pode ser igualado. Acordou em uma ditadura. Qualquer semelhança com outros gigantes não é mera coincidência.
Marcel van Hattem é cientista político, jornalista e consultor em relações internacionais
Esse conteúdo foi originalmente publicado no portal do Instituto Liberal