Entrevista com o responsável pelo monastério centro do drama das autoimolações
No decorrer dos últimos meses, uma dezena de jovens tibetanos queimou-se na região autônoma de Ngaba, província de Sichuan, China. Essa região e o monastério Kirti no local foram o foco do regime chinês para silenciar as reivindicações dos tibetanos por liberdade religiosa e direitos humanos fundamentais.
O Lama superior dos monastérios Kirti dentro e fora do Tibete, o Rinpoche Kirti, comentou recentemente sobre o que impulsiona os jovens a cometerem a forma mais radical de protesto: a autoimolação.
O Rinpoche Kirti era anteriormente o ministro da Religião e da Cultura do governo tibetano no exílio. Ele é um dos muitos tibetanos que seguiram o Dalai Lama no exílio em 1959, e depois ele reabriu o monastério Kirti em Dharamsala, na Índia. Desse modo, tem estreitas relações não apenas com comunidades monásticas Kirti no Tibete e na Índia, mas também com indivíduos leigos ligados a elas.
Falando calmo e devagar, com a ajuda de um intérprete, o Rinpoche Kirti (‘Rinpoche’ é um título religioso honorífico que significa “precioso”) descreve as atrocidades cometidas pelas autoridades chinesas contra o monastério Kirti e a comunidade tibetana em geral.
“Essa é a eclosão resultante de três gerações de sofrimento”, disse ele, tentando explicar o motivo desses jovens se autoimolarem. “Tem havido muita repressão contra o povo tibetano, e a região de Ngaba sofre há muito tempo. Eles não podiam suportar mais.”
Essa “chaga de três gerações” está detalhada no seu depoimento de 3 de novembro de 2011, diante da Comissão de Direitos Humanos do Congresso norte-americano.
Após o Exército Vermelho ter saqueado e destruído o monastério de Lhateng em 1935, junto com os horrores da Revolução Cultural, os tibetanos de Ngaba foram vítimas de uma campanha de perseguição tanto física quanto cultural: saques, destruição e profanação de templos, prisões em massa, torturas, execuções, fome, etc. Além do mais, nesses últimos anos houve uma campanha para forçar a comunidade a jurar lealdade ao regime comunista e a denunciar a sua autoridade espiritual, o Dalai Lama.
Campo de “reeducação”
Após o grande movimento de protesto no Tibete, em março de 2008, e a brutal repressão que se seguiu, Pequim adotou um programa ainda mais repressivo quando se voltou novamente contra os monastérios tibetanos.
Por esta razão, o Mosteiro Kirti, em Ngaba, foi transformado praticamente numa prisão, ou num campo de “reeducação”. Toda a área foi isolada e mais de 800 funcionários chineses se instalaram a fim de ensinar a chamada “reeducação política” e a “educação patriótica”.
Na prática, isso significa que o mosteiro foi dividido em grupos de 20 pessoas que passam a maior parte de seus dias escutando lições intermináveis sobre cultivar sua lealdade ao Partido Comunista Chinês (PCCh). Essas lições são seguidas de sessões onde os monges devem “compartilhar suas opiniões”, mas as opiniões que não se enquadram no que é ensinado são respondidas com espancamentos.
Durante a noite, buscas aleatórias são efetuadas nas áreas dos monges, e os locais foram equipados com câmeras de vigilância, equipamento de escuta eletrônica e torres de vigia. Os monges são forçados a pisotear fotos do Dalai Lama e textos sagrados são cortados em pedaços com faca. Centenas de monges foram presos e detidos em lugares desconhecidos, onde muitos deles são torturados.
“A comunidade inteira vive em constante medo”, disse Rinpoche Kirti.
Os gestos desesperados começaram em fevereiro de 2009, quando o monge Tapey, de 27 anos, se autoimolou. Desde então, onze outros fizeram o mesmo, provocando uma repressão ainda mais feroz das autoridades contra sua comunidade e famílias.
A grande parte dos indivíduos que fizeram esses gestos era jovem: Lobsang Phuntsok, de 20 anos; Lobsang Kalsang, de 18 anos; Kalsang Wangchuk, de 17 anos; Choephel, de 18 anos. Em 17 de outubro de 2011, houve o primeiro caso de autoimolação de uma mulher, a monja de 20 anos, Tenzin Wangmo, do convento Mamae Deshen Choekhorling.
Por ter sido exilado na Índia, o Rinpoche Kirti não os conhecia pessoalmente, mas diz que ainda se sente muito próximo deles, pois é seu mestre espiritual.
Rinpoche Kirti disse que não é possível dizer se esses atos são incentivados ou não pela comunidade monástica, já que cada situação é diferente. Segundo ele, os atos são normalmente espontâneos e ocorrem sem aviso prévio.
Os atos de autoimolação são extremos, mas eles conseguiram captar a atenção do mundo para lembrar-se das reivindicações dos tibetanos.
Um dos principais interessados pela questão, o Dalai Lama, disse recentemente à BBC que ele não incentivaria esses atos extremos, e questionou seu alcance. “Isso requer coragem, mas qual efeito isso produz?”, perguntou ele. “A coragem sozinha não é um substituto. É preciso utilizar a sabedoria.”
Rinpoche Kirti disse que, embora ele queira que a comunidade internacional exerça pressão sobre o regime chinês, no final das contas, é o regime chinês mesmo que deve por fim a repressão e instaurar políticas racionais para que as pessoas possam viver uma vida normal com direitos humanos básicos. É a única coisa que poderá reverter essa situação, segundo ele.
Ao fim da entrevista, Rinpoche Kirti também disse que, de uma perspectiva mais ampla, a moralidade é a questão fundamental para a China.
Ele citou o caso de Yueyue para demonstrar o que ocorre a sociedade quando a moralidade decai. A pequena Yueyue, de dois anos, foi atropelada por dois motoristas. No entanto, muitos pedestres não a socorreram por medo de serem envolvidos. Segundo o Rinpoche Kirte, a repressão contra os tibetanos é um reflexo dessa falta de moral entre os dirigentes chineses.
“Sendo você crente ou não, melhorar a moralidade apenas facilitaria essa ‘sociedade harmoniosa’ da qual o regime fala todo o tempo”, disse ele.